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CAPA

Quando a luz se curvou

Observação do eclipse solar de 1919 no Brasil e na África forneceu primeira prova experimental da validade da teoria da relatividade de Albert Einstein

População de Sobral, no Ceará, reunida na praça do Patrocínio antes do início do fenômeno

Montagem de Mayumi Okuyama com fotos acervo do Museu Nacional

Nenhum eclipse solar teve tanta repercussão na história da ciência como o de 29 de maio de 1919, fotografado e analisado ao mesmo tempo por duas equipes de astrônomos britânicos. Uma delas foi enviada à cidade de Sobral, no interior do Ceará; a outra, à ilha do Príncipe, então um território português na costa da África Ocidental. O objetivo era verificar se a trajetória da luz das estrelas seria desviada ao passar por uma região com forte campo gravitacional, no caso o entorno do Sol, e de quanto seria essa mudança caso o fenômeno fosse medido. Salvo alguma surpresa, as expedições trabalhavam com três resultados possíveis: a luz não mudaria de trajetória por causa da gravidade; sua deflexão seria conforme cálculos feitos por outros físicos a partir da teoria da gravitação universal do britânico Isaac Newton (1643-1727); seu desvio seria de acordo com as previsões do físico alemão Albert Einstein (1879-1955) na teoria geral da relatividade, um valor de aproximadamente o dobro obtido pelos seguidores de Newton. Seis meses mais tarde, fotos e cálculos divulgados pelos britânicos sobre o fenômeno deram razão a Einstein.

Entrevistas: Augusto Damineli e Luiz Nunes de Oliveira
     

O empreendimento é considerado a primeira comprovação experimental da teoria da relatividade geral, publicada quatro anos antes por Einstein, segundo a qual matéria e energia distorceriam a malha do espaço-tempo e, consequentemente, a trajetória da luz que por ela viaja. Ao dar suporte às ideias de espaço-tempo curvo de Einstein, os resultados das observações do eclipse mudaram a concepção que se tinha sobre o Universo. Essa comprovação também ajudou a transformar o físico alemão em um dos mais respeitados e conhecidos cientistas do século XX.

Passados 100 anos do eclipse, é consenso na comunidade científica que a relatividade geral prevê de forma mais acurada a mudança de trajetória (deflexão) da luz das estrelas do que os cálculos feitos a partir da teoria da gravidade newtoniana. No entanto, durante décadas, astrofísicos, físicos e historiadores da ciência debateram se os dados obtidos nas observações de 1919 eram suficientemente robustos para endossar as ideias de Einstein, como, de fato, ocorreu. Alguns críticos argumentaram que as medições não teriam sido precisas o bastante para decidir qual das duas teorias estava certa; outros, que o astrônomo britânico Arthur Stanley Eddington (1882–1944), diretor do Observatório da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e chefe da expedição enviada para observar o eclipse na ilha do Príncipe, teria deliberadamente descartado dados favoráveis à teoria de Newton produzidos em Sobral. “Eddington era um entusiasta das ideias de Einstein e estava ansioso para fazer um gesto em direção à reconciliação entre o Reino Unido e a Alemanha após o fim da Primeira Guerra Mundial [1914-1918] por meio da verificação experimental de sua teoria”, destaca o físico Luiz Nunes de Oliveira, do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP). “Mas não há evidências de que houve manipulação dos dados.”

O astrofísico e historiador da ciência irlandês Daniel Kennefick, da Universidade de Arkansas, nos Estados Unidos, também refuta as alegações de que Eddington teria forçado a mão em favor de Einstein. “Além de não ter estado em Sobral e, portanto, não ter participado da produção dos registros, Eddington não se envolveu na análise dos dados dessa expedição. Isso foi feito por Frank Dyson [1868-1939] e seus subordinados no Observatório de Greenwich, em Londres”, argumenta Kennefick, que está lançando um livro sobre os 100 anos do eclipse (ver entrevista).

Uma região do céu com estrelas, que os astrônomos chamam de campo estelar, muda de posição continuamente. Mas a posição relativa entre suas estrelas é sempre igual em uma escala de tempo pequena, em geral de meses. “Se tirarmos uma foto hoje e outra daqui a três meses, as estrelas de um mesmo campo se superpõem perfeitamente”, explica o astrônomo Augusto Damineli, da USP. “Mas, no caso de um eclipse solar, a luz das estrelas aparece ligeiramente deslocada em relação à foto desse mesmo campo tirada à noite sem a presença do Sol. Quanto mais perto do Sol está uma estrela, maior é o entortamento da trajetória de sua luz durante o eclipse.” Era esse efeito, então previsto, mas ainda não observado experimentalmente, que as expedições britânicas conseguiram confirmar.

