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Especial biota educação XII

Sem florestas, gasta-se mais

Desmatamento eleva em 100 vezes o custo do tratamento de água

Da Agência FAPESP

Floresta amazônica: boa parte do carbono das folhas, galhos e sedimentos vai para os rios

Eduardo CesarFloresta amazônica: boa parte do carbono das folhas, galhos
e sedimentos vai para os riosEduardo Cesar

O desmate da vegetação que recobre as bacias hidrográficas altera o ciclo de chuvas, prejudica a recarga de aquíferos subterrâneos, consequentemente reduz os recursos hídricos disponíveis para o abastecimento humano e tem forte impacto sobre a qualidade da água, encarecendo em cerca de 100 vezes o tratamento necessário para torná-la potável. O alerta foi feito pelo pesquisador José Galizia Tundisi, do Instituto Internacional de Ecologia (IIE), durante palestra apresentada no terceiro encontro do Ciclo de Conferências 2014 do programa Biota-FAPESP Educação, realizado em 24 de abril, em São Paulo.

Em áreas com floresta ripária, também chamada de mata ciliar, contígua a cursos d’água, “basta colocar algumas gotas de cloro por litro e obtemos água de boa qualidade para consumo”, disse Tundisi. Já em locais com vegetação degradada, como o sistema Baixo Cotia, a bacia hidrográfica do rio Cotia, na Região Metropolitana de São Paulo, é preciso usar coagulantes, corretores de pH, flúor, oxidantes, desinfetantes, algicidas e substâncias para remover o gosto e o odor. “Todo o serviço de filtragem prestado pela floresta precisa ser substituído por um sistema artificial e o custo passa de R$ 2 a R$ 3 a cada mil metros cúbicos para R$ 200 a R$ 300. Essa conta precisa ser relacionada com os custos do desmatamento.”

Quando a cobertura vegetal nas bacias hidrográficas é adequada, por meio das florestas ripárias, as matas de áreas alagadas e demais mosaicos de vegetação nativa, a taxa de evapotranspiração, definida como a perda de água do solo por evaporação e da planta por transpiração, é mais alta. Consequentemente, uma quantidade maior de água retorna para a atmosfera e favorece a precipitação. Nesses casos, segundo Tundisi, o escoamento da água das chuvas ocorre mais lentamente, diminuindo o processo erosivo. Parte da água se infiltra no solo por meio dos troncos e raízes, que funcionam como biofiltros, recarrega os aquíferos e garante a sustentabilidade dos mananciais.

A situação é oposta em solos sem vegetação nativa. “O processo de drenagem da água da chuva ocorre de forma muito mais rápida e há uma perda considerável da superfície do solo, que tem como destino os corpos d’água. Essa matéria orgânica em suspensão altera completamente as características químicas da água, tanto a de superfície como a subterrânea”, disse ele. A mudança na composição química da água é ainda mais acentuada quando há criação de gado ou uso de fertilizantes e pesticidas nas margens dos rios. Ocorre aumento na turbidez e na concentração de nitrogênio, fósforo, metais pesados e outros contaminantes – impactando fortemente a biota aquática. Tundisi lembrou que, além de garantir água para o abastecimento humano, os ecossistemas aquáticos oferecem uma série de outros serviços de grande relevância econômica, como geração de hidroeletricidade, irrigação, transporte (hidrovia), turismo, recreação e pesca.

José Tundisi, Victoria Ballester e Humberto Rocha: alertas

Eduardo Cesar e Léo RamosJosé Tundisi, Victoria Ballester e Humberto Rocha: alertasEduardo Cesar e Léo Ramos

A mensuração do valor desses serviços ecossistêmicos é o objetivo do projeto Pesquisas ecológicas de longa duração nas bacias hidrográficas dos rios Itaqueri e Lobo e represa da UHE Carlos Botelho, Itirapina, SP, Brasil (PelD), coordenado por Tundisi com apoio da FAPESP e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “São serviços estratégicos e fundamentais para o desenvolvimento do estado de São Paulo. Sua valoração é de fundamental importância para a implantação de projetos de economias verdes, dando ênfase à conservação dessas estruturas de vegetação e áreas alagadas”, disse.

Ciclo de carbono
Na Amazônia, “sempre se acreditou que quase todo o carbono da atmosfera absorvido pela floresta ficasse fixado no solo, mas mostramos que uma parcela significativa vai para os rios na forma de folhas, galhos e sedimentos”, disse a pesquisadora do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da Universidade de São Paulo (USP) Maria Victoria Ramos Ballester, em sua apresentação. “Esse material é decomposto por microrganismos e volta para a atmosfera.” Segundo ela, as águas fluviais processam em nível global praticamente a mesma quantidade de carbono estimada para os sistemas terrestres – algo em torno de 2,8 petagramas (2,8 bilhões de toneladas) por ano.

