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Psiquiatria

Risco dobrado

Variação em um gene pode intensificar a morte de neurônios e agravar doenças mentais

Paulo Eduardo Bodziak Sonho e Realidade de um DepressivoPaulo Eduardo Bodziak

De um momento para outro, passa-se do inferno ao paraíso: a sensação de impotência, apatia e tristeza profunda transforma-se em um estado de euforia, entusiasmo e otimismo. Num momento em que há pelo menos 30 genes associados a doenças mentais, ninguém de bom juízo ousaria dizer ter encontrado um gene responsável por essas oscilações bruscas do humor, típicas do distúrbio bipolar, conhecido até pouco tempo atrás como psicose maníaco-depressiva.

Tampouco seria prudente anunciar a origem genética das alucinações, do pensamento desordenado e da sensação de perseguição que marcam a esquizofrenia, outro problema psiquiátrico igualmente grave. Mas um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) descobriu que uma alteração muito simples em um gene dobra o risco de desenvolver um desses dois distúrbios mentais, que aparecem, cada um deles, em cerca de 1% da população mundial. No Brasil, estima-se que existam 800 mil esquizofrênicos e um número próximo de bipolares.

Ao combinar as descrições de genes do genoma humano reunidas em bancos de dados internacionais com as informações provenientes de pacientes atendidos no Instituto de Psiquiatria da USP, o grupo de pesquisadores paulistas constatou que uma versão ligeiramente diferente do gene ALOX12 facilita o desenvolvimento do distúrbio bipolar e da esquizofrenia, provavelmente por intensificar a morte dos neurônios (as células nervosas), um dos sinais característicos não só dessas, mas também de outras doenças psiquiátricas.

“Observa-se o desencadeamento de uma resposta do organismo que leva à morte de neurônios nos momentos de crise mais aguda de todas as doenças neurodegenerativas”, afirma Emmanuel Dias Neto, um dos autores do estudo. O mesmo processo aparece também no mal de Alzheimer, uma doença que danifica principalmente os neurônios ligados à memória e afeta cerca de 1,2 milhão de pessoas no Brasil.

Prevenção
À medida que se esclarecem as alterações genéticas e bioquímicas que levam à perda mais ou menos intensa do senso de realidade, um dos sinais típicos das doenças psiquiátricas, torna-se possível pensar em diagnósticos prévios, realizados ainda na infância, como o proporcionado pelo teste do pezinho, adotado há décadas para detectar em recém-nascidos o hipotireoidismo congênito e a fenilcetonúria, duas doenças decorrentes de problemas metabólicos que causam deficiência mental se não tratadas a tempo. “Com os progressos da biologia molecular”, diz o psiquiatra Wagner Gattaz, outro coordenador da pesquisa, “esperamos que seja possível, aos poucos, identificar os subgrupos genéticos de risco, além de detectar e prevenir a doença antes de ela aparecer.”

A alteração encontrada nesse gene – chamado de ALOX12 por causa da enzima que produz, a araquidonato 12-lipoxigenase – é um exemplo de troca de um único nucleotídeo, como são denominadas cada uma das quatro bases nitrogenadas ou letras químicas que formam o DNA – A (adenina), T (timina), C (citosina) e G (guanina). Quando ocorre esse tipo de substituição, conhecida como polimorfismos de nucleotídeos únicos ou SNPs, um A pode entrar no lugar de um G, por exemplo. Uma alteração desse tipo pode parecer insignificante quando se considera que o genoma humano tem 3 bilhões de pares dessas bases, mas já é suficiente para mudar um dos aminoácidos componentes de uma proteína. Essa simples troca pode alterar não só a estrutura, mas também a função da proteína, e causar problemas para o funcionamento do organismo.

