Uma só pesquisa derrubou dois mitos ao mesmo tempo. O primeiro: no núcleo das células não ficam só os cromossomos, formados por proteínas e pelo DNA, como se pensou durante pelo menos 50 anos. Ali há também, como descobriram pesquisadores brasileiros e norte-americanos, uma rede de tubos que armazenam cálcio – elemento químico essencial para o funcionamento celular. “É a primeira vez que se demonstra que o núcleo contém organelas próprias”, comenta Maria de Fátima Leite, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e co-autora desse trabalho, publicado em 22 abril na edição on line na Nature Cell Biology. Maria de Fátima e Michael Nathanson, da Universidade de Yale, Estados Unidos, verificaram que as tais organelas – ou compartimentos, chamados retículos nucleoplasmáticos – ocorrem pelo menos nas células do fígado. “É provável que as células do coração, dos músculos e do sistema nervoso também tenham essa estrutura”, diz ela.
A segunda idéia desfeita é que o núcleo receberia cálcio apenas do citoplasma, a porção gelatinosa que ocupa o espaço entre o núcleo e a membrana externa da célula. É no citoplasma que se encontram compartimentos de funções variadas, a exemplo do retículo endoplasmático liso, espécie de bolsa que guarda cálcio. Os achados dessa equipe sugerem que é possível que o cálcio atravesse a membrana do núcleo, mas não há mais como negar a aparente auto-suficiência do núcleo nesse elemento químico essencial na regulação da contração muscular, dos batimentos cardíacos, da secreção de hormônios, da multiplicação e diferenciação celular e da chamada plasticidade neuronal – a capacidade de o cérebro criar rotas alternativas para manter o corpo funcionando ou resgatar a memória. No núcleo, o cálcio pode mudar também a estrutura da molécula de DNA, ativar ou desativar genes.
Citado na seção Editors’ Choice da Science de 9 de maio, o trabalho dos pesquisadores da UFMG e de Yale ajuda a entender como um só elemento químico – ainda que abundante no interior das células – consegue regular tantas funções celulares. O cálcio é liberado de modo seletivo – apenas quando o retículo nucleoplasmático é ativado – e assim determina uma ou outra resposta do núcleo. Depois, conduzido por moléculas transportadoras, o cálcio faz o percurso de volta: atravessa novamente os poros da membrana da rede de tubos e ali fica alojado até ser requisitado outra vez. “Se ficar livre no núcleo ou no citoplasma”, diz Maria de Fátima, “o cálcio aciona uma série de reações químicas que podem levar à morte celular.”
Para descobrir os depósitos de cálcio, os pesquisadores usaram proteínas que funcionam como sondas fluorescentes que, por afinidade química, aderem ao retículo endoplasmático. Só chegaram a essas conclusões e visualizaram os depósitos de cálcio do núcleo por terem usado um microscópio de dois fótons, que, além de uma resolução altíssima, causa menos danos às células que outras técnicas. Há poucos equipamentos desse tipo no mundo – um deles está no laboratório de Nathanson, com quem a pesquisadora brasileira começou a colaborar há dois anos. O trabalho que fizeram juntos não sugere apenas ajustes nos livros-texto, nos quais o núcleo aparece como espaço único dos cromossomos. Afeta também a pesquisa de medicamentos – como os usados contra hipertensão ou na regeneração do fígado – cujos efeitos colaterais poderiam ser amenizados à medida que atuem de modo mais preciso no cálcio do núcleo ou do citoplasma das células.
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