A infância pobre no meio rural em Paracatu, Minas Gerais, próxima à região imortalizada por Guimarães Rosa em Grande sertão: Veredas, não foi um obstáculo para que o agrônomo Ruy de Araújo Caldas, de 84 anos, chegasse aonde chegou: ele se tornou uma referência em estudos sobre bioquímica vegetal no país e um gestor de ciência, tecnologia e inovação com passagem pelo governo, por universidades públicas e privadas e uma empresa de pesquisa. A doença de Chagas, que acometeu toda a sua família – ele, o pai, a mãe e cinco irmãos –, tampouco atrapalhou sua trajetória científica. Ao receber o diagnóstico da enfermidade na década de 1970, resolveu estudar a respiração de Trypanosoma cruzi, ao qual se refere como um “parasita muito inteligente”.
Aos 84 anos de idade, Caldas está aposentado há quase três décadas na Universidade de Brasília (UnB). Passou lá grande parte da carreira ao lado da mulher, a bióloga norte-americana Linda Styer Caldas [1945-2007], com quem teve três filhos. Ele a conheceu durante o doutorado na Universidade Estadual de Ohio, nos Estados Unidos, e vieram casados para a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP). Logo trocaram Piracicaba por Brasília, ao receberem uma proposta de trabalho irrecusável. Caldas vive até hoje na capital federal e concilia a vida acadêmica com a gestão de propriedades rurais – é pecuarista e cafeicultor. Dá expediente na Universidade Católica de Brasília (UCB), onde organizou o programa de pós-graduação em ciências genômicas e biotecnologia e foi pró-reitor de pesquisa e pós-graduação. Nos últimos anos, também passou períodos em Goiânia, Campo Grande e Piracicaba, ajudando a planejar iniciativas científicas e a montar programas de mestrado e doutorado em instituições públicas e privadas. Ele recebeu Pesquisa FAPESP para a entrevista a seguir.
Bioquímica vegetal
Instituição
Universidade Católica de Brasília
Formação
Graduação em engenharia agronômica pela Universidade Rural do Estado de Minas Gerais, atual Universidade Federal de Viçosa (UFV, 1964), mestrado em nutrição mineral de plantas na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP, 1967) e doutorado em bioquímica vegetal pela Universidade Estadual de Ohio (EUA, 1970)
O senhor nasceu no meio rural, em meio a dificuldades econômicas e de acesso à educação. Como superou essas barreiras?
Eu morava em Paracatu, em Minas Gerais, uma cidade da época do ciclo do ouro, isolada do mundo. Minha mãe sempre disse que a coisa mais fundamental é a educação. Ela fez o primário com professoras normalistas e virou professora de escola rural, dava aulas em rancho de palha. Nos colocou para estudar com outra professora, muito ativa, que se chamava Janaína Silva Neiva. Gostei de estudar, mas gostava mesmo era da roça. Para fazer o quarto ano primário, fui para a cidade. Eu não queria fazer o ginásio [hoje, fundamental II] e menti para o meu tio Zecão, que me criava e morava na roça. Disse que já tinha acabado o exame de admissão. Ele foi a cavalo até a cidade, viu que não era verdade e contratou uma professora, Eva Mundim, para dar um intensivão em janeiro para fazer a admissão.
Deu certo?
Consegui passar e fui fazer o ginasial em Paracatu. Mas meus pais tinham se mudado para Barretos, em São Paulo, e eu fui para lá em 1952. Muitos professores que se formaram na Faculdade de Filosofia da USP tinham ido trabalhar no interior. Em Barretos tivemos a sorte, no ginásio Mario Vieira Marcondes, de ter professores bem qualificados. Um deles foi o Jorge Abreu, autor de um livro de história geral. Eu ficava impressionado quando ele contava a história dos gregos, do Sócrates, Demóstenes, Pitágoras e pensava: que bacana você ser um pensador, um estudioso. Esse foi um ponto de virada. Lá em Barretos, eu gostava de mexer com horta. Terminado o ginásio, voltamos para Paracatu e eu fui montar uma horta para o meu pai, mas queria aprender mais. Um agrônomo de Paracatu recém-formado em Viçosa, o Tarso Botelho, sugeriu: “Você quer fazer um curso técnico em Viçosa?”. Me inscrevi e fui fazer o curso. Conheci um professor de química, o Walter Brune [1912-2004], com PhD na Alemanha. Gostei muito e mudei da horticultura para a química. Foram esses dois personagens-chave, um historiador e um químico, que me mostraram a importância do conhecimento.