No livro Opticks, cuja primeira edição é de 1704, Newton afirma que a trajetória da luz deveria ser entortada pela gravidade, mas não calculou de quanto seria esse desvio. Para ele, a gravidade seria uma força que atuaria entre a matéria de forma proporcional à massa dos corpos e inversamente proporcional ao quadrado de sua distância. Nessa época, a natureza da luz era desconhecida. Duas hipóteses coexistiam: a de que ela seria constituída de corpúsculos (partículas) ou a de que seria um tipo de onda. Partindo da premissa de que a luz era corpuscular, mesmo sem conhecer a sua massa, o britânico John Michell (1724-1793) e o francês Pierre-Simon Laplace (1749-1827) calcularam, de forma independente, os efeitos da gravidade sobre a luz no final do século XVIII. Ao longo do século XIX ficou estabelecido que a luz era uma onda de natureza eletromagnética. “Depois de a luz ter sido considerada um tipo de onda, passou a ser completamente incerto se ela sofreria qualquer efeito da gravidade, pois, nesse caso, ela não seria matéria”, comenta Daniel Vanzella, do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP. “Essa questão ficou em aberto por mais de 100 anos.”

Einstein começou a se tornar conhecido dentro da comunidade científica ao introduzir em 1905 uma visão nova em relação à noção de espaço e tempo. “Com a publicação da chamada teoria da relatividade especial, espaço e tempo deixaram de ser entendidos como absolutos”, explica o astrônomo Reinaldo Ramos de Carvalho, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em São José dos Campos (SP). Segundo o físico alemão, o espaço poderia se deformar, encolher e colapsar, formando buracos negros, enquanto o tempo poderia se dilatar. No entanto, essa versão incompleta de sua teoria ainda dava o mesmo resultado que a gravitação newtoniana para a questão da deflexão da luz: 0,87 segundo de arco. Somente depois de publicar a teoria da relatividade geral em 1915, Einstein deu um passo além.

Ele introduziu a ideia de que a gravidade não era uma força trocada entre a matéria, como dizia Newton, mas uma espécie de efeito colateral de uma propriedade da energia: a de deformar o espaço-tempo e tudo o que se propaga sobre ele, inclusive ondas, como a luz. “Para Newton, o espaço era plano. Para Einstein, com a relatividade geral, ele é curvo perto de corpos com grande energia ou massa”, comenta o físico George Matsas, do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp). Com o espaço-tempo curvo, o valor da deflexão da luz calculada por Einstein praticamente dobrou, atingindo 1,75 segundo de arco.

Sobral no mapa do mundo
Depois da publicação da relatividade geral, astrônomos de diferentes países engajaram-se para tentar detectar esse fenômeno por meio da observação de eclipses solares totais. Nesses casos, seria possível fotografar estrelas próximas à coroa solar e, assim, verificar se sua luz mudava de posição em razão da proximidade do grande astro. No entanto, seja por causa do mau tempo ou das dificuldades impostas pela Primeira Guerra Mundial, ninguém conseguiu obter resultados que comprovassem as ideias de Einstein até o eclipse de 1919 (ver linha do tempo).

Em meados de 1918, pesquisadores brasileiros do Observatório Nacional, no Rio de Janeiro, cientes da ocorrência de um eclipse no ano seguinte, verificaram que a pacata cidade de Sobral, a 200 quilômetros de Fortaleza, reunia condições geográficas bastante favoráveis para a observação do fenômeno. Com isso em mente, o astrônomo Henrique Charles Morize (1860-1930), diretor da instituição, elaborou um relatório detalhado sobre a região e o enviou a várias instituições científicas do mundo, incluindo a Real Sociedade Astronômica, de Londres.

