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Música

Ruídos à brasileira

Projeto busca mapear e analisar particularidades da arte sonora feita no país

Realidade virtual, de André Damião, uma das obras apresentadas na exposição Sons de Silício, realizada em 2019 pelo grupo NuSom-USP

Acervo Nusom-USP

É comum na historiografia da música erudita figurar exclusivamente compositores europeus, como Johann Sebastian Bach (1685-1750) e Ludwig van Beethoven (1770-1827), e norte-americanos, como Walter Piston (1894-1976). Na música experimental, originada no início do século XX, não é diferente. Nomes como o de John Cage (1912-1992), dos Estados Unidos, e Pierre Schaeffer (1910-1995), da França, despontam como referências internacionais desse gênero, marcado pela improvisação e pelo uso de ruídos resultantes da manipulação de objetos ou aparelhos eletrônicos. Na tentativa de preencher uma lacuna bibliográfica sobre a América Latina em trabalhos dedicados à arte sonora, pesquisadores do Núcleo de Pesquisas em Sonologia da Universidade de São Paulo (NuSom-USP) publicaram em dezembro um livro que discute as especificidades dessa prática artística no Brasil, lançando luz sobre personagens que escapam do cânone europeu e norte-americano. “É grande a falta de representatividade de países da América Latina na história da música e nos estudos do som”, afirma Fernando Iazzetta, pesquisador do NuSom e um dos organizadores de Making it heard – A history of Brazilian sound art (Bloomsbury, 2019).

Entrevista: Fernando Iazzetta
00:00 / 17:35

Publicada em inglês por uma editora britânica com o objetivo de aumentar a visibilidade da produção brasileira em arte sonora, a obra reúne ensaios de 13 autores que dialogam com novas áreas de pesquisa como a sonologia, que trata de processos de produção sonora e musical, levando em consideração recursos tecnológicos, como computadores e sintetizadores. “Graças a equipamentos criados em laboratório por engenheiros de som franceses e alemães, em meados do século XX, foi possível dar novos rumos à forma como se produz e pesquisa música”, diz Iazzetta. No caso do Brasil, a música experimental fincou raízes a partir da década de 1950, com a ascensão do grupo Música Nova, encabeçado por compositores de São Paulo como Rogério Duprat (1932-2006), Júlio Medaglia e Gilberto Mendes (1922-2016), inspirados por ideais cosmopolitas do movimento concretista; e, nos anos 1960, com o Tropicalismo, que buscou conectar as novas tendências internacionais com a música popular brasileira.

De acordo com Iazzetta, o desejo de espelhar a produção de outras partes do mundo era recorrente, ainda que fosse possível detectar certo sotaque local nesses movimentos – arranjos de Duprat, por exemplo, misturavam sons de berimbau, guitarra e ruídos eletroacústicos. “A tensão entre local e global é um fator central para entender a produção recente da arte sonora brasileira”, diz o pesquisador e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP). Após um período de difícil acesso à tecnologia de ponta, como resultado das restrições econômicas e da falta de uma indústria eletrônica robusta no país, o século XXI iniciou com políticas culturais que estimularam as artes digitais, incluindo a sonora. “Grandes empresas de telecomunicações e bancos também passaram a apoiar exposições e residências artísticas ligadas ao uso de tecnologias sofisticadas e as das mídias digitais, como forma de associar suas marcas a aspectos da contemporaneidade”, explica Iazzetta.

Paulo Bruscky Sementes dentro de um pote de vidro em repouso compõem a obra Música (1978), do artista Paulo BrusckyPaulo Bruscky

Foi assim que nos últimos 20 anos a arte sonora despontou no país, provocando transformação na linguagem musical e rompendo a relação palco-plateia, estando mais para instalações em galerias de arte. Nesse cenário, o desafio que se colocou foi investigar as características dessa produção sonora, conforme explica o artista e pesquisador português Rui Chaves, coorganizador do livro. “Não havia informações sobre quem são os artistas brasileiros nem como, onde e com o que trabalham”, ressalta Chaves, que criou a plataforma on-line Nendú – em tupi-guarani, “ouvir-se” –, com dados de mais de 100 artistas brasileiros, durante estágio de pós-doutorado concluído em 2018 no NuSom.

Lançado no ano passado, o portal apresenta, além de entrevistas, fotos e vídeos, um mapa que indica onde atuam os artistas – a maior parte está em São Paulo. A ideia é de que a Nendú volte a ser atualizada este ano, servindo como banco de dados para pesquisadores. “Arquivos como o International Sound Art Archive contabilizam centenas de artistas sonoros em todo o mundo, a maioria da Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos”, diz Chaves. “Essa plataforma internacional está inativa desde 2010, mas, considerando-se que para o Brasil havia apenas o registro de um artista em um universo de 257, agora pode-se dizer com segurança que havia muito mais de uma pessoa trabalhando com esse gênero antes de 2010 no Brasil.”

O arquivo criado por Chaves contribui para traçar um panorama mais abrangente e diversificado da arte sonora no país, avalia Iazzetta. “Não tínhamos uma noção ampla da importância dessa produção nacional, em termos de quantidade e qualidade.”