Troca prejudicial
Gattaz, Dias Neto e a pós-doutoranda Cíntia Fridman constataram que é justamente esse o caso do gene ALOX12. Descobriram que uma troca de bases – saiu uma guanina e entrou uma adenina – leva à substituição do aminoácido arginina, como previsto na receita original da proteína, pela glutamina. Como possível conseqüência, modifica-se a ação da enzima construída com esses aminoácidos, fundamental para o controle da apoptose, a morte celular programada que regula boa parte dos processos de crescimento, desenvolvimento e metabolismo do organismo. Aparentemente, os maiores prejudicados por essa modificação, segundo Dias Neto, são os neurônios saudáveis, que não deveriam morrer, mas podem acabar condenados, abrindo as portas para a doença.

Depois de trabalhar durante dois anos no Instituto Ludwig no Projeto Genoma Humano do Câncer, financiado pela FAPESP e encerrado em 2001, Dias Neto transferiu-se para o Instituto de Psiquiatria da USP, a convite de Gattaz. Por mais de uma razão, logo se interessou pelo ALOX12. Já se sabia que esse gene poderia influenciar a resposta de pacientes com distúrbio bipolar ao lítio, um dos medicamentos mais eficientes no controle das crises da doença – o que fazia do tal gene um candidato interessante para entender os mecanismos moleculares do distúrbio. Além disso, com freqüência o gene está ativo no tecido cerebral humano – mais um motivo que o tornava suspeito.

O grupo da USP analisou o DNA de glóbulos brancos, extraídos do sangue de 164 portadores do distúrbio e de 148 pessoas normais, à procura de polimorfismos do ALOX12, e constatou que a troca da glutamina pela arginina dobrava o risco de desenvolver a enfermidade e, por isso, tornou o polimorfismo do ALOX12 um fator de risco importante para o surgimento de doenças neuropsiquiátricas. De acordo com Dias Neto, análises em andamento feitas com outro grupo de pacientes, desta vez portadores de esquizofrenia, mostram uma ligação muito semelhante entre o polimorfismo e as manifestações clínicas da doença.

Moléculas associadas
A pesquisa, financiada pela FAPESP e pela Associação Beneficente Alzira Denise Hertzog Silva, revelou outro fenômeno: o risco de desenvolver a doença dobra com uma única cópia alterada do gene, encontrada no cromossomo proveniente do pai ou da mãe (cada célula contém duas cópias de cada cromossomo, uma de cada genitor). “Provavelmente”, sugere Dias Neto, “essas proteínas só atuem quando associadas na forma de um dímero (duas moléculas do mesmo tipo unidas).” Segundo ele, é possível que cópias diferentes da proteína, originadas por genes de cromossomos distintos, não consigam se associar tão bem e comprometam o perfeito funcionamento da proteína.

De acordo com Gattaz, a influência de fatores genéticos nos dois problemas já está bem estabelecida. Estudos anteriores, realizados sobretudo nos Estados Unidos e Inglaterra com gêmeos idênticos (com a mesma carga genética), mostraram que, se um dos irmãos apresenta uma dessas enfermidades, o outro tem 50% de chance de a desenvolver também, enquanto a incidência de esquizofrenia ou distúrbio bipolar na população mundial não passa de 1%. Por esse motivo, ninguém arrisca mais dizer que encontrou o único gene responsável por um problema ou por outro: os genes associados a doenças mentais estão distribuídos em pelo menos 11 dos 23 pares de cromossomos. “O mais provável”, afirma Gattaz, “é que a esquizofrenia, por exemplo, não seja uma doença única, mas uma síndrome, com várias causas biológicas diferentes.”

As indicações cada vez mais claras de que as doenças mentais podem ter mais de um gatilho genético complicam o diagnóstico, ainda feito com certo grau de subjetividade. Os pesquisadores sabem que estão apenas começando a desvendar a complexidade molecular por trás desses sintomas. “Para termos mais certeza, precisamos trabalhar com dezenas de genes, centenas de pacientes”, ressalta Dias Neto.

O projeto
Metabolismo dos Fosfolípides na Esquizofrenia e na Doença de Alzheimer (nº 02/13633-7); Modalidade Projeto temático; Coordenador Wagner Farid Gattaz – Faculdade de Medicina da USP; Investimento R$ 1.590.193,43

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