Ruth Cardoso reagiu com irreverência ao ser convidada para a série de depoimentos que marcam a celebração dos 40 anos do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Para a antropóloga, no mundo das ideias o sujeito pensante é muito menos importante do que as noções e conceitos que ele expressa. Ela dizia que parte considerável do trabalho intelectual é resultado de um esforço coletivo, produto de uma época e de um lugar. Mesmo que seja difícil discordar dessas opiniões, não dá para deixar de saudar o resultado das comemorações: o livro Retrato de grupo foi além da análise de um período soturno brasileiro. Há nele um exame bastante atualizado não só dos anos mais sombrios como dos dias que correm.
O objetivo de Retrato de grupo foi reunir a geração fundadora e os colaboradores posteriores mais importantes na forma de entrevistas feitas por outros pesquisadores de modo a trazer uma reflexão inédita de um grupo de intelectuais que partilhou uma experiência incomum, como dizem os organizadores no prefácio, Paula Montero, atual presidente do Cebrap, e Flávio Moura, editor da revista Novos Estudos. Além das entrevistas, há o perfil intelectual dos que já morreram, como Cândido Procópio Ferreira de Camargo, Ruth Cardoso e Vilmar Faria.
Os depoimentos dos pioneiros mostram como alguns intelectuais de São Paulo decidiram não se exilar quando o AI-5 foi decretado e muitos foram aposentados compulsoriamente. Fernando Henrique Cardoso, José Arthur Giannotti, Elza Berquó, Paul Singer (cassados), Juarez Brandão Lopes e Cândido Procópio compuseram o núcleo inicial. O dinheiro veio da Fundação Ford e, posteriormente, de outras agências de fomento. O nome Cebrap era propositadamente anódino, para evitar suspeitas injustificadas do regime militar e mostrar que podiam atuar na área de planejamento e fazer trabalhos de ordem técnica. Em maio de 1969 o centro começou a funcionar. A partir de 1970 outros chegam como pesquisadores permanentes: Octávio Ianni, Francisco de Oliveira, Bolívar Lamounier, Lúcio Kowarick, Vilmar Faria e Carlos Estevam Martins, além de Francisco Weffort, Boris Fausto, Régis de Castro Andrade, Luiz Werneck Vianna e Maria Hermínia Tavares de Almeida.
Todos esses pesquisadores, assim como os que vieram depois, como Fernando Novais, Roberto Schwarz, Ruth Cardoso e José Serra, tiveram papel importante no centro ao analisar o período mais difícil do Brasil, os anos 1970, propor soluções e pensar o futuro do país. No livro são entrevistados cinco dos seis pioneiros e Oliveira, Kowarick, Serra, Novais, Schwarz e Rodrigo Naves, ex-editor da Novos Estudos. As entrevistas agradam porque não se limitam a contar a história das origens e glórias do Cebrap, o que tornaria o livro enfadonho. Os principais personagens não se furtam a comentar as brigas intelectuais e ideológicas, acirradas durante o período de democratização quando alguns deles mergulharam na política. Não por acaso o centro forneceu um presidente da República, um governador de estado e vários ministros e secretários de governos municipal, estadual e federal.
Demografia, sociologia, filosofia, história, antropologia e economia recebem análises atualizadas no livro, como se cada um dos entrevistados estivesse fazendo uma revisão em voz alta do que foi realmente importante para suas carreiras e do que é de fato fundamental em cada uma dessas áreas do conhecimento. O autor de maior destaque na maioria das análises é Marx, sempre citado com reverência como um autor capital para toda aquela geração. É igualmente curioso notar as posições, críticas e elogios sobre os recentes governos de Fernando Henrique e de Lula. Nesse sentido, as análises do próprio ex-presidente, de Paul Singer e de Francisco de Oliveira são as mais interessantes pela visão divergente, mas embasada em fatos, que cada uma delas oferece. Por fim, o livro traz também um DVD com um filme de 90 minutos com trechos dos depoimentos. É um bom instantâneo de um difícil, mas fértil período da história recente brasileira.
Republicar