Entre as particularidades da música experimental brasileira, está a sua convergência frequente com o conceito de gambiarra – expressão popular que descreve maneira improvisada e informal de resolução de problemas cotidianos, quando ferramentas ou recursos adequados não estão disponíveis. Segundo o músico e pesquisador Giuliano Obici, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e um dos autores de Making it heard, nas últimas décadas o termo tem sido usado para descrever certos modos de produção artística no contexto brasileiro, caracterizado pelo método improvisado de trabalhar com materiais e dispositivos tecnológicos.

Marília Furman Televisão portátil e sensores analógicos e digitais transformaram-se em instrumento musical nas mãos do artista André DamiãoMarília Furman

Lixo eletrônico
Para o músico André Damião, televisores antigos, toca-discos e aparelhos encontrados em pontos de descarte de lixo eletrônico fazem parte da rotina de muitos artistas brasileiros. Trata-se, diz ele, de reaproveitar materiais usados, encontrados em lugares como a rua Santa Ifigênia e suas tradicionais lojas de equipamentos eletrônicos, em São Paulo. “Isso é um exemplo claro de como a realidade socioeconômica se reflete no trabalho artístico. Os objetos utilizados em uma obra revelam muito dos procedimentos e discursos adotados pelo artista em um cenário econômico distinto dos Estados Unidos e de países da Europa”, afirma Damião, ressaltando que, embora os artistas brasileiros possam hoje ter acesso a softwares e equipamentos também utilizados em nações desenvolvidas, a relação estabelecida com a tecnologia depende do contexto local em que está inserido.

Em uma de suas obras, intitulada Narva, Damião critica os processos comerciais que tornam obsoletos dispositivos móveis, no caso uma televisão portátil da década de 1980 achada no lixo e que, depois de algumas intervenções, transformou-se em um instrumento musical inusitado e ruidoso. “É uma forma de criticar a mercadoria, pensando os objetos para além daquilo que foram programados e refletindo sobre que tipo de música é possível fazer com esses dispositivos tidos como obsoletos”, observa.

Acervo pessoal Performance sonora da pesquisadora e artista Lílian CampesatoAcervo pessoal

Indefinições
Mapear artistas sonoros não constitui tarefa fácil, porque nem sempre eles se definem como tal, informa a artista Lílian Campesato, pesquisadora do NuSom. “O som pode aparecer como elemento fundamental em trabalhos criados por músicos, artistas visuais e artistas que não se conectam diretamente à arte sonora”, diz. Isso fica evidente, por exemplo, quando se tem contato com as coletâneas do Berro, selo fonográfico digital lançado pelo NuSom em 2019. São três álbuns com 26 trabalhos sonoros realizados a partir de 1968, disponíveis na plataforma digital Bandcamp. Alguns dos áudios foram produzidos pelo artista plástico carioca Cildo Meireles, famoso por suas instalações e esculturas, mas que em 1970 lançou um disco com sons gerados por um oscilador de frequência. “Para Cildo, isso é música”, salienta Campesato.

Além de trabalhos de valor histórico como o de Cildo Meireles ou das referências à produção de caráter mais experimental, os três álbuns lançados pelo selo Berro mostram que a pesquisa com novas sonoridades aparece numa diversidade de trabalhos artísticos, inclusive no campo da música popular. Artistas como o alagoano Hermeto Pascoal são conhecidos pelo uso criativo de sons inusitados e suas músicas muitas vezes resistem às delimitações fechadas de gêneros e rótulos. Para o músico Itiberê Zwarg, baixista na banda de Pascoal, o mais importante não é estabelecer definições, mas sim identificar os artistas capazes de criar impulsionados pela intuição. “Quando o músico é criativo, ele intui coisas que estão fora do convencional, e isso é criatividade”, diz. É o caso da música “Canto II”, de Juçara Marçal e Cadu Tenório, que aparece no álbum número 2 lançado pelo Berro. Trata-se de canção com arranjo pouco convencional e cujo tema é baseado em um canto tradicional de origem Bantu. Essa associação do experimentalismo com a música popular é o tema do capítulo do jornalista e pesquisador GG Albuquerque no livro Making it heard.

Para Campesato, no entanto, muitas vezes as distinções entre os campos da música e da arte sonora refletem mais a demarcação política de nichos artísticos do que diferenças entre essas práticas. “Falar de arte sonora na academia não é algo trivial e ainda causa desconforto em muitos departamentos de música de universidades”, afirma a artista, que analisa a produção sonora de brasileiras em um dos capítulos do livro. “Ao concluir o mestrado sobre arte sonora na USP, em 2007, percebi que não havia citado nenhum artista brasileiro na dissertação. E todos aqueles que estudei tinham como referência artistas homens brancos europeus”, conta. “Decidi então buscar referências nacionais e vi no trabalho das artistas Marie Carangi, Paula Garcia e Sofia Caesar uma oportunidade para discutir não apenas a vocação decolonial, mas também feminista da arte sonora brasileira”, explica Campesato.

Projeto
Arquivo de performance sonora: Gesto, tecnologia e texto na criação de artes (nº 14/15978-9); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Fernando Iazzetta (USP); Bolsista Rui Chaves; Investimento R$ 288.488,10.

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