Declarado o Ano Internacional de Águas Doces pela Organização das Nações Unidas (ONU), 2003 espera boas notícias para a preservação dos recursos hídricos no planeta. O consumo de água cresce junto com o aumento da população e com o incremento das atividades agrícolas e industriais. Uma situação que não pode dispensar o reuso da água, até como meio de preservar as fontes naturais, como rios, lagos e represas. Um grupo de pesquisadores da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da Universidade de São Paulo e da Escola de Engenharia Mauá (EEM) do Instituto Mauá de Tecnologia, em São Caetano do Sul, pode estar contribuindo para uma boa notícia.
Eles estão desenvolvendo vários equipamentos que vão resultar em novos reatores para tratamento de esgotos e disponibilizar a água resultante para usos menos nobres e sem necessidade de potabilidade, como em atividades industriais, lavagens de rua ou para a irrigação de culturas, cujos produtos não sejam consumidos sem cozimento.
O foco dos estudos desses pesquisadores são sistemas para tratamento de esgotos sanitários e efluentes industriais, que utilizam microrganismos anaeróbios (bactérias e suas parentes, arqueas, que não necessitam de oxigênio para sobreviver) para fazer a purificação dessas águas residuárias. Embora ainda pouco utilizado no país, esse processo biológico possui uma longa e tradicional linha de estudos. Na EESC, desde os anos de 1970, pesquisadores estudam e desenvolvem novas configurações de reatores anaeróbios.
Depois de tantas pesquisas, chegou a hora de alguns dos sistemas estudados serem colocados em prática. Segundo o engenheiro Eugênio Foresti, diretor da Escola de Engenharia de São Carlos, estão sendo mantidos contatos com o governo do Estado de São Paulo visando a montagem de uma estação piloto de tratamento anaeróbio em uma cidade de pequeno porte na região de São Carlos. É a oportunidade que faltava para os pesquisadores apresentarem, na prática, a eficácia do processo.
Baixo custo
“Mantivemos os primeiros contatos e esperamos implantar logo um sistema anaeróbio em escala demonstrativa no tratamento de efluentes”, afirma Foresti, que está na coordenação de um terceiro projeto temático financiado pela FAPESP sobre o assunto. “Estamos desenvolvendo tecnologias alternativas de baixo custo e mais adequadas ao país”, diz Foresti. Cinco tipos de reatores são estudados no temático: horizontal de leito fixo, de leito expandido-fluidificado, de membrana, em batelada seqüencial e híbrido. Os quatro primeiros sistemas são inovadores e o quinto trata-se de uma modificação e aprimoramento de um reator, também conhecido como UASB (Up-flow Anaerobic Sludge Blanket), ou reator anaeróbico de manta de lodo e escoamento ascendente, desenvolvido na Holanda na década de 1970.
Os sistemas biológicos anaeróbios nasceram como uma alternativa aos processos aeróbios (que exigem a presença de oxigênio para viver), uma tecnologia bem mais consolidada e empregada. Os dois sistemas utilizam de microrganismos que se alimentam dos poluentes presentes nos esgotos domésticos e efluentes industriais. Em outras palavras, eles eliminam a matéria orgânica que está dissolvida e particulada na água. Por não precisarem de oxigênio, os anaeróbios apresentam uma vantagem sobre os processos aeróbios, que é o baixo consumo de energia, uma vez que não necessitam de nenhum processo de aeração.
“O gasto energético dos tratamentos anaeróbios equivale, em média, a 30% do gasto dos aeróbios”, afirma Foresti. Outra vantagem dos processos anaeróbios é a menor produção de lodo, que não chega a 10% do que é gerado nos aeróbios. O resultado disso é uma considerável economia no manejo e na destinação final desse tipo de resíduo, um subproduto indesejado dos tratamentos aeróbios.
Com vantagens tão claras, fica a pergunta: porque até hoje os sistemas de tratamento anaeróbios são tão pouco empregados no Brasil? As razões são, em parte, históricas. No começo da década de 1980, foram iniciados estudos no país para uso do reator UASB. A exploração inadequada desse reator por alguns profissionais com pouco conhecimento sobre o sistema gerou desconfianças quanto à sua confiabilidade.