E como se tornou um pesquisador?
O professor Walter Brune nunca dava aulas só teóricas. Vinha com dois ou três carrinhos de reagente, discutindo a teoria e fazendo experimentos na própria sala de aula. No início do curso de agronomia, fizemos um projeto para dosar vitamina C de frutas do Cerrado. Foi quando entendi um pouquinho o método científico. No final do curso, em 1964, consegui fazer um estágio no Instituto Agronômico de Campinas [IAC], no Departamento de Solo, para fazer dosagem no solo de pH, fósforo, potássio, e análise foliar. Aprendi muito nesse estágio. Foi quando o Álvaro Santos Costa [1912-1998], fitopatologista, me chamou para trabalhar na seção de virologia no IAC. Foi outro ponto de virada quando comecei a trabalhar com bioquímica de vírus no IAC em 1965. O Santos Costa convidou um pesquisador de virologia vegetal, o Gerd Benda [1927-2023], da Universidade Estadual de Louisiana, nos Estados Unidos, para passar um período como pesquisador do IAC e trabalhamos juntos com bioquímica de vírus da cana-de-açúcar.
Como foi o caminho até fazer o doutorado nos Estados Unidos?
Em agosto de 1965, o Eurípedes Malavolta [1926-2008], que era o diretor da Esalq-USP [Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo], conheceu o meu currículo. Ele me ligou e falou: “Olha, você já está contratado aqui”. Foi um choque. O professor Malavolta era um grande pesquisador de nutrição mineral de plantas e promoveu muito um acordo de cooperação entre a USP e a Universidade Estadual de Ohio. Eu assumi na Esalq em setembro de 1965. O Malavolta me disse: “Quero que você faça o PhD nos Estados Unidos o quanto antes”. O pré-requisito para ir para Ohio era ter feito mestrado. Fiquei um ano e três meses dando aula de bioquímica, defendi o mestrado e me preparei para viajar. Em setembro de 1967 comecei o doutorado lá em Columbus.
Qual foi o tema do seu mestrado?
Foi sobre o impacto que tem o vírus do tomate, o chamado vírus vira-cabeça, na absorção de fósforo pelas plantas infectadas. Usamos fósforo radioativo – a USP tinha um reator – para medir a absorção. A doença chama vira-cabeça porque o tomate vai murchando e a ponta do tomateiro vira para baixo.
E como foi o período do doutorado nos Estados Unidos?
Na época do IAC, eu queria trabalhar com biologia molecular. Mas o Malavolta e a Esalq tinham interesse em estudar o metabolismo nitrogenado em plantas. Fui para Ohio determinado a fazer o doutorado em bioquímica vegetal, atendendo à expectativa institucional, embora não fosse meu interesse. Meu orientador foi o Donald Dougall [1930-2016], bioquímico australiano que trabalhava em metabolismo nitrogenado. Tinha uma questão que faltava esclarecer, que era qual mecanismo a planta utiliza para imobilizar o íon amônio, que é um íon tóxico, em uma molécula não tóxica, que é a glutamina. Tive que montar os primeiros biorreatores para fazer cultura de tecido vegetal, para extração de enzimas e purificação de proteína.
Ideia nova raramente se consegue emplacar. Essa foi uma das minhas decepções com a ciência brasileira
E já se fazia isso no Brasil?
Cultura de tecido vegetal era das biotecnologias consideradas mais de ponta na época. Em Ohio, trabalhávamos sob a orientação de Dougall, e veio para o laboratório uma pesquisadora do U. S. Geological Survey, que era a Linda Hancock Styer [1945-2007]. Comecei a namorar com a Linda, me casei com ela e a trouxe para o Brasil. Ela ajudou a dar um impulso grande na cultura de tecido vegetal no Brasil.
