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VIROLOGIA

Proteína do novo coronavírus torna célula infectada invisível ao sistema imune

Ela inibe a sinalização para os linfócitos que a destruiriam, ajudando a explicar a origem dos casos graves da doença

NIAIDImagem de microscopia eletrônica do novo coronavírus, com sua coroa (em alaranjado) formada por cópias da proteína spikeNIAID

São muitas as maneiras pelas quais o novo coronavírus escapa do sistema de defesa. Talvez a mais conhecida seja pelas alterações aleatórias que ocorrem em uma das proteínas de sua superfície, a spike (S). Essa proteína forma ao redor do vírus uma estrutura que, ao microscópio eletrônico, lembra uma coroa (daí o nome coronavírus) e é reconhecida por anticorpos do sistema de defesa após uma primeira infecção. Alterações que surgem ao acaso na spike à medida que o vírus se replica podem fazê-lo passar despercebido ao sistema imune. Agora, uma equipe de pesquisadores da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, da qual participa a brasileira Marcella Cardoso, identificou outra estratégia, que permite ao vírus não ser detectado já na primeira infecção e pode explicar por que em alguns casos ele se multiplica com tanta rapidez e leva as pessoas a adoecerem gravemente e até morrer, em especial quando não vacinadas.

“O vírus consegue sabotar um braço importante do sistema imune, a ação de células chamadas linfócitos natural killer [NK]”, conta Cardoso, que faz estágio de pós-doutorado na Escola de Medicina de Harvard e é uma das autoras principais do artigo, publicado em maio na revista Cell.

Ao invadir uma célula humana, o vírus dispara uma série de reações. Uma delas leva a célula a sinalizar para o sistema de defesa que está infectada. A célula com vírus transporta uma proteína chamada MIC (proteína relacionada ao complexo principal de histocompatibilidade classe I) de seu interior para a superfície, onde a MIC funciona como uma espécie de bandeira indicadora da invasão. A MIC exposta é, então, reconhecida pelos linfócitos NK, que iniciam a destruição da célula doente.

Cardoso e colaboradores verificaram que uma das proteínas do novo coronavírus, a ORF6, impede essa sinalização. Ela varre as proteínas MIC da superfície da célula infectada, o que a faz parecer com uma célula saudável, imperceptível para os linfócitos NK. Como consequência, o vírus continua se replicando sem interrupções, o que piora o quadro infeccioso e aumenta a gravidade da doença.

“As células NK são importantes porque agem rapidamente, ao contrário dos anticorpos, que demoram algum tempo para ser produzidos após o contato do sistema de defesa com o vírus”, observa o virologista José Luiz Módena, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que não participou do estudo. Segundo o pesquisador, os linfócitos NK não atacam especificamente os patógenos, mas as células em estresse – o que é sinalizado pelas proteínas MIC.

Módena lembra que outros mecanismos permitem ao Sars-CoV-2 escapar dos diversos braços do sistema imune. Nos pulmões, por exemplo, o vírus, ao penetrar nas células, induz mecanismos que impedem a identificação do seu material genético e sua destruição. Ele também invade células de defesa chamadas macrófagos, que, uma vez infectadas, perdem sua função original de englobar e destruir as células contendo o Sars-CoV-2. Além disso, mutações no gene que codifica a proteína S do vírus impedem que ele seja reconhecido pelos anticorpos (produzidos em infecções anteriores ou pela vacinação) e por outros tipos de linfócitos, que destroem as células infectadas ao reconhecer pedaços do vírus.

“O trabalho atual descreve um mecanismo até aqui desconhecido pelo qual o coronavírus escapa do sistema imune e abre a possibilidade de se desenvolver um novo tipo de tratamento para a Covid-19”, afirma Módena.

Cardoso identificou o efeito da ORF6 depois de testar potenciais alvos entre as 29 proteínas do vírus. Eles suspeitaram de sua importância porque essa proteína é evolutivamente conservada e existe em todos os coronavírus que infectam morcegos. “Imaginamos que ela deveria ser importante para a sobrevivência do vírus em animais e teria sido útil quando ele passou a infectar os seres humanos”, relata Cardoso, que, em seu trabalho, contou com a colaboração de pesquisadores de outros grupos da Unicamp.

Em Harvard, com um laboratório de alto nível de segurança à disposição, ela trabalhou com células infectadas de pacientes que tiveram a forma grave de Covid-19, inclusive brasileiros. Cardoso observou que, no sangue dessas pessoas, havia quantidades elevadas de proteínas MIC, removidas das células pelo novo coronavírus. Ela mostrou que a proteína ORF6 do vírus era responsável pela limpeza das MIC e por tornar as células infectadas por ele invisíveis aos linfócitos NK ao usar o anticorpo monoclonal 7C6. Esse anticorpo adere à base da MIC e bloqueia a ação da ORF6. Com a ORF6 fora de ação, a MIC passou a sinalizar a invasão normalmente para os linfócitos NK.

“Ao mesmo tempo que demonstramos a função da ORF6, identificamos uma possível nova estratégia de tratamento”, explica Cardoso, que trabalhava com câncer de mama nos últimos anos e momentaneamente mudou de área após a morte de seu pai por Covid-19, em março de 2021. Atualmente o anticorpo 7C6 está sendo testado em animais geneticamente modificados para verificar se essas moléculas ajudam a manter a função dos linfócitos NK e a inibir a replicação do vírus.

“Caso se mostre eficaz, o uso desse anticorpo pode se tornar uma alternativa interessante, embora cara, para o tratamento dos casos graves”, comenta Módena. Segundo o virologista da Unicamp, os medicamentos usados hoje funcionam bem no início da infecção, mas não nos casos mais graves, depois que ela está instalada. “Se, de fato, potencializar a resposta imunológica contra o vírus, esse anticorpo talvez possa se mostrar uma opção para tratar a covid longa”, propõe.

Artigo científico
HARTMANN, J. A. et al. Evasion of NKG2D-mediated cytotoxic immunity by sarbecoviruses. Cell. v. 187, n. 10, p. 2393-410. 9 mai. 2024.

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