Dois homens, feridos num desastre de automóvel, chegam a um pronto-socorro de um hospital público, na periferia de São Paulo. Um tem 25 anos. O outro, 65 anos. Só há uma vaga para internação. Qual deles deve ser atendido? A pergunta foi feita a dois grupos. Um representava o público em geral. O segundo, estudantes de administração hospitalar. Os resultados foram bem diferentes. O público em geral optou pelo homem de 65 anos. O mais velho, determinaram essas pessoas, teria mais necessidade do tratamento que uma pessoa mais nova. Os estudantes deram prioridade ao homem de 25 anos.
Seu argumento foi o de que as despesas feitas pelo hospital, nesse caso, teriam um benefício bem maior. Esse tipo de reação ganhou força com o tempo de aprendizado dos alunos. Entre os estudantes do primeiro ano, a proporção a favor do homem de 25 anos foi de 51,5%. Entre os estudantes do quarto e último ano, chegou a 92%.
“Um dos fatos mais relevantes desse trabalho é a opção dos estudantes de administração hospitalar pela alternativa que dê menos gastos ao hospital”, diz Paulo Antônio de Carvalho Fortes, professor de Ética da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da pesquisa. “Mas uma das conclusões mais importantes é o próprio fato de os usuários do sistema público de saúde aceitarem que é preciso haver critérios para definir quem terá prioridade no atendimento”, acrescentou.
A pesquisa, chamada O Dilema de Decidir Quem Deve Viver , realizada com o apoio da FAPESP, colheu os depoimentos, numa de suas etapas, de 400 pessoas, homens e mulheres, que acompanharam parturientes atendidas no Hospital Público de Diadema, um dos municípios mais pobres da área metropolitana de São Paulo. A área foi escolhida porque a pesquisa queria ouvir pessoas carentes e sem outra opção de atendimento a não ser uma unidade do serviço público de saúde.Em outra etapa, foram ouvidos 64 alunos do primeiro ano e 25 do quarto e último ano de um curso de graduação em administração hospitalar de São Paulo.
A instituição na qual se realiza o curso pediu sigilo em torno do seu nome, em troca da autorização para a realização da pesquisa entre seus alunos. Nos dois casos, foram apresentadas 15 opções, nas quais os entrevistados deveriam escolher entre um e outro caso como tendo preferência para o atendimento.É a primeira vez que se realiza uma pesquisa desse tipo no Brasil.
“Há pesquisas semelhantes na Austrália, na Inglaterra e nos Estados Unidos, mas envolvendo apenas situações de terapia intensiva, transplantes e novas tecnologias”, informa. “Em países como a França ou a Inglaterra, essa pesquisa nem poderia ser realizada, pois para um cidadão desses países é inconcebível que não haja vaga para um tratamento e tenha que ser feita uma escolha”, diz. “Na França, nos últimos anos, houve apenas um caso de não-atendimento, considerado como omissão de socorro a um paciente e o responsável está preso.”
No Brasil, afirma o professor, as carências do sistema público de saúde são tão grandes que a população se conformou com a existência de desigualdades no acesso ao tratamento médico. Um sinal disso é a proporção relativamente pequena, de 5%, de pessoas que se recusaram a responder na íntegra ao questionário. Nas pesquisas inglesas e australianas, as recusas variaram entre 30% e 40%. “O baixo índice de recusa é mais um indicador de que nossa sociedade admite a necessidade de haver critérios sociais para escolhas deste tipo”, declara Fortes.
Uma característica das respostas do público em geral foi a preferência constante pelas pessoas socialmente mais carentes. A preferência pelo idoso de 65 anos com relação ao adulto de 25 anos é um exemplo disso, de acordo com Fortes. Outro exemplo foi o fato de o público em geral ter optado pelo socorro a uma criança de 1 ano, em confronto com uma criança de 7 anos. Mais uma vez, os estudantes de administração hospitalar tiveram reação contrária. Os estudantes de primeiro ano preferiram a criança de 7 anos na proporção de 60%. No quarto ano, o índice pulou para 71%.
Outra diferença surgiu no caso de duas pessoas, uma fumante e outra não-fumante, atendidas com uma crise de bronquite. Cerca da metade das pessoas entrevistadas entre o público em geral optou pelo atendimento ao fumante, provavelmente entendendo que fumar não deve ser considerado como fator de discriminação negativa. Entre os estudantes, 84% dos alunos do último ano fizeram a opção pelo não-fumante. Os alcoólatras, porém, tiveram condenação geral. Para o público, pessoas com esse vício “procuram a doença”. Já um caso envolvendo uma mulher com HIV positivo, doente de pneumonia, provocou compaixão entre os entrevistados do público em geral. Ela foi considerada vítima de uma situação.