Como foi seu retorno para a Esalq?
Fiz o doutorado em três anos e pouco e voltei para a Esalq em 1970. Fui dar aula, montar grupos. A Linda estava trabalhando informalmente, montando grupo de cultura de tecido vegetal, mas não tinha vaga de professor na área. A UnB [Universidade de Brasília] nos convidou para dar uma palestra aqui em Brasília. Depois da palestra, o reitor, que era o Amadeu Cury [1917-2008], e o vice, José Carlos Azevedo [1932-2010], falaram: “Vocês podiam vir para cá. Estamos precisando de pessoal em ciências da vida”. Expliquei que tinha um compromisso com a USP por quatro anos, período em que estive ausente no doutorado. Mas aí propuseram contratar a Linda e conversar com o reitor da USP sobre a possibilidade de me cederem para a UnB. A USP me liberou por quatro anos, mas eu acabei pedindo demissão para não ficar segurando a vaga na Esalq.
Que ambiente encontrou na UnB?
Tinha o curso de biologia, mas pouca coisa na área vegetal. Por outro lado, tinha um grupo grande em doenças endêmicas, liderado pelo Wladimir Lobato Paraense [1914-2012], um grande nome na pesquisa de esquistossomose. Também tinha um outro grupo investigando a doença de Chagas, liderado pelo Aluízio Prata [1920-2011], e um grupo muito forte do Isaac Roitman também. Fui trabalhar com tecido vegetal, mas precisava ter um grupo mais forte para dar um resultado mais concreto. Foi quando o Isaac Roitman, o Lobato Paraense e o Aluízio Prata me convidaram para um programa criado pelo CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], o PIDE, Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Aceitei fazer a parte de bioquímica do Trypanosoma cruzi, da doença de Chagas, e depois também do caramujo transmissor da esquistossomose, o Biomphalaria. A ideia de compreender a doença de Chagas me motivava também por uma razão particular. Eu descobri que tinha a doença.
Me casei com a Linda e a trouxe para o Brasil. Ela ajudou a dar um impulso na cultura de tecido vegetal
Como o senhor soube?
Em 1974, tinha um professor que trabalhava com o Isaac Roitman e era de Paracatu. Ele me falou: “Ruy, sei que você morava na roça, você já fez exame de Chagas?”. Eu falei: “Nunca fiz. Eu lembro que, quando criança, era picado pelo chupão – chamava o barbeiro de chupão –, mas nunca senti nada”. Ele fez o exame e me trouxe o resultado. Depois, o Aluízio Prata confirmou que realmente eu tinha o T. cruzi circulante. Tive muito apoio da equipe médica da UnB. Os exames cardiológicos detectaram uma arritmia. Tenho ela até hoje, mas está sob controle.
E como foi investigar uma doença sendo portador dela?
Só eu fazia a parte experimental, não deixava os alunos mexerem. Tinha medo de uma agulhinha escapar, furar e alguém se contaminar. Eu desenvolvi métodos de cultivo em larga escala de T. cruzi, inclusive para fazer anticorpo em coelho. Eu tinha o problema, não havia como voltar atrás, e meu objetivo era trabalhar e ver se podia contribuir para achar alguma solução. Na época, se achava que o bloqueio de respiração do T. cruzi poderia ser um mecanismo de controle. Eu trabalhei na bancada tentando entender o sistema respiratório do T. cruzi, que era fascinante. Você bloqueia a respiração aeróbica e ele usa outro mecanismo. Bloqueia esse segundo sistema, ele desenvolve um terceiro. Evolutivamente, é um parasita muito inteligente. Quando eu estava estudando o sistema respiratório do T. cruzi, postulamos uma hipótese sobre um mecanismo de escape no sistema imunológico e até formulamos um projeto do CNPq, mas os assessores responderam que não tinha informação na literatura a respeito e não quiseram apoiar. Ideia nova raramente se consegue emplacar. Essa foi uma das minhas decepções com a ciência brasileira. Alguém tem que ter publicado lá fora para haver confiança de que se vai chegar a um resultado. É difícil fazer ciência de ruptura. Creio que por isso acabei fazendo um desvio na minha carreira para me dedicar a formar pesquisadores que pensassem de forma diferente.
