Uma rede nacional de pesquisadores dedicados a expandir o conhecimento sobre a biodiversidade brasileira começou a tomar forma, mostrou a primeira reunião de avaliação do Sistema Nacional de Pesquisa em Biodiversidade (Sisbiota). A iniciativa é coordenada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e reúne órgãos de três ministérios além de 14 fundações estaduais de amparo à pesquisa, as FAPs. A reunião, realizada entre 3 e 6 de junho em Brasília, contabilizou o envolvimento de 356 instituições e 1.127 pesquisadores de todo o país. “Há projetos que estão sendo realizados em todos os biomas brasileiros, graças à formação de redes e à descentralização da pesquisa”, explica Roberto Berlinck, professor do Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP) e membro da coordenação do Biota-FAPESP, programa criado em São Paulo em 1999 que serviu de referência para o Sisbiota nacional. Berlinck coordenou a equipe de oito docentes que fez a avaliação dos 39 projetos do Sisbiota, que reunem 38 redes de pesquisa e um projeto de síntese do conhecimento.
A FAPESP cofinancia 14 projetos do programa, aqueles liderados por pesquisadores de instituições do estado de São Paulo. Um deles é coordenado por Vanderlan Bolzani, professora do Instituto de Química de Araraquara da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e também membro da coordenação do Biota-FAPESP. O estudo, que deve estar concluído até janeiro de 2014, concentra-se na prospecção de moléculas bioativas e no estudo da variabilidade de plantas e microrganismos do cerrado e da caatinga. Assim como outros projetos do Sisbiota, o de Vanderlan teve de estabelecer uma rede, que envolve 26 pesquisadores, 15 laboratórios e 8 instituições, como as universidades federais do Ceará, do Piauí e de Minas Gerais.
“Quanto mais colaboração temos com outros estados, melhor é o trabalho. Neste país há muita pesquisa de qualidade”, diz Vanderlan. Dentre os resultados obtidos por seu grupo, a professora destaca a recuperação de informações históricas, a prospecção de extratos vegetais com atividade citotóxica (antitumorais), a caracterização de princípios ativos e o uso de informações genômicas para controle de plantas medicinais. A professora conta que foram encontradas 28 amostras referentes a espécies de plantas pouco conhecidas pela ciência e que são vendidas em mercados populares. “As pessoas utilizam estas amostras sem saber do risco que correm ao consumi-las”.
A rede coordenada pela professora Maria de Lourdes Teixeira de Moraes Polizeli, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP em Ribeirão Preto, é exemplo de como o trabalho de catalogação de novas espécies pode render desdobramentos com aplicação no mercado. A pesquisa, que está ainda em andamento e conta com 123 pesquisadores espalhados pelo país, realiza a prospecção de fungos filamentosos produtores de enzimas que podem ser utilizadas em biorrefinarias para a produção, por exemplo, do bioetanol a partir do bagaço e da palha de cana-de-açúcar. Até o momento, já foram isolados aproximadamente mil fungos, dos quais 40% apresentaram bons níveis de produção enzimática.
“Se estamos fazendo catalogação de fungos, por que não explorar o potencial biotecnológico deles?”, questiona Maria de Lourdes, ao explicar os procedimentos de seu trabalho. A professora afirma que o potencial do fungo para a produção de enzimas varia de acordo com o bioma. O Aspergillus niger, por exemplo, é encontrado em diversos ecossistemas. Seu potencial enzimático, no entanto, difere se ele é da Amazônia ou da caatinga.
O valor financiado para o projeto no período de três anos foi de R$ 2 milhões e sua prorrogação até março de 2015 foi aceita pelo Sisbiota. De acordo com a professora, o trabalho em rede permitiu que ela conhecesse realidades com as quais não tinha contato. “No Amazonas a equipe precisou fazer coletas de fungos a cavalo, porque muitos locais ainda são de mata virgem. Em muitos casos é necessário usar métodos primitivos para fazer ciência de ponta”, afirma. Maria de Lourdes chama a atenção para a importância da continuidade do programa. Isso porque não há a preocupação de produzir apenas papers, mas também de aproveitar industrialmente as descobertas e gerar patentes.