Frank Dyson, presidente da Real Sociedade Astronômica, havia entrado em contato com as teorias de Einstein por meio de Arthur Eddington, que era secretário-geral da instituição. Eddington vinha se destacando dentro da comunidade astronômica europeia, segundo o historiador da ciência Matthew Stanley, do Departamento de História da Ciência da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. “Seu trabalho em cosmologia estatística havia ajudado a estabelecer uma reputação de cientista criativo e talentoso, e seu trabalho com estruturas estelares ainda hoje é considerado fundamental para o desenvolvimento da astrofísica teórica”, escreveu Stanley em artigo publicado na revista Isis em 2003. “Tanto Eddington como Dyson sabiam que o eclipse de maio de 1919 seria especial”, comenta Oliveira. “O Sol passaria diante de um grande aglomerado de estrelas na constelação de Touro, de modo que haveria muitas luzes brilhantes para se observar.” O eclipse permitiria fotografar por alguns minutos as estrelas no fundo do céu próximas da borda do Sol, a uma distância de 150 anos-luz da Terra — cada ano-luz equivale a 9,5 trilhões de quilômetros.

Acervo do Observatório Nacional Telescópio de 13 polegadas usado pelos britânicos no Ceará para registrar o eclipseAcervo do Observatório Nacional

De olho no céu
Para verificar qual teoria, a de Newton ou a de Einstein, estava correta, a Real Sociedade Astronômica organizou as expedições a regiões em que o fenômeno poderia ser melhor observado. Eddington liderou a ida à ilha do Príncipe, a 300 quilômetros da costa da África. A outra equipe, formada por dois membros do Observatório de Greenwich, Charles Davidson e Andrew Crommelin, e coordenada por Dyson a distância, foi para Sobral.

A equipe de Greenwich chegou ao Brasil em 23 de março de 1919. Eles desembarcaram no porto de Belém, no Pará, onde ficaram por algumas semanas, enquanto Henrique Morize, do Observatório Nacional, concluía os preparativos para a chegada dos britânicos em Sobral. Por cortesia do governo brasileiro, todos os equipamentos passaram pela alfândega sem que fossem inspecionados, relataram os pesquisadores britânicos em artigo publicado mais tarde na revista Philosophical Transactions of the Royal Society.

Davidson e Crommelin trouxeram dois telescópios refratores, ambos acoplados a arranjos de espelhos denominados celóstatos, montados para acompanhar o Sol em seu movimento diário e projetar sua imagem de volta no equipamento. O telescópio principal tinha sido retirado do próprio Observatório de Greenwich. Tinha um campo de visão bem amplo, que, em tese, possibilitaria fotografar mais estrelas no entorno do Sol durante o eclipse. Sua abertura era de 13 polegadas, montada em um celóstato de 16 polegadas. O menor era uma espécie de equipamento reserva. Tinha abertura de 4 polegadas e se acoplava a um celóstato de 8 polegadas. O equipamento fora emprestado pelo astrônomo jesuíta britânico Aloysius Cortie (1859-1925).

Os cientistas chegaram ao município cearense no dia 30 de abril de 1919 e foram recepcionados pelo então prefeito de Sobral, Jácome de Oliveira. “Em seguida, conheceram o coronel Vicente Saboya, que havia cedido uma de suas casas para hospedar os visitantes estrangeiros”, conta o físico Emerson Ferreira de Almeida, da Universidade Estadual Vale do Acaraú, em Sobral. “As observações seriam feitas no Jockey Clube da cidade.” Outras duas expedições com equipamentos mais modestos, uma brasileira e outra norte-americana, juntaram-se aos astrônomos ingleses dias mais tarde em Sobral. Suas medições, contudo, não tinham como objetivo verificar a validade da teoria da relatividade e não foram usadas na comprovação das ideias de Einstein (ver reportagem).

Apesar das polêmicas, as conclusões de Eddington e Dyson se mostraram corretas nas décadas seguintes

Do outro lado do Atlântico, Eddington e sua equipe haviam desembarcado no porto de Santo António, na ilha do Príncipe, no dia 23 de abril de 1919. Na bagagem, levaram um telescópio cedido pelo Observatório de Cambridge, semelhante ao de maior porte enviado a Sobral. O tempo na ilha no dia do eclipse não foi dos melhores. O céu nublado prejudicou a qualidade das imagens produzidas. Em algumas placas, as estrelas apareciam de forma mais clara, em outras, sumiam em meio ao céu encoberto. “O dia também amanheceu nublado em Sobral”, conta o astrônomo Carlos Veiga, da Coordenação de Astronomia e Astrofísica do Observatório Nacional. “Aos poucos, porém, as nuvens se dissiparam e um clarão se abriu entre elas.” Pouco antes das 9 horas da manhã na cidade cearense, o disco da Lua começou a sobrepor-se ao do Sol, encobrindo-o por completo minutos depois. O eclipse durou 5 minutos e 13 segundos.

