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Ecologia

Seca e incêndios reduzem biodiversidade das matas

Ainda que as populações de algumas espécies de plantas e animais consigam se reproduzir com a volta das chuvas, os efeitos da seca e dos incêndios podem durar anos

Um tuiuiú protege o ninho em meio aos incêndios florestais no Pantanal em junho de 2024

Marcelo Camargo / Agência Brasil

Em um sábado de outubro, o biólogo Adalberto Val, especialista em peixes do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), tirou um tempo para visitar o mercado municipal de Manaus, um prédio em estilo neoclássico no centro da cidade. Nas barracas de peixes, tudo parecia normal, mas ele logo percebeu que algo não ia bem. “Pescadores e comerciantes comentavam que a quantidade diminuiu e o preço para os consumidores estava mais alto”, ele relatou.

A redução da oferta de peixes, o alimento básico dos moradores da região, é apenas uma consequência visível das intensas secas dos últimos anos – a de 2024 foi uma das piores da história, prejudicando diretamente cerca de 700 mil pessoas nos estados do Amazonas, Acre, Roraima, Amapá, Rondônia e Pará. Rios com centenas de metros de largura, como o Solimões e o Tapajós, tornaram-se riachos correndo entre bancos de areia. Às margens, milhares ou talvez milhões de peixes mortos. Não há números precisos. “Nem sequer conseguimos levantar todos os lugares e a intensidade em que a mortalidade se deu”, diz Val.

As temperaturas mais altas – que alimentaram a seca e, em outras partes do país, os incêndios florestais, mais frequentes nos últimos anos – têm efeitos menos visíveis. Como detalhado pelo grupo do Inpa em um artigo de março de 2024 na Animal Reproduction Science, em águas mais quentes, os espermatozoides do tambaqui (Colossoma macropomum) perdem mobilidade e velocidade e apresentam mais deformações, reduzindo as taxas de fecundação dos ovos e, portanto, prejudicando a reprodução dessa espécie.

Ainda que as populações de algumas espécies de peixes consigam se reproduzir, reanimadas com as chuvas que voltaram no final do ano, os efeitos dos extremos climáticos, principalmente para as espécies maiores e com menor taxa de fecundidade, como o pirarucu (Arapaima gigas), podem durar dois ou três anos. Com base em situações semelhantes em anos anteriores, vários estudos recentes indicam que as populações não só de peixes, mas também de outros animais, além de plantas, que voltarem a crescer nas matas ressecadas, provavelmente serão de menor porte e menos diversificadas que as de antes desses episódios de clima abrasador.

“Normalmente não se associa incêndios com rios, mas os peixes são bastante prejudicados”, diz Val. Segundo ele, espécies de peixes de respiração aérea, como o próprio pirarucu, a piramboia (Lepidosiren paradoxa) e o poraquê (Electrophorus electricus), que saem à superfície da água quando precisam de ar, podem respirar fumaça tóxica e até mesmo morrer por causa disso. Além disso, acrescenta o biólogo, as cinzas geradas pela queima de vegetação aumentam a alcalinidade da água, atingindo outras espécies.

Queimadas frequentes da vegetação nativa podem levar a uma seleção das espécies mais resistentes a altas temperaturas. Em um experimento no Inpa, o biólogo Derek Campos verificou que representantes de uma família de peixes, os caracídeos, são bastante sensíveis e morrem quando a temperatura ultrapassa 32 graus Celsius (oC). Entre os caracídeos estão espécies muito consumidas na região amazônica, como tambaquis e jaraquis (Semaprochilodus spp.). De acordo com esse trabalho, detalhado em um artigo de fevereiro de 2018 na Journal of Thermal Biology, um peixe de pequeno porte, o acará (Pterophyllum spp.), hoje bastante procurado como espécie ornamental, foi o que se mostrou capaz de resistir até 39 oC.

Gudryan Baronio / USPQueimada controlada no Parque Nacional das Sempre-Vivas no município de Diamantina (MG), em julho de 2023Gudryan Baronio / USP

“Cenário apocalíptico”
No final de seu doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o biólogo Ismael Verrastro Brack fez parte de um grupo de quase 20 pessoas que, de setembro a novembro de 2020, avaliou o impacto do incêndio que havia destruído mais de 90% dos 108 mil hectares (ha) da reserva do Sesc Pantanal, em Barão de Melgaço, Mato Grosso.