A permanência do programa a longo prazo, por meio de novas chamadas, ainda não foi definida. De acordo com Denise de Oliveira, analista em ciência e tecnologia do CNPq e gestora do primeiro edital do Sisbiota, os projetos que estão em andamento tiveram a recomendação do comitê avaliador de serem estendidos por mais um ano. “Os projetos receberam muitos elogios pela forma como estão sendo conduzidos, mas alguns foram prejudicados pela falta de chuvas na região Nordeste, por exemplo. Por conta disso, a prorrogação dos prazos está sendo definida”, diz Denise. “A integração de pesquisas em rede não acontece de uma hora para outra. O conhecimento da biodiversidade exige pesquisas de longa duração.”
A garantia de financiamento de longo prazo ajuda a explicar o êxito do Biota-FAPESP. Conforme consta no documento básico do Sisbiota, a experiência do programa paulista ajudou a “delinear um programa de amplo escopo geográfico”. “Após completar 10 anos em 2009, o Biota-FAPESP serviu de inspiração para o governo federal. Foi uma estratégia bem-sucedida da Fundação, que inclusive entrou no Sisbiota com um aporte de quase R$ 8 milhões para financiar projetos”, explica Roberto Berlinck. “Com o Sisbiota, foi possível formar redes abordando diferentes problemas em diferentes biomas, trabalhando em complementaridade, evitando redundâncias, o que nos permite ter um quadro mais completo do conhecimento da biodiversidade nacional”, argumenta o professor, que também acredita que três anos é pouco tempo para que as pesquisas sejam consolidadas. “O Biota existe há 14 anos, o ideal é que o Sisbiota caminhe nesse sentido”, completa.
Outro projeto do Sisbiota cofinanciado pela FAPESP é o do professor do Instituto de Biociências da USP Antonio Carlos Marques. Ele coordena um estudo dedicado à síntese do conhecimento sobre organismos da zona costeiro-marinha brasileira. Chamado de Sisbiota-Mar, a rede mantém conexão com 15 estados e 35 instituições, entre as quais o Projeto-Tamar e a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). O projeto envolve mais de 100 pesquisadores, dos quais 26 são responsáveis pela articulação da rede em 8 estados, entre eles São Paulo, Pernambuco, Bahia e Santa Catarina. O projeto também estabeleceu parcerias com universidades nos Estados Unidos, Alemanha e Austrália.
Compilação
Com base em pesquisas que havia realizado no final da década de 1990 e início dos anos 2000, Marques pôde fazer uma comparação histórica. “Muita coisa mudou na nossa percepção sobre a diversidade marinha nos últimos 10 anos. Temos melhores quadros para trabalhar, coleções mais estruturadas, embora ainda não alcancemos o nível ideal”, afirma o pesquisador. Um dos objetivos do Sisbiota-Mar é ousado: adiantar ao máximo a compilação de registros de todas as espécies marinhas da costa nacional. O Brasil aderiu ao Sistema de Informação Biogeográfica Oceânica (Obis), uma plataforma global que já registrou 140 mil pontos em mares brasileiros, onde é possível localizar, em cada um, pelo menos uma espécie marinha. O projeto de Antonio Carlos incorporou à base do Obis, em apenas dois anos, mais 105 mil pontos.
“Se queremos ter conhecimento da nossa área oceânica, temos que investigar também a nossa biota marinha. Esse registro de dados de organismos marinhos será importante para o planejamento estratégico, a informatização e a criação de políticas de melhor exploração, além de ajudar na proposição e elaboração de unidades de conservação com mais eficiência”, ressalta o professor.
