Imprimir PDF Republicar

Ciência política

Registros na Receita Federal ajudam a mapear expansão evangélica no país

Pesquisador criou algoritmo que mostra onde templos foram construídos entre 1922 e 2019

Fiel em culto da igreja Assembleia de Deus, no Rio de Janeiro. Estado e Espírito Santo concentram o maior número de igrejas evangélicas no país

Carl de Souza/AFP via Getty Images

A principal fonte de informações sobre a afiliação religiosa da população brasileira é o Censo Demográfico, realizado a cada 10 anos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para sociólogos e outros pesquisadores da religião, esse intervalo é longo demais. A população evangélica no Brasil passou a crescer em ritmo acelerado desde a década de 1960, deixando os dados do Censo rapidamente defasados.

“Fala-se muito que a população evangélica está aumentando no país, mas não sabemos exatamente de que forma isso vem acontecendo nem onde esse crescimento começou, por exemplo”, afirma o cientista político brasileiro Victor Araújo, da Universidade de Reading, no Reino Unido. “O Censo é uma fotografia e não temos dados dinâmicos do que acontece entre as edições da pesquisa do IBGE.”

Entrevista: Victor Araújo
00:00 / 14:12

Se na década de 1960 mais de 90% dos brasileiros se declaravam católicos, até 2040 o evangelicalismo, em suas diversas denominações, deverá ser o maior grupo religioso do país. O fenômeno que o Brasil atravessa é conhecido como “transição religiosa”. Em parte da Europa isso aconteceu de forma estendida durante as guerras religiosas dos séculos XVI e XVII, mas aqui, de acordo com Araújo, o processo poderá ser mais breve e levar menos de 100 anos.

Para identificar como as igrejas evangélicas se distribuem no território nacional, Araújo recorreu a outra fonte de informação: utilizou dados da Receita Federal, disponíveis on-line. Como há mais de 152 mil estabelecimentos religiosos inscritos no país, o cientista político desenvolveu um algoritmo na linguagem de programação R, com código aberto, que pode ser acessado por pesquisadores e demais interessados no tema.

Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

O método permitiu detectar e classificar os templos registrados na Receita Federal de acordo com as categorias empregadas nos censos do IBGE. São elas: as missionárias, mais antigas, como a Batista, a Presbiteriana e a Metodista; as pentecostais, cuja doutrina contém elementos ausentes das missionárias, como a crença em milagres, e incluem Assembleia de Deus, Congregação Cristã do Brasil e Deus é Amor; e as neopentecostais, fenômeno surgido no fim da década de 1970 no Brasil, que enfatiza a teologia da prosperidade e inclui igrejas como Universal do Reino de Deus, Sara Nossa Terra e Renascer em Cristo. Há ainda as igrejas de “classificação não determinada”.

Os resultados foram publicados na nota técnica “Surgimento, trajetória e expansão das igrejas evangélicas no território brasileiro ao longo do último século (1920-2019)”, divulgada recentemente pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM), da Universidade de São Paulo (USP), ao qual Araújo está associado no Brasil. O CEM é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. “O levantamento traz um dado adicional para nós, pesquisadores desse campo, porque o Censo Demográfico do IBGE nada diz a respeito da criação de templos”, afirma o sociólogo Ricardo Mariano, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP).

Graças ao recurso digital, o pesquisador mapeou a história da transição religiosa no país entre 1920 e 2019. Araújo assinala que a legislação sobre igrejas foi alterada diversas vezes, mas o registro mais antigo ainda ativo na Receita Federal é de 1922. Trata-se de uma igreja de denominação batista em Nova Iguaçu (RJ). Como escreve na nota técnica, isso não significa que essa seja a primeira igreja evangélica inaugurada no Brasil. Registros históricos indicam, por exemplo, a existência de uma congregação da Assembleia de Deus fundada em 1911 em Belém (PA).

No Brasil, as organizações religiosas são obrigadas a ter o Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) desde 2002, como estabelece o artigo 44 do Código Civil. A exigência também é prevista na Lei n° 10.825/2003. “A legislação institui que as igrejas são pessoas jurídicas de direito privado. Portanto, necessitam ter inscrição na Receita Federal e, por consequência, o CNPJ para, por exemplo, abrir conta bancária e contratar funcionários”, informa Armando Rovai, presidente da Comissão Especial de Advocacia Empresarial da Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo (OAB-SP). O CNPJ foi criado em 1998. Antes havia o Cadastro Geral de Contribuintes (CGC), instituído em 1964.

Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESP Muitas pequenas congregações não se sentem na obrigação de se formalizarem na Receita Federal, diz o sociólogo Ricardo MarianoLéo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESP

Na avaliação de Araújo, a transição religiosa é “um dos fenômenos demográficos mais importantes do Brasil contemporâneo”. O processo se acelerou principalmente a partir da década de 1960, acompanhando a urbanização e a industrialização do país. “Quando as pessoas se mudavam para as novas periferias das cidades, ainda não havia ali paróquias católicas. Quem chegou primeiro nessas localidades foram os evangélicos porque podiam abrir templos sem precisar recorrer ao Vaticano, como era o caso dos católicos”, relata o pesquisador, autor do livro A religião distrai os pobres?: O voto econômico de joelhos para a moral e os bons costumes (Edições 70, 2022).

Até hoje, as regiões que mais se urbanizaram são os maiores bastiões do evangelismo brasileiro. Dentre as unidades da federação, Espírito Santo e Rio de Janeiro concentram o maior número de igrejas evangélicas – mais de 80 templos por 100 mil habitantes, em ambos os casos. Ou seja, nessas localidades existe uma igreja evangélica para cada 1.250 moradores, revela o levantamento. Já o Nordeste continua sendo amplamente católico, embora os evangélicos predominem nas regiões metropolitanas das capitais.

Para o antropólogo Ronaldo de Almeida, coordenador do Laboratório de Antropologia da Religião da Universidade Estadual de Campinas (LAR-Unicamp), o mapeamento dos templos realizado por Araújo corrobora pontos que os estudos da religião vêm buscando mostrar nesses últimos anos. Um deles é a aceleração do crescimento do evangelismo na década de 1980, quando o Censo começou a sinalizar com maior acuidade a presença dessa população no país.

Outro ponto é a expansão territorial dessas igrejas detectada no Censo 2000. “É possível perceber o crescimento de igrejas evangélicas em áreas de imigração recente”, acrescenta Almeida, que também é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). “As regiões Norte e Centro-Oeste, fronteiras da expansão agrícola nas últimas décadas, receberam muitos agricultores do sul do país, onde a presença protestante é historicamente forte.” As primeiras igrejas a se instalarem, junto com os migrantes, eram de orientação missionária. Na última década, porém, igrejas pentecostais e neopentecostais avançaram mais rapidamente.

Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESP Ao lado, o Templo de Salomão, da Igreja Universal, no bairro paulistano do Brás. No Brasil, organizações religiosas são obrigadas a ter CNPJ desde 2002Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESP

É o caso de Rondônia. De acordo com o mapeamento, no ranking dos estados com maior número de igrejas evangélicas, Rondônia ocupava o antepenúltimo lugar em 1970. Entretanto, a partir do ano 2000 passou a figurar entre os cinco primeiros colocados. Em 2019, abrigava 60 templos por 100 mil habitantes e era um dos estados brasileiros mais próximos de completar a transição religiosa, ao lado de Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul e Espírito Santo.

A contagem dos templos não expressa com precisão a quantidade desses fiéis no Brasil. Afinal, uma capela e uma catedral têm um único registro no CNPJ, mas comportam públicos incomensuráveis. “Como em todo estudo, há limitações. É difícil captar a expansão dos evangélicos no último século no país, mas o registro dos templos é uma variável complementar que contribui para enxergar o que ocorreu no Brasil ao longo desse recorte temporal”, afirma Almeida.

Além disso, muitas igrejas operam clandestinamente, sem CNPJ: um líder religioso pode, por exemplo, realizar cultos na sala ou garagem de sua casa. “Muitas pequenas congregações não se sentem na obrigação de se formalizarem. A subnotificação é grande”, observa Mariano. Também não constam do levantamento igrejas que foram abertas no período analisado, mas que, por algum motivo, já não estavam ativas em 2019. É possível, ainda, que indivíduos registrem CNPJ de igrejas com finalidade não religiosa, mas esses casos não são identificáveis nos dados do Fisco, como alerta Araújo.

Ainda assim, os dados relativos aos anos em que houve Censo, como 2000 e 2010, estão alinhados aos números divulgados pelo IBGE. “Para os anos não censitários, quando não é possível fazer a comparação, é provável que a classificação também esteja próxima do que seria se os dados fossem coletados todo ano”, diz Araújo.

Segundo o cientista político, a disponibilização da ferramenta para outros pesquisadores é um dos objetivos de seu estudo. “Qualquer pessoa com um conhecimento intermediário de programação e um computador com capacidade padrão de processamento pode replicar os procedimentos”, afirma Araújo. O pesquisador pretende atualizar as informações contidas no estudo à medida que novos dados forem disponibilizados no site da Receita Federal, bem como comparar os resultados com os números que serão divulgados pelo Censo de 2022.

Projeto
Centro de Estudos da Metrópole (CEM) (nº 13/07616-7); Modalidade Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Eduardo Cesar Leão Marques; Investimento 21.233.150,42 (para o período de 10 anos).

Republicar