Como fez isso?
Em 1983, o reitor da Universidade Federal de Viçosa, o Antônio Fagundes de Sousa, ficou encantado com o volume de publicações que o meu grupo tinha na época. Em Viçosa tinha um grupo grande, com PhD na Universidade Purdue, nos Estados Unidos, mas publicava pouco. Ele me pediu para passar um período lá com a Linda, ver se o pessoal se movimentava para abrir novas linhas de pesquisa. Fiquei lá seis meses. Com o apoio do pró-reitor de pesquisa da época, o Pedro Henrique Monnerat, e o Maurílio Alves Moreira [1949-2013], que era da química, chegamos à conclusão de que a universidade estava muito compartimentalizada. Cada departamento tinha seu feudo, ninguém conversava com ninguém nem podia usar os equipamentos do outro. Surgiu a ideia de arrumar um ambiente que não fosse departamental e criamos o Centro de Biotecnologia da Agropecuária, o Bioagro. Fomos à diretoria da Finep e eles aprovaram o primeiro investimento para alavancar a construção do Bioagro.
Compreender a doença de Chagas me motivava por uma razão particular. Descobri que tinha a doença
Na década de 1980, o senhor teve uma experiência com pesquisa no setor privado. Como foi?
A British American Tobacco, que era dona da Souza Cruz, tinha várias empresas no país, como a Suvalan e a Maguary, no segmento de sucos. Também tinha 35% das ações da Aracruz Celulose. Eles montaram um núcleo de biotecnologia para apoiar esses negócios, a Bioplanta, e acharam que eu tinha perfil para coordenar a equipe de biotecnologia vegetal. Fiquei três anos.
Ter uma experiência em pesquisa no setor privado não era algo comum na época, não?
Havia muito preconceito. Eu me lembro de um fato curioso que aconteceu em 1989, logo depois da Constituinte. Me convidaram para uma mesa-redonda em um painel sobre biotecnologia no Brasil que estava acontecendo na Unicamp e era promovido por um pessoal do Ministério da Ciência e Tecnologia. Quando cheguei lá, resolveram me tirar da mesa quando souberam que eu estava em uma empresa privada, alegando que era uma ação promíscua. Ficou um pouco chato, não para nós da Bioplanta, mas para o ministério. Felizmente, as coisas evoluíram, mas aqui acontecem muito lentamente. Os países que são nossos competidores comerciais evoluíram em alta velocidade.
O senhor se aposentou na UnB em 1994. Se tivesse que apontar sua contribuição principal, o que diria?
Minha grande contribuição foi na área de formação, sobretudo de alunos da graduação. Tive um papel de induzir o pessoal a ir para o laboratório trabalhar e pensar, ser mais crítico, analítico. Dava disciplinas pesadas, biofísica, bioquímica, enzimologia. Formamos muita gente com boa qualificação. Na época, muita gente ainda fazia doutorado fora do país e precisava ter uma base científica muito boa. Minha grande contribuição foi ajudar a construir uma geração com excelente base científica.
Depois da aposentadoria, o que foi fazer?
Duas semanas depois da aposentadoria, me chamaram no Ministério da Saúde, eu e a professora Kumiko Mizuta [1940-2023], para ajudar a estruturar a Secretaria de Ciência e Tecnologia do ministério. Fomos lá. Nessa época, também recebi um convite do reitor da Universidade Federal de Goiás, o Ary do Espírito Santo, e topei trabalhar como professor visitante. Permitiram que eu contratasse algumas pessoas para mudar o ambiente. Liguei para o João Lúcio de Azevedo, da Esalq, o Almiro Blumenschein [1932-2019], que tinha saído de Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária]. Foi de imediato incorporado à equipe o saudoso Sérgio Olavo Pinto da Costa [1930-2023]. Nós tentamos motivar o pessoal da federal de Goiás, mas os professores eram desanimados. Quando chegamos, fizemos um seminário e apareceu muito pouca gente. Fazíamos experimentos com os alunos e a meninada foi se entusiasmando. Aí pudemos contratar professores novos. Quando terminamos o nosso tempo lá, em dois anos, fizemos outro seminário no auditório e estava cheio de gente.
