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Genômica

Revelação em detalhes

Pesquisas mostram genes e mecanismos que podem ajudar no combate à bactéria causadora do amarelinho

MIGUEL BOYAYANHá cinco anos, quase nada se sabia sobre a bactéria Xylella fastidiosa, a causadora de uma das piores pragas da citricultura, a Clorose Variegada dos Cítrus (CVC), também conhecida como amarelinho, responsável por perdas anuais da ordem de US$ 100 milhões apenas em São Paulo, o principal Estado produtor. A situação mudou de modo radical. De um ano para cá, à medida que amadureceram as 21 pesquisas do Projeto Genoma Funcional da Xylella fastidiosa, financiado pela FAPESP, tornaram-se claros os mecanismos pelos quais esse microrganismo infecta as laranjeiras e cresce dentro delas.

Participam desse processo uma série de genes e proteínas recém-descobertos e contados em abundância – são, por exemplo, 30 genes importantes identificados no Instituto Agronômico de Campinas e 30 proteínas essenciais à bactéria descobertas na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Já começaram, por sinal, as pesquisas que devem permitir desativar esses genes e proteínas, de modo a impedir a propagação da bactéria. O resultado final tomará a forma, provavelmente, de uma vacina contra o amarelinho. Até agora, quem mais avançou rumo a essa solução foi João Lúcio Azevedo, pesquisador da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC).

Com base nos achados mais recentes do Genoma Funcional, que integra quase 80 pesquisadores das universidades e institutos públicos e privados, Azevedo implantou no genoma de duas bactérias inofensivas que convivem com a Xylella, a Pantoea a gglomerans e a Methylobacterium sp, um gene que ajuda a digerir a goma fastidiana – uma substância gelatinosa, provavelmente essencial para a formação das colônias de Xylella e a adesão das bactérias às paredes dos vasos condutores de água e nutrientes das laranjeiras. É assim que, juntas, goma e colônias, numa ação integrada, entopem os canais de circulação de nutrientes, num lento processo que faz as plantas definharem pouco a pouco.

Azevedo saberá nos próximos três meses se as bactérias escolhidas realmente detêm, nas laranjeiras, a formação da goma fastidiana, cuja composição a equipe de Eliana Lemos, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Jaboticabal, detalhou ao longo do ano passado. Foi outro ganho importante na luta contra o amarelinho. Sabe-se agora que esse composto vital às bactérias e fatal às laranjeiras é uma mistura de quatro tipos de açúcar, menos densa e viscosa que a goma xantana, produzida por outra bactéria que infecta os cítrus, o feijão e o repolho, a Xanthomonas citri, cujo seqüenciamento terminou no final de 2000.

A descoberta da estrutura da goma fastidiana, segundo Eliana, facilita a busca de mecanismos que possam bloquear sua formação, por especificar os alvos a serem perseguidos, evitando a batalha às cegas ou a escassez de explicações sobre por que uma tática funcionou ou não. Como a equipe da Unesp conseguiu fazer a Xylella produzir a goma fastidiana, quando cultivada em laboratório sob condições especiais, surge uma vertente ainda mais aplicada. À medida que os processos de produção estiverem otimizados, a goma fastidiana desponta como uma alternativa à similar produzida pela X. citri e empregada industrialmente como espessante de papel, tintas e alimentos.

Vasos bloqueados
Uma vacina que possa deter a goma e, em conseqüencia, o crescimento das bactérias não é a única perspectiva com que trabalha o grupo paulista. Também com base no seqüenciamento do genoma dessa bactéria, iniciado em 1998 e concluído em 2000, os pesquisadores encontraram uma molécula que controla genes ligados ao desenvolvimento da doença nas laranjas. Chamada fator de sinal difuso, é derivada de um ácido graxo (um tipo de gordura) e resulta provavelmente da ação de dois genes, conforme Marcio Lambais, um dos autores da descoberta, também da Esalq. Ainda falta detalhar sua estrutura química, mas já se pensa em produzir essa molécula em laboratório e a aplicar na planta, de modo que possa impedir a ativação de genes que ajudam a doença a avançar. “Funcionaria como um praguicida”, planeja Lambais.