“Em dois lugares mais abertos havia dezenas de animais mortos”, relata. Carcaças de antas (Tapirus terrestris), queixadas (Tayassu pecari), veados-catingueiros (Mazama gouazoubira), cutias (Dasyprocta azarae), macacos-pregos (Sapajus cay), onça-parda (Puma concolor) e outros animais misturavam-se à vegetação queimada. “Tudo cinza, um cenário apocalíptico”, define o biólogo. A destruição intensa ocorreu em um ano atípico, muito seco e com influência do fenômeno climático El Niño, resultando em queimadas de grandes proporções, muito maiores que as comuns tanto no Pantanal quanto no Cerrado (ver reportagem “Incêndio na beira do rio”, disponível apenas no site).

Em colaboração com funcionários do Sesc, os pesquisadores encontraram centenas de carcaças de animais de médio ou grande porte. De acordo com projeções detalhadas em um artigo de novembro na Journal of Applied Ecology, cerca de 50 mil mamíferos devem ter morrido apenas nessa reserva de janeiro a outubro de 2020.

Uma equipe coordenada pelo médico-veterinário Walfrido Moraes Tomas, da Embrapa Pantanal, de Corumbá, Mato Grosso do Sul, também foi a campo e procurou animais mortos ao longo de 114 mil km de linhas retas, os chamados transectos. As projeções, detalhadas em dezembro de 2021 na Scientific Reports, indicaram que 17 milhões de vertebrados devem ter morrido com os incêndios de 2020 em todo o Pantanal.

“As populações poderiam se recuperar em alguns anos se não houvesse mais incêndios”, comenta Brack. O problema, ele acrescenta, é que o fogo reapareceu nos anos seguintes (ver Pesquisa FAPESP no 342). Em 2024, a área atingida por queimadas foi 150% maior que a do ano anterior, de acordo com o MapBiomas. Os animais que sobreviverem tendem a ter menos alimentos, menos água e dificuldades para encontrar parceiros na época de reprodução.

As queimadas modificam também a estrutura da floresta, de acordo com um experimento conduzido entre 2019 e 2020 na Reserva Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns, na região de Santarém, no Pará. Pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) avaliaram 3.620 árvores e palmeiras de 326 espécies em 16 áreas, classificadas em três categorias: floresta antiga não queimada, ou queimada uma vez (em 2015) ou duas vezes (em 2015 e 2017). Os incêndios de 2015 na Resex foram desencadeados por um período de seca severa associado ao El Niño de 2015, que persistiu até 2016, atingindo 1 milhão de hectares (ha); os de 2017 se alimentaram de outro período de seca intensa, dos efeitos persistentes do El Niño e da queima da madeira que dessecou no ano anterior, acrescentando centenas de milhares de ha às áreas já carbonizadas.

Como detalhado na Environmental Research Letters de outubro, o volume da floresta – a biomassa – acima do solo diminuiu 44% em florestas queimadas uma vez e 71% nas queimadas duas vezes. Houve também uma redução de 50% da diversidade de espécies nas áreas que passaram por dois incêndios, após os quais predominavam espécies pioneiras, de porte pequeno e crescimento rápido, e menos suscetíveis ao fogo.

No Cerrado, os constantes incêndios naturais selecionaram populações de árvores com cascas mais espessas, capazes de resistir a altas temperaturas. Porém, sob queimadas muito frequentes, algumas espécies podem adquirir um porte menor ou mesmo morrer. “As árvores são pouco resistentes a queimas muito frequentes, anuais ou bianuais, quando não há tempo de os indivíduos jovens desenvolverem uma casca espessa ”, diz a bióloga Vânia Regina Pivello, da Universidade de São Paulo (USP). Em um artigo de abril de 2011 na Fire Ecology, ela já alertava sobre os danos à biodiversidade causados pela intensificação das queimadas na Amazônia, diferenciando-a do Cerrado, onde muitas plantas, principalmente as rasteiras, beneficiam-se do fogo periódico.