O senhor foi diretor do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq. O que conseguiu fazer nesse período?
O ministro da Ciência e Tecnologia José Israel Vargas me ligou dizendo que o José Galizia Tundisi, presidente do CNPq, precisava de um diretor de programas especiais. Topei o desafio e foi possível quebrar alguns paradigmas. Criamos, por exemplo, um programa de agronegócio. Propusemos ao ministro Vargas e a primeira reação dele foi dizer: “Ciência não é negócio, não”. Eu brinquei: “Ministro, o senhor tem um negócio com o Estado, o Estado paga e o senhor presta um serviço em troca”. Ele aceitou criarmos o programa do agronegócio, que serviu de interface entre o CNPq, a Embrapa e o setor empresarial.
O senhor participou do grupo que discutiu o projeto da Lei de Inovação, aprovado em 2004. Como foi essa participação?
Na época do CNPq, eu participei de um grupo de cooperação Sul-Sul. Fui à Coreia do Sul e conheci a legislação de inovação coreana. Ela havia reconectado os institutos de apoio ao desenvolvimento industrial, que estavam ficando muito acadêmicos, com a estratégia de desenvolvimento do país. Mais tarde, eu estava ajudando o presidente da Embrapa, o Alberto Portugal, e o Ministro da Ciência e Tecnologia, o embaixador Ronaldo Sardenberg, foi lá participar de uma conferência. O Portugal me disse: “Provoca o ministro sobre o que você me contou sobre a Coreia”. Quando ele me deu a palavra, eu disse: “Ministro, o sistema de controle do Estado cria uma série de feedbacks negativos e está bloqueando a Embrapa em suas estratégias. É preciso mudar isso”. E contei o que a Coreia tinha feito. Nessa época, o então senador Roberto Freire já tinha feito a proposta de uma lei de inovação baseada no modelo francês, que é muito burocrático. Mandei e-mails para o Carlos Américo Pacheco, que era o secretário-executivo do ministério. “Pacheco, olha, o Brasil está perdendo tempo”. O Pacheco articulou um encontro em Brasília. O ministro reuniu um grupo de deputados e senadores, entre eles o Roberto Freire. E teve um debate fechado. Freire falou o que estava pensando. Eu contei um pouco da dificuldade de fazer pesquisa no Brasil, da burocracia, da minha experiência na Bioplanta. Fui convidado para participar do grupo que concebeu o CGEE e ajudar a elaborar a proposta da lei de inovação. Terminou o mandato do Fernando Henrique e a lei de inovação foi encaminhada pelo governo Lula.
Muita gente do agro tem consciência, mas a maior parte só quer aproveitar o máximo possível o espaço rural
Nos últimos anos, o senhor repetiu em outros lugares aquele trabalho que fez na federal de Goiás. Como tem sido a experiência de estruturar o ensino e a pesquisa em instituições?
O reitor da Universidade Católica de Brasília, Guy Capdeville, me convidou para estruturar um programa de pós-graduação em ciências biológicas. Reunimos uma equipe jovem de doutores, muitos com experiência internacional, no Programa de Pós-graduação em Ciências Genômicas e Biotecnologia, que hoje tem o conceito 7, nota máxima da escala da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior]. Os pró-reitores de universidades do Centro-Oeste decidiram criar uma rede de biotecnologia também na nossa região. Eu estava na Católica como pró-reitor e me pediram que coordenasse a rede. Fiquei como secretário-executivo por 12 anos. Em 2013, estava um pouco cansado e decidi mudar de rota. O então ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Marco Antonio Raupp [1938-2021], me pediu ajuda para construir uma proposta do Programa Nacional de Biotecnologia. Montamos uma equipe de mais de 100 pessoas para estruturar uma proposta que ia ser encaminhada para o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT), na época da presidenta Dilma Roussef. No último minuto mudaram de ideia e a proposta não foi ao CCT.