Analisados em conjunto, os resultados reforçam cada vez mais a idéia de que a agressividade – ou virulência – da bactéria está diretamente ligada à sua capacidade de formar colônias, fixar-se nas paredes do xilema (os vasos que transportam água e sais minerais por toda a planta) e assim provocar seu entupimento – processos em que a goma fastidiana parece ser essencial. Tudo indica, aliás, que seja o bloqueio desses vasos o principal fator que prejudica, de modo tão intenso, o metabolismo das laranjeiras, na avaliação de Eduardo Caruso Machado, do IAC.

Em parceria com uma equipe da Esalq, Machado descobriu que a quantidade de água que chega às folhas é quase 60% menor nas laranjeiras doentes. Não importa se está chovendo intensamente, como é comum em novembro e dezembro no norte do Estado de São Paulo, de onde sai um terço da produção mundial de laranja: as plantas infectadas apresentam-se como se sofressem de falta de água mesmo com o solo encharcado – ficam mirradas, com folhas murchas e frutos pequenos.

Mas se as árvores chegam a esse estado apenas alguns anos após a infecção, a redução do fluxo de água – a causa mais imediata dessa manifestação do amarelinho – ocorre bem mais cedo: somente três meses após as árvores serem contaminadas com a Xylella. Percebido em laboratório, esse sinal escapa ao produtor, que só consegue notar a infecção pela aparência externa da árvore e de seus frutos, num estágio mais avançado da doença.

Internamente, há outras complicações. Os estudos indicam que as laranjeiras perdem metade da capacidade de realizar fotossíntese, o processo pelo qual produzem reservas de energia (glicose). São pequenos poros da superfície das folhas, chamados estômatos, que permitem a entrada de gás carbônico indispensável à fotossíntese. Se o xilema está entupido, ainda que parcialmente, e não chega água às folhas, os estômatos se fecham, como se a planta sofresse tempos de seca. Em conseqüência, o ciclo de produção de energia perde eficiência.

Mas apenas o entupimento dos vasos não explica a redução da fotossíntese. Os pesquisadores acreditam que a bactéria deve produzir substâncias específicas – toxinas ainda desconhecidas – que ajudam a bloquear a produção de energia. Essa conclusão emergiu de experimentos com laranjeiras contaminadas, mas colocadas em condições aparentemente bastante favoráveis, com abundância de água e um suprimento de gás carbônico 140 vezes superior ao normal. Seria uma forma de eliminar as influências dos estômatos e da falta de água, mas, ainda assim, para surpresa geral, a fotossíntese das laranjeiras doentes foi 20% menor – uma perda, portanto, reduzida, mas não inteiramente eliminada.

Genes de adesão
Marcos Antonio Machado, coordenador de outra equipe do Instituto Agronômico, investigou o problema por outro ângulo: em vez de analisar o metabolismo da planta, examinou a atividade dos genes da Xylella. Seu trabalho aprofundou as conclusões de outros grupos do Genoma Funcional, que já haviam alertado que as colônias de bactérias e adesão às paredes dos vasos da planta eram decisivas nas transformações que fazem a árvore definhar e parar de produzir.

Machado comparou a expressão de 2.205 genes da Xylella em duas situações de cultivo em laboratório: a primeira delas, chamada de condição de isolamento primário, continha bactérias recém-retiradas de plantas infectadas, que preservavam sua capacidade de colonizar rapidamente as plantas; a outra, de isolamento secundário, era formada por bactérias retiradas bem antes, já haviam se propagado 40 vezes e se multiplicavam muito mais lentamente ao ser inoculada nas laranjeiras, de acordo com testes já realizados anteriormente.

Utilizando um biochip – uma lâmina que permite distinguir genes ativos dos inativos – produzido pelo grupo de Mogi das Cruzes, Machado constatou que cerca de 30 genes se comportam de modo diferente, com respostas que dependem, essencialmente, do parentesco com a bactéria retirada da planta. De modo geral, as bactérias geneticamente mais parecidas com a Xylella encontrada na própria planta, mantidas na condição de isolamento primário, apresentam maior capacidade de causar a doença – a chamada patogenicidade – que as do outro grupo. No primeiro caso, encontravam-se ativos um número maior de genes ligados ao processo de adesão à planta.