Opções claras
Outras preferências que ficaram muito claras foram as do atendimento a uma mulher casada, com relação a uma mulher solteira; a uma mãe de três filhos, com relação à mãe de um filho; a uma mulher com relação a um homem; a uma mulher com hepatite, com relação a uma alcoólatra. No caso das entrevistas com estudantes, um dos objetivos foi o de avaliar até que ponto os alunos do último ano absorveram os valores passados pelo curso. Em alguns casos, houve mesmo inversão de valores entre os dois grupos. Por exemplo, no primeiro ano, a preferência de atendimento, com 75%, foi para um homem empregado que sofrera uma crise cardíaca. No último ano, a preferência passou a ser para um homem desempregado, com 64%.
De acordo com Fortes, os médicos costumam dizer que, quando colocados diante de uma decisão desse tipo, se guiam por critérios exclusivamente técnicos. Mas é inegável que critérios sociais e médico-sociais também são levados em conta. Por isso, ele pretende realizar o mesmo levantamento também com médicos e outros profissionais da saúde. “Só assim será possível tirar conclusões sobre as motivações dos médicos ao tomar decisões que vão além de critérios técnicos”, afirma.
Fortes diz que é contra a idéia de que devam existir critérios que não sejam técnicos para definir prioridades no atendimento. Mas admite que diante das dificuldades para o atendimento universal, no sistema de saúde brasileiro, isso se transforma numa utopia. Então, afirma, se for necessária a existência também de critérios sociais ou médico-sociais, “eles precisam ser fruto de um debate e do consenso na sociedade”.
Duas linhas
Para o professor, há duas linhas bem nítidas de critérios para as opções na cultura brasileira. Uma é a que chama de ética utilitarista, que procura tomar decisões com base no custo-benefício. A outra tende a privilegiar os menos favorecidos. “O balizamento nessa situação de diversidade ética deve ser dado pela garantia de respeito à dignidade humana”, declara. “Para isso, deve ser obedecida a regra de que cada indivíduo deve ser tratado como um fim em si mesmo, não somente como um meio para a satisfação de interesses de terceiros, da ciência, de cientistas ou de interesses industriais e comerciais.”
Os critérios técnicos alegados pelos médicos, em geral, se fundamentam no que é apresentado como uma objetividade científica. Entre eles estão a eficácia clínica; a possibilidade de ações preventivas; a vulnerabilidade da doença à tecnologia existente; o tempo necessário para o tratamento; a gravidade da doença; e a situação de emergência.
Os critérios não-técnicos, por sua vez, nem sempre são apresentados com tanta clareza. “São utilizados critérios médico-sociais, como cooperação, idade, sexo, progresso da ciência, qualidade do benefício, custo-eficácia, custo-benefício, força de trabalho potencialmente afetada e recuperada, potencial de vida, qualidade ajustada de anos de vida e ambiente de suporte para a continuidade do tratamento”, diz Fortes. A eles se unem critérios sociais, como condições familiares, utilidade social, barreiras para o acesso à continuidade do tratamento, mérito social, responsabilidade social, nível de renda e produtividade.
Posições diferentes
Não se pode dizer que os médicos adotem uma posição ou outra com relação a dilemas éticos capazes de ultrapassar questões técnicas. Isso depende da postura geral do hospital em que trabalha e da própria posição individual. Fortes cita, como exemplo, o Instituto da Criança, quando lá trabalhava, em meados dos anos 80. Mesmo se recebesse um paciente enviado por engano por outro hospital ou de outro município, a criança era sempre considerada responsabilidade do hospital. “Ela só saía, se fosse o caso, com um encaminhamento negociado e pactuado com outro hospital”, afirma.
Outro ponto sublinhado por Fortes é o fato de o Brasil, em termos internacionais, não estar tão ruim assim quanto à disponibilidade de leitos hospitalares. A proporção recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é de quatro leitos por 1.000 habitantes. O Brasil tem 3,2. Logicamente, estamos muito longe de países como a França, com 9,2 leitos por 1.000 habitantes, e Alemanha, com 8,3. Mas o principal problema brasileiro, segundo o professor, é a existência de enormes disparidades regionais e microrregionais.
Fortes chama a atenção para tentativas de introdução no Brasil de um procedimento introduzido nos Estados Unidos, o managed care (cuidados administrados), no qual o médico é obrigado a se submeter a normas de controle administrativo que acabam por limitar sua autonomia no que se refere às decisões sobre as necessidades no tratamento de uma pessoa. Fortes destaca que o Conselho Regional de Medicina de São Paulo vem reagindo contra essas tentativas. “O sistema está avançando muito nos Estados Unidos, mas enfrenta resistências em muitos setores e o Congresso americano pretende instituir regras a respeito”, declara.
Perfil :
Paulo Antônio de Carvalho Fortes, tem 49 anos e leciona no Departamento de Prática de Saúde Pública na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). É mestre em Pediatria e doutor em Saúde Pública. Faz parte do Conselho Nacional de Ética na Pesquisa (Conep).
Projeto
O Dilema de Decidir Quem Deve Viver; Investimento : R$ 5.700,00