“Chega a ser ridículo alguém não ter o que comer hoje em dia. Imagine, então, se for em meio a uma das maiores biodiversidades do mundo, na região amazônica.” O espanto foi expresso pelo biólogo inglês Daniel Tregidgo, pesquisador do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), em Tefé, Amazonas, após passar seis meses entrevistando 331 famílias ribeirinhas de 22 comunidades ao longo de 1.267 quilômetros às margens do rio Purus, nos municípios de Lábrea e Beruri, no Amazonas.
Com colegas da Universidade Federal de Lavras (Ufla), em Minas Gerais, da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, ele constatou que nos períodos de cheia 85% das famílias precisaram substituir o peixe ou a carne por outro alimento pelo menos uma vez ao longo de 30 dias; 65% comeram menos do que gostariam; 33% precisaram pular alguma refeição do dia e 17% não comeram nada por um dia inteiro.
Na cheia, quando os rios sobem até 15 metros acima do nível normal, a taxa de captura de peixe é 73% menor em relação ao período de seca. Pescar, argumentaram os pesquisadores em um artigo publicado em abril na revista científica People and Nature, é muito mais difícil quando há mais água ao redor. Os peixes, a principal fonte de proteína dos ribeirinhos, ficam mais dispersos e a população local gasta três vezes mais tempo tentando capturá-los.
Com dificuldade em obter outros tipos de alimento, as famílias moradoras de áreas de várzea foram classificadas em situação de insegurança alimentar sazonal severa, definida com base em critérios de disponibilidade, frequência e acesso a alimentos de qualidade nutricional. Para comparar a oscilação entre os períodos de enchente e vazante, as entrevistas foram realizadas em dois momentos: entre abril e julho (cheia) e de agosto a novembro (seca) de 2014. Os ribeirinhos foram questionados sobre sua dieta alimentar nos 30 dias anteriores à entrevista.
“Enquanto o nível de água está alto, os ribeirinhos precisam fazer viagens mais longas para conseguir alimento. Na pesca, podem ficar horas ou até dias fora. Quando não conseguem nada, tentam caçar uma anta, um pato, um macaco ou algum tipo de ave”, relata o biólogo. Ele mora em Tefé e momentamente, durante a pandemia, vive em um barco chamado Ribeirinho, ancorado no canal Leeds and Liverpool, que corta a cidade de Skipton, na Inglaterra. Durante quatro anos morou também em Lavras, Manaus, Belém e em dois barcos durante a pesquisa no rio Purus.
A criação de animais para consumo, como galinha ou gado, é limitada, já que as áreas livres são escassas quando os rios sobem. Segundo ele, durante a seca os moradores plantam mandioca, milho e hortaliças para colherem antes da cheia e não correrem o risco de perder tudo caso o rio suba mais ou antes do que o normal.
“Na cheia, quando há pouco peixe e não conseguimos comprar carne ou frango, as pessoas tomam só uma merenda de manhã, pulam o almoço e depois jantam. Ou deixam de jantar”, relata a gerente de pousada Deuzeny de Oliveira Martins, de 43 anos, moradora da comunidade Caburini, próximo ao município de Alvarães, no Amazonas. “Já aconteceu comigo e com famílias que conheço de outras comunidades.” A merenda geralmente é composta por macaxeira, batata-doce, bolinho de trigo ou jerimum (abóbora), com café ou chá.
Martins gerencia a pousada Uacari, integrante do Programa de Turismo de Base Comunitária do Instituto Mamirauá. Ela alterna dias na pousada, localizada na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, e na comunidade, na qual moram dois de seus quatro filhos – os outros dois trabalham com ela na pousada.
Para os moradores das comunidades rurais entrevistados para a pesquisa, o acesso a alimentos industrializados é difícil. “Eles compram óleo, café, às vezes feijão. Geralmente vão uma vez por mês na cidade, após receberem algum auxílio governamental, e compram frango, salsicha, às vezes carne de boi”, relata Tregidgo.
Nas épocas de cheia e de seca, 70% das famílias entrevistadas tinham quatro fontes de renda principais: pesca, aposentadoria, Bolsa Família e o Seguro Defeso, um auxílio fornecido pelo governo do estado aos pescadores durante o período em que a pesca de determinadas espécies fica proibida, para proteger sua reprodução. Na seca, 47% das famílias tinham como renda principal a pesca; 14%, a aposentadoria e 10% o Bolsa Família. Na cheia, 31% das famílias tinham como renda principal o Seguro Defeso; 15% a aposentadoria; 14%, a pesca; e 12% o Bolsa Família.
Ter geladeira ou freezer é raro – em muitas comunidades, geradores a diesel fornecem energia por apenas algumas horas durante o dia. “Não compensa ter geladeira, porque muitas vezes a energia falha, e o gerador é ligado das 19h às 22h. Costuma-se comprar gelo na cidade e colocar em caixas de isopor, que ajudam a manter alguns alimentos conservados, mas isso dura geralmente uma semana”, conta Martins.