Ela descreveu os estudos realizados com apoio da FAPESP que revelaram a importância dos rios no balanço de carbono na bacia amazônica, incluindo a floresta e os solos. Parte dos resultados foi divulgada em 2005 na revista Nature. Estudos do grupo mostraram que na porção central da bacia amazônica a quantidade de carbono nas águas era cerca de 13 vezes maior que a descarregada no oceano. “As análises da composição isotópica mostraram que o carbono é originário principalmente de plantas jovens, de aproximadamente 5 anos. Ele é metabolizado rapidamente dentro do rio e retorna para a atmosfera. O metabolismo do carbono ocorre ainda mais rapidamente em rios pequenos”, disse ela.

Cantareira, zona norte de São Paulo: luta contínua entre as casas e a vegetação

Eduardo CesarCantareira, zona norte de São Paulo: luta contínua entre as casas e a vegetaçãoEduardo Cesar

O intenso processo de ocupação da Amazônia e a consequente mudança no padrão de uso do solo têm alterado a ciclagem de nutrientes nos rios, elevando a quantidade de carbono e reduzindo o oxigênio dissolvido, alertou a pesquisadora. “A maior quantidade de matéria orgânica em suspensão na água, aliada à maior penetração de luz resultante da retirada das árvores, favorece o crescimento de uma gramínea conhecida como Paspalum, o que aumenta o consumo de oxigênio e o fluxo de dióxido de carbono (CO2) para a atmosfera”, disse ela.

Os efeitos da mudanças no hábitat fluvial sobre a biota foi avaliado em um estudo realizado no âmbito do projeto temático O papel dos sistemas fluviais amazônicos no balanço regional e global de carbono: evasão de CO2 e interações entre os ambientes terrestres e aquáticos, coordenado pelo pesquisador Reynaldo Luiz Victória. O grupo do Cena analisou as transferências de nitrogênio e a biodiversidade de peixes de duas bacias interligadas em Rondônia, com 800 metros de extensão e as mesmas condições físicas. Uma das bacias, no entanto, era margeada por áreas de pastagem de gado e a outra possuía mata ciliar.

Os pesquisadores observaram que o rio que teve sua cobertura vegetal modificada apresentava apenas uma espécie de peixe, enquanto o curso da água cuja mata ciliar foi mantida possuía 35 espécies. Também houve alteração significativa da diversidade de espécies de invertebrados observada.

Desigualdade
A desigualdade no acesso aos abundantes recursos hídricos existentes no território brasileiro foi tema da terceira e última palestra do encontro, proferida por Humberto Ribeiro da Rocha, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG-USP). Segundo ele, os rios brasileiros oferecem cerca de 5.660 quilômetros cúbicos de água por ano (km3/a) – o equivalente a 12% da disponibilidade hídrica mundial. A demanda no país, segundo o pesquisador, é de 74  km3/a, ou seja, menos de 2% da quantidade ofertada.

Áreas alagadas e matas ciliares: fundamentais para o abastecimento dos moradores das cidades

Eduardo CesarÁreas alagadas e matas ciliares: fundamentais para o abastecimento dos moradores das cidadesEduardo Cesar

“O grande problema é a desigualdade na distribuição. Existem regiões com muito, como a Amazônia, e outras que enfrentam desabastecimento”, disse Rocha. Enquanto no Nordeste e no norte de Minas Gerais a falta de chuva é a causa da escassez hídrica, acrescentou o pesquisador, nos grandes centros urbanos como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre e Goiânia o problema é o adensamento populacional. “Há uma grande dificuldade de consolidar sistemas que acompanhem o crescimento populacional e a demanda dos setores industrial e agrícola. Todos trabalham no limite e, quando há um evento climático extremo com a estiagem que afetou São Paulo no último verão, o abastecimento entra em crise”, disse ele. A frequência das estiagens e dos extremos climáticos deve aumentar nos próximos anos em razão das mudanças no clima, o que deve impactar diretamente a disponibilidade dos recursos hídricos nos grandes centros urbanos brasileiros.

Biota Educação
O ciclo de conferências organizado pelo Programa de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade do Estado de São Paulo em 2014 tem como foco os serviços ecossistêmicos. Outros dois encontros estão programados para este semestre, com os temas: “Biodiversidade e mudanças climáticas” (relacionadas à perda de biodiversidade) e “Biodiversidade e ciclagem de nutrientes” (um exemplo é a influência da biodiversidade sobre a poluição e o equilíbrio de dióxido de carbono e oxigênio na atmosfera). A iniciativa é voltada à melhoria do ensino da ciência da biodiversidade. Podem participar estudantes, alunos e professores do ensino médio, alunos de graduação e pesquisadores.

Artigo científico
MAYORGA, E. et al. Young organic matter as a source of carbon dioxide outgassing from Amazonian rivers. Nature n. 436, p. 538-41. 2005.

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