Descentralização
Para organizar os distintos objetivos de cada rede, foram estruturadas três grandes linhas de pesquisa. A primeira foi a síntese e lacunas do conhecimento da biodiversidade brasileira, com projetos de R$ 150 mil a R$ 600 mil. Já a segunda organizou a pesquisa em redes temáticas para ampliação do conhecimento sobre a biota, o papel funcional, uso e conservação da biodiversidade brasileira, abarcando projetos de até R$ 2 milhões. E a terceira tratou do entendimento e previsão de respostas às mudanças climáticas e nos usos da terra, financiando projetos de até R$ 650 mil.
“A avaliação do Sisbiota foi importante para que nós, pesquisadores, ficássemos sabendo de trabalhos que não imaginávamos que estavam sendo feitos; há uma grande riqueza de dados”, destaca Vanderlan Bolzani. Segundo ela, além de pesquisas com plantas, existem muitas outras em curso sobre insetos e peixes, inclusive girinos. É o caso da rede apoiada pela FAPESP que estuda os girinos de anuros (anfíbios que em estado adulto não possuem cauda, como a rã e o sapo) em nove diferentes biomas e formações vegetais associadas, como a mata atlântica e o cerrado. Coordenado pela professora Denise de Cerqueira Rossa-Feres, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Unesp, o projeto envolve 14 universidades públicas de 10 estados, entre elas as federais do Alagoas, do Paraná e de São Paulo, e instituições internacionais colaboradoras, como a University of South Florida, dos Estados Unidos, e o Gordon Leslie Diamond Care Centre, do Canadá. Ao todo, somam-se 25 pesquisadores, dois dos quais são estrangeiros.
Denise explica que inicialmente estava prevista a coleta de amostras de girinos em 320 corpos d’água (poças, brejos, lagos e riachos). O número saltou para 784 ao longo da pesquisa, e é previsto alcançar um número próximo de mil corpos d’água até o final do projeto. Até o momento, foram registrados girinos de mais de 300 espécies, muitas ainda em fase de identificação. “O mais importante é que a amostragem está sendo conduzida de forma padronizada, desde a caracterização do ambiente até o método e esforço de coleta dos girinos. A base de dados será totalmente integrada e comparável, possibilitando inúmeras análises de processos e testes de hipóteses”, explica a pesquisadora. O principal objetivo é compreender quais fatores “montam” uma comunidade e determinam quais e quantas espécies vão ocorrer.
Pesquisa interdisciplinar
Um ponto muito comentado pelos coordenadores das redes durante a reunião de avaliação foi a oportunidade concreta de realizar pesquisas interdisciplinares. Segundo Denise de Oliveira, do CNPq, como a maioria das redes é composta por especialistas de diferentes áreas, como ecologia, biologia, química e clima, o conhecimento interdisciplinar resultante do Sisbiota é singular. “Mas recebemos recomendações para que as redes sejam mais descentralizadas, porque a gestão financeira ainda é um desafio para o pesquisador”, afirma ela. Como cada rede é composta por subprojetos, alguns coordenadores argumentam que seria mais simples se cada um tivesse autonomia para lidar diretamente com o recurso proveniente do CNPq e da fundação de amparo. O problema, diz Denise, é que há restrições jurídicas para que os recursos das FAPs sejam executados fora de seu estado.
“Essa discussão é uma faca de dois gumes”, pondera Maria de Lourdes. Para ela, uma das vantagens da centralização dos recursos é a possibilidade de obter descontos na compra de muitos equipamentos de uma só vez. “Comprei para todo o grupo sete aparelhos que fazem a leitura da atividade enzimática. O fato de eu ter comprado todos de uma só vez fez o preço ser reduzido. Se cada coordenador regional tivesse comprado o seu, o valor seria mais caro.” O aspecto negativo da centralização, aponta ela, é o fato de o coordenador ficar sobrecarregado com questões administrativas e logísticas. “Em São Paulo, a FAPESP tem insistido para que as instituições tenham seus próprios escritórios de gerenciamento de recursos de projetos, como é o caso do Instituto de Biociências da USP, que criou esse serviço capaz de tirar um pouco do peso das costas do coordenador”, afirma Antonio Carlos Marques.
Republicar