Aí o senhor foi trabalhar em Campo Grande, em Mato Grosso do Sul…
O padre José Marinone, reitor da Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande, me propôs: “Você não quer fazer o mesmo que fez na Católica de Brasília aqui na Universidade Católica Dom Bosco?”. Tinha um programa de biotecnologia para reestruturar. Não só o mestrado subiu de nível, mas também conseguiu aprovar o doutorado e já está com nota 5 na avaliação da Capes. Fiquei lá dois anos. Estava retornando a Brasília quando o Marcelo Turine, reitor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul [UFMS], pediu para ajudar em um doutorado que estava meio fraco. Dei aula por dois anos em bioquímica médica, em inglês, para fortalecer a avaliação do programa junto à Capes. Aí veio a pandemia e eu voltei para Brasília para cuidar da minha fazenda de pecuária leiteira.
Recentemente, o senhor passou um período na Esalq. Como foi esse retorno?
O diretor da Esalq, o Durval Dourado Neto, me ligou. Estava no segundo ano de mandato, queria que eu ajudasse no planejamento estratégico. Vendi a fazenda aqui e fui trabalhar com o Durval. A FAPESP lançou o edital do Cepid [Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão]. Eu falei: “Durval, está na hora de aproveitar esse edital”. Nos reunimos com o Ricardo Ribeiro Rodrigues, o Pedro Brancalion, o Eduardo Aranha, o Luiz Estraviz, para conversar sobre qual tema de Cepid faria sentido para a Esalq. O Luiz deu a ideia do carbono na agricultura tropical e o Eduardo Cerri assumiu a liderança. Felizmente, foi aprovado e caminha para ser uma grande referência internacional. Terminado o período lá, reassumi na Católica de Brasília.
O senhor manteve um pé na vida rural. Ainda tem alguma fazenda?
Saí da roça com 18 anos, mas a roça nunca saiu de mim. Minha família trabalhava em Barretos, em uma fazenda de pecuária chamada Nova Índia, o patrão era muito rico, rigoroso, como esses coronéis. Certa vez falei com meu pai: “Um dia, vamos comprar uma fazenda”. Quando eu vim aqui para Brasília, em 1972, consegui comprar uma área e coloquei o mesmo nome, Fazenda Nova Índia. Mantive durante uns 25 anos. Aí passei para os filhos.
O que produzia?
Tive até mil cabeças de gado, tirava 1.200 litros de leite por dia. Também plantava soja, milho, café. Tinha 2.050 hectares. Só abri mil hectares, deixei 1.050 em reserva. Estudantes de ecologia fizeram trabalhos de doutorado lá nos corredores ecológicos. A Linda ajudou a montar o primeiro programa de ecologia no Brasil, aqui na UnB, na década de 1970. Com a morte da Linda, a fazenda ficou para os filhos. Depois eu montei uma outra pequenininha, bem menor, de gado e leite também. Vendi quando fui para Piracicaba. Agora estou montando outra, de café. Meu hobby é fazer café especial. Fica em Cristalina, em Goiás.
Como está a situação do Cerrado? A notícia recente é que a mudança no uso da terra no Cerrado vem se acelerando muito…
Houve um equívoco na exploração agrícola do Cerrado. O governo federal, pelas mãos do Delfim Neto como ministro da Agricultura, trouxe para dirigir o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal [IBDF] o Mauro Silva Reis, professor de Engenharia Florestal de Viçosa. Tinha uma visão fantástica e um PhD em patologia florestal pela Universidade Estadual da Carolina do Norte, em Raleigh. O Mauro Reis mostrou que era importante o Cerrado conservar pelo menos 20% de cada área, mesmo nos projetos de reflorestamento, e isso foi incorporado na lei. Só que em um certo momento a bancada ruralista no Congresso mudou a legislação e disse que podia ter reserva em qualquer lugar, podia comprar reserva fora da sua propriedade. Foi praticamente desmatado tudo. Essa fazenda que eu passei para os filhos foi vendida. O comprador não deixou uma árvore em pé. Tem muita gente do agro que tem consciência, mas a maior parte só pensa em aproveitar o máximo possível o espaço rural. É importante manter os polinizadores e uma parte do ecossistema.