Em outro trabalho conjunto, desta vez com Gustavo Goldman, da Faculdade de Farmácia da USP, em Ribeirão Preto, Marcos Machado examinou o grau de expressão desses genes. Comparou as duas situações de crescimento e verificou que, no isolamento primário, havia genes relacionados à adesão cerca de 20 vezes mais ativos do que na outra condição de crescimento – pôde confirmar, assim, a importância dos genes de adesão. Mas será que o mesmo efeito se manifestaria em outras plantas? Curiosamente, a geração de bactérias próxima à retirada da planta – com mais cópias dos genes de adesão – infectou a vinca ou maria-sem-vergonha (Catharanthus roseus), de modo similar às laranjas. Foi um achado importante. “A patogenicidade parece não estar relacionada à espécie da planta infectada, mas sim, essencialmente, à bactéria”, comenta Machado.

Crescimento lento
A equipe de José Camillo Novello, da Unicamp, trabalhou com o produto dos genes: as proteínas, que, a princípio, se fossem bloqueadas, ajudariam a impedir o avanço do amarelinho. Após uma triagem inicial, os pesquisadores do Laboratório de Química de Proteínas identificaram 142 proteínas produzidas em maior quantidade pela Xylella, mas dedicaram-se a 30 delas, associadas à capacidade de adesão, à absorção de nutrientes e à toxicidade da bactéria. São proteínas que despertam interesse principalmente porque a bactéria as exporta para o meio intercelular, como os pesquisadores descrevem em um artigo a ser publicado na Proteomics de fevereiro. “Essas proteínas são alvos potenciais para combater o amarelinho”, diz Marcus Smolka, um dos integrantes da equipe de Novello, “porque a princípio é mais fácil produzir um composto que atue sobre uma proteína que esteja fora da bactéria do que dentro dela.”

Ao analisar o padrão dessas proteínas, o grupo da Unicamp constatou que a Xylella não possui um mecanismo, comum em outras bactérias, que permite fabricar proteínas de forma rápida. Segundo Smolka, essa característica ajuda a explicar o crescimento lento da Xylella, que demora de oito a dez horas para se dividir em duas, enquanto a Escherichia coli não toma mais de 20 minutos. “Tudo leva a crer que a Xylella não consiga responder de maneira eficiente às substâncias produzidas pelo sistema de defesa da planta”, comenta. “Talvez por isso ela só consiga crescer em agregados, que oferece uma forma de proteção.”

Imprevistos
Mas nem só de avanços se faz a ciência. No ano passado, a bactéria parecia perto de ser dominada, mas se revelou dura na queda e colocou novos desafios para os pesquisadores, numa indicação de que as próximas etapas do trabalho podem ser mais complicadas do que se imaginava. Surgiram resultados inesperados quando se tentou contaminar laranjeiras e plantas de tabaco com bactérias geneticamente alteradas, nas quais a pesquisadora Patrícia Monteiro, então no Fundo de Defesa da Citricultura (Fundecitrus), havia desligado genes relacionados à patogenicidade.

As análises feitas até o momento indicam que a cepa utilizada – isolada em Jales, interior paulista, e conhecida pela sigla J1a12 – não é virulenta. Isso é ruim porque, desse modo, não se consegue saber se a desativação de genes realmente funcionaria, a ponto de impedir o desenvolvimento do amarelinho. A outra cepa mais agressiva, a 9a5C, seqüenciada durante o projeto Genoma Xylella, mostrou-se resistente à transformação genética.

“Pode ser que a J1a12 cause os sintomas apenas bem mais tarde, por crescer mais lentamente”, comenta Patricia. Em busca de cepas mais agressivas, cujos genes possam ser desativados, os pesquisadores encontraram uma alternativa promissora: a B111, isolada na região de Bebedouro, capaz de contaminar as laranjeiras com mais eficiência que a de Jales, mas, ainda assim, menos virulenta que a 9a5C. Superada essa etapa, tudo deve se tornar mais fácil, pois Beatriz Mendes e Francisco Mourão, ambos da USP, ampliaram o domínio da técnica de produzir laranjeiras geneticamente modificadas – além da variedade Hamlin, obtida em 2001, produziram árvores transgênicas de laranja-pêra, valência e natal. O laboratório em que trabalham está pronto para receber os genes de resistência ao amarelinho tão logo sejam encontrados pelos outros grupos de pesquisa.

O Projeto
Genoma Funcional da Xylella Fastidiosa, com 21 Projetos Individuais de Pesquisa; Modalidade Programa Genoma FAPESP; Coordenadores
Jesus Aparecido Ferro – Unesp e Ana Claúdia Rasera da Silva e Luiz Eduardo Aranha Camargo – USP; Investimento R$ 2.048.228,98 e US$ 2.211.758,01

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