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Ecologia

Seres da noite urbana

Levantamento indica que quase metade das espécies de morcego no Brasil vive em cidades

Podcast: Adriana Ruckert da Rosa

 
     
As cidades se tornaram um abrigo relevante para os morcegos. Das 178 espécies desse grupo de mamíferos encontradas no país, 84, quase metade do total, vivem em centros urbanos, principalmente em parques ou fragmentos florestais, de acordo com um estudo da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) publicado em dezembro de 2016 na revista Urban Ecosystems. Elaborado a partir da análise de 111 artigos científicos, esse trabalho registra ocorrências de morcegos em 65 cidades brasileiras.

No Sul e Sudeste, a espécie mais comum é o Artibeus lituratus, um consumidor de frutos com listras brancas na cabeça, que vive sozinho ou em pequenas colônias na copa de árvores ou em porões, caixas de ar-condicionado, garagens e telhados. Além dos frugívoros, há espécies que se nutrem de insetos e outras do néctar de flores. Muito raro em centros urbanos, os hematófagos se alimentam do sangue de bois, cavalos e aves e, embora com apenas três espécies no mundo, são os principais responsáveis pela imagem negativa desses animais.

Os pesquisadores da UFPB se surpreenderam ao encontrar uma diversidade de espécies tão alta em áreas urbanas, mas também se inquietaram. “Precisamos avaliar a saúde dos morcegos que vivem nas cidades, porque já vimos que o ambiente urbano pode prejudicar outros mamíferos silvestres, que têm menos filhotes e se alimentam muito mais, por causa do lixo, que os de florestas”, diz o biólogo Pedro Estrela, professor da UFPB e coordenador do grupo responsável por esse levantamento. “Em João Pessoa, capturamos morcegos com ferimentos ou com alopecia, a falta de pelo, possíveis indicadores de estresse”, observa a bióloga Hannah Nunes, integrante da equipe.

Os levantamentos na capital da Paraíba estão indicando como vencer os maiores inimigos desses animais: o preconceito e a falta de informação. Embora geralmente inofensivos, os morcegos com frequência despertam medo e repugnância nas pessoas. Apesar de protegidos por lei por serem animais silvestres, são hostilizados e em geral eliminados por moradores inconformados por entrarem em suas salas, banheiros ou garagens. Capazes de assustar facilmente quando, ao anoitecer, saem em bandos de seus refúgios – fendas de prédios, troncos de árvores, forros de casas –, os únicos mamíferos voadores raramente são valorizados por seu papel ecológico, que beneficia as pessoas, já que são vorazes consumidores de insetos, polinizam flores e dispersam sementes, desse modo favorecendo a multiplicação das plantas.

eduardo cesar Artibeus planirostris coletado pelos biólogos Marcus Azevedo e Adriana Ruckert para identificação e coleta de sangueeduardo cesar

“Mostrar os animais ajuda muito a superar os preconceitos”, sugere Hannah. Em 2014 e 2015, ela saiu em busca de morcegos na área urbana de João Pessoa e capturou 3.427, de 23 espécies, principalmente nos fragmentos florestais. Segundo ela, os moradores que acompanhavam as capturas se surpreendiam ao ver os morcegos de perto e verem que o pelo deles era semelhante ao dos cachorros.

Na Grande São Paulo vivem 43 espécies já identificadas – as mais comuns são as do gênero Artibeus, encontradas principalmente em parques –, de acordo com os levantamentos do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) da capital, em conjunto com outras instituições. Adriana Ruckert, bióloga do CCZ, tem observado a adaptação dos morcegos a ambientes urbanos. Ela já os encontrou em lugares barulhentos, como oficinas de costura e fábricas, apesar de terem uma audição sensível. “Eles têm medo de luz, mas aproveitam a iluminação dos postes para caçar insetos”, diz ela.

