Pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) realizaram duas descobertas importantes em um mesmo estudo. Primeiro, eles identificaram a provável causa dos problemas cardíacos que afetam as pessoas tratadas com doxorrubicina, antibiótico naturalmente produzido por bactérias e amplamente usado para combater alguns dos tipos mais comuns de câncer. Em experimentos com ratos, eles verificaram que esse composto destrói a distrofina, proteína que mantém a forma e permite a contração das células cardíacas. No mesmo trabalho, a pesquisadora Érica Carolina Campos, da equipe do patologista Marcos Rossi, encontrou uma forma promissora de reduzir os danos da doxorrubicina no coração.
A doxorrubicina é um composto derivado das antraciclinas, isoladas na década de 1960 a partir da bactéria Streptomyces peucetius. Desde então tem sido usada como quimioterápico por causa de seu amplo espectro de atividade. “As antraciclinas causam danos irreversíveis às células tumorais por se intercalarem no DNA, inibirem a síntese de proteínas e produzirem espécies reativas de oxigênio, causando a morte celular”, explica Rossi. “Por isso, elas sempre foram consideradas um dos medicamentos mais eficazes no tratamento de tumores humanos.”
Com o tempo, no entanto, verificou-se que a doxorrubicina produz efeitos colaterais que se tornam cada vez mais intensos. O principal deles é a dilatação do coração, que causa insuficiência cardíaca e pode levar à morte. A insuficiência pode ser aguda, observada logo após a administração da primeira dose ao paciente e facilmente tratada, ou crônica, que se manifesta ao longo de meses de tratamento. Atualmente a estratégia para tentar reduzir os danos cardíacos é limitar a dosagem da medicação a algo entre 500 e 550 miligramas por metro quadrado (mg/m2) de superfície corporal – uma pessoa de 1,80 m e 80 quilos tem cerca de 2 m2 de superfície corporal e pode receber uma dose cumulativa máxima de 1.000 a 1.100 mg. Mesmo assim, não se consegue evitar completamente os efeitos tóxicos. “Estima-se que 5% a 35% dos pacientes que recebem dose superior a 400 mg/m2 de antraciclinas apresentam queda nos índices de função cardíaca ou até insuficiência cardíaca”, diz Rossi.
Algumas hipóteses tentavam explicar a origem dos danos que a doxorrubicina causa às células do coração (cardiomiócitos). A mais estudada delas é o estresse oxidativo. De acordo com os defensores dessa ideia, as antraciclinas geram radicais livres, moléculas altamente reativas que causariam lesões na membrana e em outros componentes das células. “Mas esse mecanismo tem sido cada vez mais questionado”, comenta Rossi. “Isso aumentou nosso interesse em estudar a causa da lesão cardíaca e permitiu propor que ela seja consequência de danos a proteínas estruturais dos cardiomiócitos, principalmente a distrofina.”
Para testar essa hipótese, Érica tratou durante duas semanas três grupos de ratos com doses diferentes de doxorrubicina e analisou o que acontecia com o coração dos roedores. “Avaliamos a expressão das proteínas nas células do coração e também a função cardíaca 7 dias e 14 dias após a última dose administrada”, conta Érica.
Ela verificou uma perda significativa da distrofina nas células cardíacas. Quanto maior a dose do medicamento, menos distrofina havia no coração e maior a taxa de mortalidade entre os animais, relataram os pequisadores em artigo no European Journal of Pharmacology. Exames de imagem, como a ecocardiografia, revelaram também que a perda de distrofina prejudicou a capacidade de bombeamento de sangue. “A perda de distrofina foi considerada a causa estrutural responsável pela perda da função cardíaca”, afirma Érica.
Mas confirmar o efeito nocivo não bastava. Os pesquisadores também queriam saber como a distrofina é destruída pela medicação. “Descobrimos que os danos na membrana dos cardiomiócitos permitem a entrada de mais íons de cálcio”, explica Rossi. “Isso, por sua vez, ativa as proteases (enzimas) que lesam as células.”
De posse desse conhecimento, os pesquisadores passaram a buscar formas de reduzir os danos cardíacos causados pelas antraciclinas. Um dos compostos que testaram foi o relaxante muscular dantrolene, que reduz a contração das células ao bloquear a entrada de cálcio. Administrado com a doxorrubicina, o relaxante muscular reduziu a perda de distrofina e os focos de lesão. “Os ratos tratados com dantrolene e doxorrubicina mantiveram função cardíaca semelhante à dos animais controles [que haviam recebido placebo em vez do quimioterápico]”, conta Rossi. “Nossos achados entusiasmam porque abrem a possibilidade de que, no futuro, talvez possam reorientar a prática clínica.”
O Projeto
Distrofina e suas proteínas associadas na patogênese da cardiomiopatia induzida por doxorrubicina (nº 2010/13199-1); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Marcos Antonio Rossi – FMRP/USP; Investimento R$ 263.235,82 (FAPESP)
Artigo científico
CAMPOS, E. C. et al. Calpain-mediated dystrophin disruption may be a potential structural culprit behind chronic doxorubicin-induced cardiomyopathy. European Journal of Pharmacology. v. 670(2-3), p. 541-53. 30 nov. 2011.