A equipe de Greenwich ficaria em Sobral até julho daquele ano para fotografar o mesmo campo estelar à noite, sem a influência gravitacional do Sol. Eddington, que estava na ilha do Príncipe, no entanto, voltou para a Inglaterra antes da equipe de Sobral e produziu imagens do mesmo campo estelar no céu de Oxford. O ideal era que essas imagens de comparação tivessem sido obtidas no local de observação do eclipse.

Resultados divergentes
Os astrônomos produziram três conjuntos de placas fotográficas para medir a deflexão da luz das estrelas próximas à coroa do Sol. Em Sobral, o telescópio principal registrou 12 estrelas e o auxiliar sete. O equipamento enviado à ilha do Príncipe captou cinco estrelas. Os três mediram algum nível de desvio da luz das estrelas durante o eclipse, confirmando a ideia defendida tanto por Newton como por Einstein. Mas os resultados de cada equipamento foram diferentes, com margens de erro distintas. Dois favoreciam os cálculos de Einstein. Um estava mais próximo das ideias de Newton.

Os cálculos mais confiáveis foram obtidos a partir das imagens mais nítidas captadas do eclipse — ironicamente obtidas com o menor telescópio enviado a Sobral. As análises de suas placas fotográficas, feitas depois que a equipe retornou ao Reino Unido, indicavam uma deflexão da luz de 1,98 segundo de arco (com 0,12 segundo de arco de erro), mais do que Einstein havia calculado. Todas as imagens produzidas pelo telescópio maior usado na cidade cearense estavam borradas ou fora de foco. “Isso possivelmente ocorreu porque o Sol aqueceu seu arranjo de espelhos, desregulando-os”, sugere o físico Ramachrisna Teixeira, da USP. A partir da análise desse material sabidamente de qualidade inferior, a equipe de Sobral encontrou uma forma de medir o desvio da luz e chegou a uma deflexão de 0,86 segundo de arco na trajetória da luz das estrelas fotografadas. O valor calculado estaria alinhado com as projeções baseadas na teoria gravitacional de Newton. No entanto, devido à precariedade das imagens, o valor da deflexão obtida a partir dos registros do telescópio maior foi desconsiderado na análise final dos britânicos.

Acervo do Observatório Nacional Placas fotográficas produzidas pela equipe brasileira para fazer observações espectroscópicas da coroa solarAcervo do Observatório Nacional

Na ilha do Príncipe, em razão do tempo ruim, as imagens de muitas estrelas ficaram imersas no halo difuso causado pela luz do Sol ou encobertas pelo disco da Lua. A turbulência atmosférica prejudicou ainda mais a qualidade das fotografias. Apesar das adversidades, Eddington conseguiu analisá-las e compará-las com as fotos do mesmo campo estelar tiradas por ele mais tarde em Oxford. O resultado foi uma deflexão de 1,61 segundo de arco, com margem de erro de 0,30 segundo de arco, valor ligeiramente inferior ao previsto por Einstein. “O maior peso deve ser dado aos obtidos com a lente de 4 polegadas em Sobral. Da superioridade de suas imagens e da maior escala das fotografias, foi reconhecido que esses [resultados] provaram ser muito mais confiáveis”, afirmaram Dyson, Eddington e Davidson em texto de 6 de novembro de 1919 que anunciou uma conclusão favorável às previsões de Einstein durante reunião na Real Sociedade de Astronomia, em Londres.

Apesar das polêmicas que surgiram mais tarde, as conclusões de Dyson e Eddington se mostram corretas. Vários outros eclipses foram observados ao longo das décadas seguintes, e as medições sempre apontaram para uma deflexão próxima à calculada por Einstein. A confirmação de sua teoria ajudou a ampliar as perspectivas de pesquisas no campo da física, astronomia e cosmologia. “As ideias do físico alemão foram muito bem interpretadas pelo físico soviético Alexander Friedmann [1888-1925], que, usando Einstein, afirmou que as galáxias estavam se afastando de nós porque o espaço-tempo, ou seja, o Universo, estava se expandindo”,  destaca Carvalho.

A relatividade geral também abriu caminho para a difusão de conceitos importantes para a astrofísica, como a existência de buracos negros (regiões do espaço-tempo extremamente compactas, onde a gravidade é tão forte que nem a luz escapa) e das ondas gravitacionais, perturbações na curvatura do espaço-tempo que se propagam como ondas. Esse último fenômeno foi confirmado apenas no início de 2016.

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