Um dos problemas era o forte odor exalado pelos reatores, resultado da produção de gás sulfídrico, um subproduto do tratamento anaeróbio. “Naquela época, nós não conhecíamos efetivamente todos os detalhes sobre o sistema. Queimamos etapas indevidamente e isso trouxe marcas que permanecem até hoje”, reconhece Foresti. Com o aprimoramento da tecnologia, muitas daquelas deficiências foram sanadas. Hoje existem vários trabalhos que tratam da remoção ou estabilização das substâncias que provocam o odor nos sistemas anaeróbios. Assim, esses sistemas estão, pouco a pouco, ocupando seu espaço. “Eles são cada vez mais empregados em unidades industriais.”
Os defensores da tecnologia anaeróbia fazem questão de frisar: esses sistemas não estão sendo desenvolvidos para substituir os aeróbios, mas sim para complementá-los. Segundo Foresti, o sistema ideal deveria combinar o uso dos dois tipos de reatores. Os sistemas anaeróbios requerem outro complementar que pode ser tanto o aeróbio quanto os físico-químicos (microfiltragem, precipitação química seguida de sedimentação, ozonização, desinfecção por cloro ou radiação ultra-violeta) para que os efluentes possam atingir padrões de qualidade . “Sem dúvida, o modelo ideal seria a combinação de um processo anaeróbio seguido de um aeróbio, ficando o segundo responsável apenas pelo pós-tratamento e não pela remoção da carga orgânica presente nas águas residuárias. É nisso que estamos trabalhando”, afirma Foresti. O resultado seria um sistema mais barato, com menor produção de lodo e altamente eficiente.
A Escola de Engenharia Mauá também produziu, nos últimos anos, vários estudos relacionados aos processos anaeróbios de tratamento de águas residuárias, dentro de um projeto do Programa Jovem Pesquisador da FAPESP, coordenado pelo professor José Alberto Domingues Rodrigues. “Em quatro anos de trabalho (entre 1998 e 2002), conseguimos montar o Laboratório de Engenharia Bioquímica e consolidar nossa área de pesquisa”, diz Rodrigues. Ele e outros pesquisadores da instituição, como os professores Walter Borzani e Suzana Ratusznei, investigam processos de tratamento operados nos chamados modos batelada e batelada alimentada. Esses processos são relacionados à forma como os reatores anaeróbios fazem o tratamento da água residuária. Se rápido, é batelada simplesmente; se lento, é alimentada.
Configuração ideal
Para realizar suas experiências, os pesquisadores do Laboratório de Engenharia Bioquímica da Mauá contam com cinco reatores. “Uma vez que esses reatores ainda são pouco conhecidos, estamos estudando vários aspectos relacionados às suas condições operacionais. Nosso objetivo, com esses estudos, é conferir flexibilidade aos sistemas anaeróbios descontínuos, em equipamentos que recebem água residuária de forma intermitente, como nas indústrias de laticínios”, diz o pesquisador da Escola de Engenharia Mauá.
“Ainda não conseguimos chegar a uma configuração ideal de um desses reatores para uso industrial, mas imagino que até o final de 2005, num projeto temático iniciado em setembro de 2002, em parceria com a EESC e a Universidade Federal de São Carlos (UFScar), teremos feito avanços significativos.”
OS PROJETOS
Estrutura, Composição, Crescimento e Dinâmica de Biofilmes em Sistemas Mistos Anaeróbios/Aeróbios de Tratamento de Águas Residuárias
Modalidade
Projeto temático
Coordenador
Eugênio Foresti – Escola de Engenharia de São Carlos da USP
Investimento
R$ 199.348,70 e US$ 48.393,40
Desenvolvimento de Processos Anaeróbios em Batelada e Batelada Alimentada para Tratamento de Águas Residuárias
Modalidade
Programa Jovem Pesquisador
Coordenador do projeto
José Alberto Domingues Rodrigues – Escola de Engenharia Mauá do Instituto Mauá de Tecnologia
Investimento
R$ 104.471,67 e US$ 95.890,23