Mudanças na cheia e na seca
Os ribeirinhos relataram a Tregidgo que o ciclo das cheias e das secas está mudando: “Escutei muitas vezes que tanto os períodos de cheia quanto os de seca têm durado mais. Eles dizem que a natureza está ficando diferente e, apesar do fenômeno natural de alagamento das terras, a pesca tem se tornado mais difícil do que era antes”, diz Tregidgo. “Eles sentem cada mudança.”
De fato, nos últimos 10 anos foram registradas na Amazônia três grandes cheias (2009, 2012 e 2015) e três grandes secas (2005, 2010 e 2016) classificadas como eventos extremos, que ocorreriam a cada 100 anos. Pesquisadores também alertam que o clima na Amazônia tem ficado imprevisível.
Nas grandes secas e cheias, “as pessoas precisam se deslocar para a casa de parentes”, observa a cientista social Ana Claudeise Nascimento, líder do grupo de pesquisa Territorialidades e Governança Socioambiental na Amazônia do IDSM, que não participou desse estudo. “Os ribeirinhos, por dependerem diretamente dos recursos naturais para o seu sustento, são os primeiros a sofrerem com os efeitos das mudanças climáticas”, comenta.
Pandemia de Covid-19
Tregidgo observou que a atual pandemia, que impôs o isolamento social, agravou ainda mais a dificuldade de conseguir alimentos. Em maio, os pesquisadores do IDSM publicaram um artigo no SciELO Preprints alertando para os riscos de disseminação e uma nota técnica, divulgada pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação (Sedecti) do Amazonas, sobre os potenciais impactos da Covid-19 nas comunidades ribeirinhas da Amazônia Central, tendo como base dados das reservas de desenvolvimento sustentável de Mamirauá e Amanã.
Nessas publicações, a equipe do instituto alerta para a necessidade de estratégias específicas voltadas para essas comunidades, que têm uma dinâmica diferente dos centros urbanos. “O isolamento social precisa ser feito considerando o território comunitário e não as unidades domiciliares. As relações sociais são muito próximas e a vida comunitária faz parte dos aspectos socioculturais das famílias. Há uma forte relação de parentesco e um vizinho partilha com o outro o alimento”, afirma Nascimento.
Segundo a cientista social, os ribeirinhos vão em média uma vez por mês à cidade, principalmente Tefé, o maior centro urbano da região, com cerca de 62 mil habitantes, para fazer compras e consultas médicas, receber benefícios sociais ou visitar parentes. “É importante diminuir esse fluxo e o período que as pessoas passam nas cidades, para evitar a contaminação pelo vírus”, sugere. Nas comunidades rurais, acrescenta Nascimento, em geral não há hospitais, mas apenas um agente de saúde.
“Agora, na pandemia, é preciso enviar cestas básicas para as comunidades”, sugere Tregidgo. No longo prazo, ele enfatiza a intensificação da criação de peixes e de outros animais que possam ser caçados. “Se há mais oferta, os ribeirinhos vão passar menos dias fora de casa em busca de alimentos e não vão voltar sem nada.”
Como exemplo de iniciativa bem-sucedida, ele cita o programa de manejo sustentável de pirarucu do Instituto Mamirauá, iniciado há 20 anos, que recuperou os estoques pesqueiros e a proteção dos sistemas de lagos da Reserva Mamirauá e Amanã. “Uma ação de proteção de um território se desdobra em outras ações que fortalecem grupos locais, lideranças, jovens, mulheres e impacta a vida de outras pessoas que moram nesse território”, destaca Nascimento, do IDSM.
A bióloga Cristina Isis Buck Silva, analista ambiental licenciada do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e doutoranda do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Universidade Estadual de Campinas (Nepam-Unicamp), defende a implementação dos acordos de pesca, que tendem a aumentar a oferta de peixes, por reduzir o acesso de pessoas de outras áreas. Segundo ela, por meio desses acordos, os moradores definem com instituições governamentais as proibições e normas específicas para a pesca na região.
Para Tregidgo, fornecer merendas nutritivas para as crianças nas escolas quando a pesca é escassa também poderia ajudar. “E muitos moradores das comunidades rurais até têm como comprar alimentos, mas estão subnutridos, com doenças gastrintestinais, porque não há saneamento básico”, observa. “Temos de combater as várias dimensões da pobreza na Amazônia.”
Ele criou uma campanha na Inglaterra e, com colegas do IDSM, outra no Brasil para arrecadar fundos e alimentos para os ribeirinhos.
Artigos científicos
TREGIDGO, D. J. et al. Tough fishing and severe seasonal food insecurity in Amazonian flooded forests. People and Nature. on-line. 26 abr. 2020
ANDRADE, L. C. de et al. Os potenciais impactos da pandemia de Covid-19 nas comunidades ribeirinhas da Amazônia Central e as soluções recomendadas para mitigação. Nota técnica Covid-19. IDSM. mai. 2020
RAMALHO, E. E. et al. Dissemination of Covid-19 in cities and riverine communities in Central Amazonia. Preprint Scielo. 9 mai. 2020