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Genômica

Prova de Irmandade

Linhagem da que ataca a uva compartilha 98% dos genes com a cepa que infecta a laranja

UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIAControle biológico: vespas usadas para para combater as cigarras que transmitem a Xylella às videirasUNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA

Comparar o conjunto de genes de dois organismos é um recurso hoje muito empregado na busca das individualidades de cada ser. Num trabalho publicado na edição de fevereiro da revista científica Journal of Bacteriology, uma equipe de pesquisadores paulistas confrontou os genomas de duas variedades da bactéria Xylella fastidiosa – uma que causa a Clorose Variegada dos Citros (CVC) na laranja e outra que desencadeia a doença de Pierce na videira – e viu que as duas linhagens são extremamente parecidas: 98% dos genes do patógeno da uva são compartilhados com o agente infeccioso dos citros, e as proteínas produzidas pelas duas são quase idênticas (semelhança de 95,7% em média). AXylella da videira tem 2.066 genes, dos quais apenas 51 não estão presentes na bactéria da laranja, que é ligeiramente maior, com 2.249 genes.

Tal grau de semelhança levou os cientistas à conclusão de que ambos os patógenos provavelmente lançam mão do mesmo conjunto de genes para infectar e causar doenças em suas respectivas vítimas. “As funções metabólicas das duas linhagens são idênticas e permitem traçar uma estratégia convergente em termos de genoma funcional”, afirma Marie-Anne Van Sluys, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, coordenadora da equipe que escreveu o artigo. Isso quer dizer que, na maioria dos casos, basta entender o papel dos genes em uma das bactérias para se deduzir a sua função na outra cepa de Xylella. Em termos práticos, se, por exemplo, for descoberta uma forma de controle da infecção que leva à CVC, o popular amarelinho, esse conhecimento provavelmente será útil ao desenvolvimento de uma estratégia semelhante contra a doença de Pierce – e vice-versa.

Além de serem em grande medida idênticos, os genes das duas bactérias ocupam, na maioria das vezes, o mesmo lugar no DNA. Há, no entanto, rearranjos internos que tornam um genoma diferente do outro. As regiões de fagos (segmentos genômicos vindos de vírus) do genoma da Xylella da laranja são, por exemplo, distintas, em número e conteúdo, das existentes na linhagem que ataca a uva. Um esclarecimento: todas as comparações se referem à análise dos genomas da linhagem 9a5c de Xylella, que ataca laranjas no interior paulista, e da cepa de Xylella presente nas videiras na região californiana de Temecula. A situação é tão grave em Temecula que a Universidade da Califórnia, em Riverside, importou uma espécie de vespa do México – a Gonatocerus triguttatus, inimiga natural da cigarra que transmite a bactéria para as uvas – para tentar conter a disseminação da doença de Pierce.

As duas Xylellas foram seqüenciadas por pesquisadores da Onsa, a rede virtual de laboratórios genômicos criada em São Paulo pela FAPESP. O deciframento do genoma da bactéria que causa o amarelinho, doença responsável por prejuízos anuais da ordem de US$ 100 milhões apenas entre os citricultores paulistas, veio a público nas páginas da edição de 13 de julho de 2000 da Nature, uma das revistas científicas internacionais mais importantes. Por ter sido o primeiro trabalho de seqüenciamento integral de um patógeno que ataca plantas, o artigo mereceu a capa da publicação.

inda naquele ano, o sucesso dessa iniciativa pioneira rendeu aos participantes da Onsa um convite do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), equivalente ao Ministério da Agricultura, para seqüenciar a linhagem da Xylella fastidiosa que causa a doença de Pierce nas videiras da Califórnia, principal Estado produtor de vinhos naquele país, que já sofreu perdas da ordem de US$ 30 milhões em razão da praga. Foi o resultado desse trabalho, orçado em US$ 500 mil e financiado em partes iguais pelos norte-americanos e FAPESP, que os cientistas paulistas publicaram agora no Journal of Bacteriology.

Mais do que simplesmente fornecer a seqüência de nucleotídeos (as unidades químicas) que compõe o genoma da bactéria da videira, o artigo da equipe da rede Agronomical and Environmental Genomes (AEG), uma sub-rede da Onsa, procura chamar a atenção para possíveis pistas genéticas que possam ser úteis para quem busca tratamentos para as doenças causadas pelas linhagens de Xylella. A cura da doença de Pierce (ou do amarelinho) ainda está longe, mas a comparação do material genético de seus patógenos já fornece dicas importantes para quem deseja perseguir esse objetivo.

“Vários genes que provavelmente estão envolvidos na interação entre a Xylella e as videiras foram identificados”, diz Edwin Civerolo, do Serviço de Pesquisa Agrícola do USDA, que participou do trabalho com os pesquisadores paulistas. “Podemos agora verificar experimentalmente se a função desses genes está relacionada com a patogenicidade ou virulência da bactéria.” De acordo com Civerolo, os genes que se mostrarem importantes para a ocorrência da infecção ou o desenvolvimento da doença de Pierce podem ser alvo de algum tipo de manipulação como tentativa de combater esse mal.

Gene alvo
Um desses genes candidatos a futuros estudos funcionais é o precursor da enzima poligalacturonase. A presença dessa proteína facilita a tarefa de degradar as paredes celulares da planta atacada por um patógeno. A doença de Pierce parece ser mais agressiva do que o amarelinho – e a explicação para essa diferença em termos de virulência pode, em parte, estar ligada à condição desse gene nas linhagens da bactéria que ataca a uva e a laranja. “Na Xylella dos citros, o gene aparece truncado, talvez não-funcional”, afirma Mariana Cabral de Oliveira, do IB/USP, que participou do trabalho de seqüenciamento de ambas as variedades.

“Na da videira, ele está intacto, integral.” O resultado da comparação foi tão animador que os pesquisadores do AEG resolveram checar a integralidade do gene da poligalacturonase em outras linhagens de Xylella. Examinaram linhagens de Xylellas que atacam o café e constataram que o gene se mostrava truncado, a exemplo do que acontece com a bactéria da laranja. Faz sentido pensar, portanto, que a maior produção da poligalacturonase seja um fator determinante da capacidade de agressão de certas cepas de Xylella. Obviamente, tudo isso ainda precisa ser comprovado por mais trabalhos.

Depois de decifrar o genoma do patógeno da doença de Pierce, os pesquisadores do AEG agora se dedicam a fechar e analisar o genoma de mais duas linhagens de Xylella, uma que ataca a planta ornamental conhecida como espirradeira e outra que infecta a amendoeira. Essas duas linhagens de bactéria foram parcialmente seqüenciadas nos Estados Unidos, mas a parte mais decisiva do trabalho será feita aqui. Orçado em US$ 100 mil, o projeto é uma extensão do acordo firmado com o USDA. Ao final dessa nova etapa, haverá quatro linhagens de Xylellas totalmente seqüenciadas, todas com destacada participação de cientistas brasileiros.

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