Não são só as árvores que encolhem após sofrerem os efeitos do fogo frequente. Várias espécies de sempre-vivas (Comanthera spp.), algumas já em risco de extinção, podem apresentar porte menor e crescimento mais lento se submetidas a incêndios anuais, em comparação com as plantas que não viveram essa situação, de acordo com experimentos conduzidos pelo biólogo Gudryan Baronio, também da USP, no Parque Nacional das Sempre-Vivas, em Minas Gerais.

Era uma boa região para avaliar os efeitos do fogo porque os coletores de sempre-vivas, que as usam na produção de artesanato na região, estimulam a floração por meio de queimadas controladas. Com o acompanhamento da equipe do parque, os pesquisadores estudaram duas áreas, cada uma com oito parcelas (quatro queimadas experimentalmente e quatro mantidas sem fogo), no início e no fim da estação seca, respectivamente em maio e setembro de 2019.

O objetivo, como descrito em um artigo publicado em novembro na revista científica Flora, era verificar não apenas os efeitos imediatos da queimada nas plantas, mas também os decorrentes da época em que é feita. O chamado fogo tardio, no final da seca, tende a ser naturalmente mais intenso que o precoce, no início da seca, quando a vegetação e o solo ainda guardam alguma umidade.

“Depois de dois anos, a cobertura da vegetação herbácea que passou pelo fogo precoce se recuperou quase completamente, mas na do fogo tardio se recuperou apenas parcialmente”, conta Baronio. “Nas duas, porém, a altura das plantas que rebrotaram foi em média 4 centímetros (cm) menor, em comparação com o grupo-controle.” Dependendo da espécie, as sempre-vivas adultas geralmente têm de 20 cm a 60 cm de altura.

Esse trabalho integra um projeto de Pivello apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e resultou em algumas recomendações para os coletores de flores. “Queimar todo ano, nem pensar, pois não há tempo de a vegetação rupestre se recuperar”, diz ela. “Precisamos repensar quando, onde e como usar o fogo controlado, que é uma estratégia importante para o manejo tradicional da vegetação e para os gestores do parque, a fim de diminuir material combustível e evitar os incêndios florestais, de difícil controle.”

A reportagem acima foi publicada com o título “Menos vida nas matas” na edição impressa n° 347, de janeiro de 2025.

Projetos
Como o manejo de fogo afeta as interações entre plantas, polinizadores e formigas no campo rupestre? (n° 21/09247-5); Modalidade Bolsas no País – Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Vânia Regina Pivello (USP); Beneficiário Gudryan Jackson Baronio; Investimento R$ 269.092,13.
Sucesso reprodutivo de plantas e suas respostas à ocorrência do fogo: O papel da deposição de pólen (no 23/04378-0); Modalidade Bolsas no Exterior – Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Vânia Regina Pivello (USP); Beneficiário Gudryan Jackson Baronio; Investimento R$ 378.467,44.

Artigos científicos
BARONIO, G. J. et al. Vegetation dynamics after fire in the Brazilian campo rupestre: Effects on native plant communities and flower harvesting. Flora. v. 320, 152611. nov. 2024.
BRACK, I. V. et al. Spatial modelling and estimation of mammals’ mortalities by Pantanal 2020 megafires. Journal of Applied Ecology. v. 61, n. 11. nov. 2024.
CAMPOS, J. F. et al. The influence of lifestyle and swimming behavior on metabolic rate and thermal tolerance of twelve Amazon forest stream fish species. Journal of Thermal Biology. v. 72, p. 148-54. fev. 2018.
CASTRO, J. da S. et al. In vivo exposure to high temperature compromises quality of the sperm in Colossoma macropomum. Animal Reproduction Science. v. 262, 107412. mar. 2024.
PEREIRA, C. A. et al. Recurrent wildfires alter forest structure and community composition of terra firme Amazonian forests. Environmental Research Letters. v. 19, n. 11. 8 out. 2024.
PIVELLO, V. R. The use of fire in the Cerrado and Amazonian rainforests of Brazil: Past and present. Fire Ecology. v. 7, p. 24-39. 1º abr. 2011.
TOMAS, W. M. et al. Distance sampling surveys reveal 17 million vertebrates directly killed by the 2020’s wildfires in the Pantanal, Brazil. Scientific Reports. v. 11, 23547. 16 dez. 2021.

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