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Meteorologia

Relâmpago nos pampas

Perigosos e raros, os raios positivos são cinco vezes mais freqüentes no oeste gaúcho do que no resto do país

ELAT/INPERaio positivo observado em Uruguaiana: 25% das descargas elétricas na região são desse tipoELAT/INPE

Mais raros e mais destrutivos, os raios positivos respondem por apenas 5% do total de descargas elétricas que saem das nuvens e atingem algum ponto da Terra. No Sudeste, a região do território nacional mais bem monitorada, essa também é a sua prevalência. Mas dados coletados nos últimos três anos pelos sensores da Rede Brasileira de Descargas Atmosféricas (BrasilDat) e medições de campo realizadas nos dois últimos verões esboçam um quadro bastante distinto e preocupante num outro canto do país. No oeste e norte do Rio Grande do Sul e no oeste de Santa Catarina, a formação de raios positivos é até cinco vezes mais freqüente e as descargas desse tipo representam 25% do total. “Índices semelhantes são conhecidos apenas em duas áreas do planeta, no centro dos Estados Unidos e no Japão”, compara Osmar Pinto Junior, coordenador do Grupo de Eletricidade Atmosférica (Elat) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em São José dos Campos, interior paulista, que está à frente dos estudos sobre raios. “Precisamos prestar atenção a essa situação distinta do Sul.” Incêndios florestais e danos na rede de força elétrica causados por raios são geralmente debitados na conta das descargas positivas.

Algumas particularidades tornam os raios positivos potencialmente mais perigosos. Embora não seja uma regra absoluta, a intensidade de sua corrente elétrica tende a ser mais elevada do que nas descargas negativas. Em casos extremos, pode ser até dez vezes maior e chegar a 300 mil ampère. Se o valor da corrente não é necessariamente maior, o tempo de duração da descarga sobre o chão é sempre mais longo. “Os raios positivos tocam o solo e se mantêm conectados por centenas de milissegundos”, comenta o físico Marcelo Saba, do Elat, que participa dos trabalhos de campo de caça às descargas elétricas. Nos municípios gaúchos de Uruguaiana e Santa Rosa, os pesquisadores flagraram raios positivos que permaneceram transferindo eletricidade para o ambiente terrestre por mais de 500 milissegundos, o dobro do tempo médio de um raio negativo. Descargas duradouras são mais destrutivas do que as mais breves, ainda que ambas apresentem a mesma corrente elétrica. O ar em torno de um raio dessa magnitude pode atingir, por frações de segundo, temperaturas cinco vezes maiores do que na superfície do Sol.

Compostas de gotículas de água e partículas de gelo de várias dimensões, as nuvens de tempestade do tipo cúmulo-nimbo, que originam a maioria dos relâmpagos, e podem ser comparadas a uma pilha. Em razão da ação de correntes ascendentes e descendentes de ar e também da gravidade, essas partículas se chocam, tornam-se carregadas eletricamente e se separam em dois pólos: no topo, ficam as partículas menores (cristais), de carga positiva, e na ba­se se encontram as maiores (granizo), carregadas negativamente. Esse sistema se encontra em equilíbrio, pois vale lembrar que cargas elétricas de polaridade distinta se atraem. As nuvens de tempestade originam raios quando algum desequilíbrio nesse sistema faz com que o campo elétrico produzido por todas essas cargas ultrapasse a capacidade isolante do ar num dado ponto dentro da nuvem. Nesse momento surge um raio. Cerca de 70% dos raios permanecem dentro da nuvem ou na própria atmosfera e apenas 30% rumam para o solo. Se o relâmpago que desce para a Terra é dotado de corrente negativa, esse raio vai procurar o melhor caminho na atmosfera que o conduza a um ponto do solo carregado de corrente positiva – e vice-versa. Como se sabe, os pólos opostos se atraem.

Sem ramificações
Dada essa breve explicação sobre a distribuição das cargas elétricas nas nuvens do tipo cúmulo-nimbo, fica relativamente fácil de entender por que a ocorrência de raios positivos que tocam o solo se mostra, em qualquer parte do globo, bem menos freqüente do que a dos negativos. Como o setor inferior das nuvens está mais próximo da superfície da Terra, as descargas com corrente negativa são mais fáceis de observar e tornam-se quase corriqueiras em dias de forte chuva. Já boa parte dos raios originados no topo das nuvens, onde estão as cargas positivas, permanece dentro dessas próprias formações, entre 5 e 20 quilômetros acima do nível do solo. Algumas dessas descargas originadas no andar superior das tempestades, no entanto, escapam da formação chuvosa e atingem o chão. Em sua descida, os raios positivos costumam queimar o ar como se fossem um único fio de luz e eletricidade, quase sempre sem as ramificações comumente observadas em torno das descargas negativas. Podem percorrer trajetos relativamente longos na atmosfera e cair a mais de dez quilômetros de distância da nuvem que o gerou.

Não há nenhuma evidência científica de que a maior incidência de raios positivos no Sul do país seja um fenômeno atmosférico recente ou esteja ligado às tão decantadas mudanças climáticas aparentemente em curso na Terra. “Não temos uma série histórica da ocorrência dessas descargas no Rio Grande do Sul, mas acho que não se trata de algo realmente novo”, comenta Pinto Junior, cujos estudos foram, em parte, financiados por um projeto temático da FAPESP. Provavelmente, a região exibe a peculiaridade há décadas, talvez séculos, e simplesmente ninguém a percebeu. Não é de estranhar que isso tenha ocorrido. Até o final de 2006, não havia meios confiáveis de medir esse tipo de ocorrência na porção meridional do país. Desde então, a abrangência da BrasilDat, que se limitava aos estados do Sudeste, passou a incluir todos os estados do Sul. Só então as primeiras informações mais detalhadas sobre os raios dessa parte do Brasil começaram a ser geradas.

Os pesquisadores suspeitam que a maior ocorrência de descargas positivas na região de Uruguaiana e Santa Rosa possa estar ligada a uma característica climática local: ali ocorre com freqüência o choque de massas de ar frias e secas, vindas da Argentina, e massas de ar quentes e úmidas originadas na Amazônia. O produto dessas colisões, que também acontecem na Argentina, Paraguai e Uruguai, são fortes tempestades, que, em tese, podem originar a porcentagem anormal de descargas positivas. Há alguns indícios de que nos últimos dez anos as tempestades no Sul estão se tornando mais intensas, com grande quantidade de chuva e raios concentrados em poucas horas, mas ainda é cedo para relacionar uma coisa à outra. Agora, em plena primavera, munida de sensores de campo elétrico e câmeras de vídeo que produzem 8 mil quadros por segundo, uma equipe do Elat faz uma campanha em Santa Maria, município no centro do Rio Grande do Sul, para observar in loco mais raios positivos. “Desde 2003 filmamos cerca de 1.500 raios no país”, afirma Saba. “Mas apenas 50 eram positivos.”

O Projeto
Programa nacional de monitoramento de raios (Pronar) (nº 03/08655-4); Modalidade Projeto Temático; Co­or­de­na­dor Osmar Pinto Junior – Inpe; Investimento R$ 673.089,30

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