A equipe do CCZ recebe em média três pedidos diários de socorro de pessoas desesperadas diante de um inesperado morcego que entrou pela janela, se escondeu na toalha de banho ou se enfiou atrás dos armários da cozinha. Segundo a equipe do CCZ, há muita falta de informação. “Já recebemos andorinha que um morador achou que fosse morcego”, conta Adriana. “Uma vez uma mulher ligou para denunciar um morcego imenso, de asas pretas e bico, pousado na janela. Era um urubu…”

A falta de informação tem levado a situações extremas de crueldade e compaixão. Mais de uma vez a equipe de Adriana recebeu morcegos sem cabeça, porque há quem acredite que devam ser decapitados, em consequência dos significados negativos que carregam, como a identificação com figuras míticas da literatura, como vampiros. O contrário também acontece. Uma mulher ligou para perguntar como cuidar de um morcego ao qual tentava dar leite, sem sucesso. Em Cotia, na Grande São Paulo, um Myotis nigricans, um insetívoro, foi encontrado caído no quintal de uma casa e um grupo de crianças queria cuidar dele; a equipe do CCZ pediu que entregassem o animal e recomendou que as crianças começassem a tomar com urgência soro e vacina contra o vírus da raiva, depois identificado no morcego. “Os morcegos, quando se deixam capturar, podem estar com raiva”, diz ela.

Por uma convivência pacífica
Dos 400 morcegos coletados em média por ano na capital e examinados no CCZ, de três a quatro são portadores do vírus da raiva, o agente causador de doenças mais comum transmitido por esses animais. Das 84 espécies do estudo nacional, 27 apresentaram ao menos um entre os 11 tipos de agentes causadores de doenças já registrados, principalmente o vírus da raiva (75% dos casos).

O CCZ, além da raiva, investiga outras doenças relacionadas a morcegos. Em um dos laboratórios, a bióloga Adriana Menezes cuida dos testes feitos regularmente em busca do fungo Histoplasma capsulatum nas vísceras e fezes de morcegos. O H. capsulatum pode causar infecções graves em pessoas com as defesas orgânicas debilitadas (ver Pesquisa FAPESP no 243), mas as saudáveis também podem ter problemas, segundo ela: “A gravidade da infecção varia de acordo com a intensidade da exposição ao fungo e a demora no diagnóstico”.

Em dezembro de 2016, Adriana Menezes identificou esse fungo em amostras de fezes de morcegos do município de São Paulo por meio de uma técnica que ela implantou no laboratório, a reação em cadeia da polimerase em tempo real. Em janeiro, com a mesma metodologia, outro exame deu positivo. Agora, por meio desse teste, sai no mesmo dia o resultado que antes demorava cerca de 50 dias, quando o fungo tinha de ser cultivado até ser identificado. A partir daí os biólogos podem alertar os moradores das áreas de coleta das fezes para limpar os forros das casas, usando máscaras, e evitar a disseminação desse fungo.

Com seus colegas do CCZ, do Programa de Conservação de Morcegos do Brasil (PCMBrasil) e voluntários, Adriana Ruckert promove há três anos o Dia do Morcego, em 1º de outubro, recriando cavernas, ocos de árvores e telhados de casas; em 2016, essa atividade reuniu 300 crianças e adultos no Parque do Ibirapuera. Ela também elaborou o folheto Dez motivos para gostar de morcegos, lembrando que esses animais comem centenas de insetos em poucos minutos. Por sua vez, biólogos do Instituto Butantan criaram o Guia para convivência com morcegos, observando, por exemplo, que um morcego que entra pela janela de uma casa quase sempre está tão assustado quanto as pessoas que o encontram (ver quadro). A equipe do Butantan promove encontros com escolas e caminhadas pela mata do instituto, na qual vivem 11 espécies já identificadas de morcegos. “Observar os morcegos é uma forma de se conectar com a natureza, como também é possível fazer com as aves, as borboletas, os saguis e outros animais que vivem em cidades”, diz a bióloga Erika Hingst-Zaher, coordenadora do Observatório de Aves do Butantan.

Projeto
Estudo da prevalência de Histoplasma capsulatum e Sporothrix spp. em amostras ambientais de áreas urbanas da cidade de São Paulo (nº 14/06571-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Adriana Araujo Reis Menezes (CCZ-SP); Investimento R$ 126.221,14.

Artigo científico
NUNES, H. et al. Bats in urban areas of Brazil: Roosts, food resources and parasites in disturbed environments. Urban Escosystems. 2016 (no prelo).

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