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Entrevista

Sergio Tufik: Observador do sono

O médico começou a estudar os efeitos da privação de sono há quase 50 anos e formou um dos grupos de pesquisa mais produtivos nessa área no mundo

Léo Ramos Chaves

Ao terminar o curso de medicina, em 1972, Sergio Tufik deixou o pai furioso ao anunciar que queria se dedicar à pesquisa científica em vez de cuidar de um hospital próprio, conforme o desejo paterno. Depois, foram os fracassos nos experimentos sobre os efeitos da maconha que o empurraram para o estudo da privação de sono, cujas consequências para o organismo, ele ajudou a mostrar, são catastróficas.

Em 2009, em uma das versões do “Estudo epidemiológico do sono” (Episono), ele descobriu que 32,9% da população da cidade de São Paulo tem apneia de sono – ou síndrome da apneia obstrutiva de sono, uma doença crônica caracterizada pelo fechamento parcial ou total das vias respiratórias várias vezes durante o sono. Em 2018, seu grupo verificou que as pessoas com apneia tinham em comum três pequenas variações em um determinado gene – os chamados polimorfismos de nucleotídeo único, ou SNP. Com isso se tornou possível, por meio de exames de DNA, detectar quem poderia apresentar esse distúrbio de sono e começar logo o tratamento.

De 2001 a 2013, ele coordenou o Centro de Estudos do Sono, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP. Aposentado em 2008 da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde foi professor por quase 30 anos, continua à frente do Instituto do Sono e de um dos grupos de pesquisa brasileiros mais produtivos nessa área no mundo, com 1.044 registros na base Scopus, citados 28.666 vezes, dados do final de janeiro.

Imponente, com voz forte e grave, Tufik tem quase 2 metros de altura e porte atlético. Durante a graduação na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, jogou vôlei, praticou arremesso de peso e foi presidente da Atlética, associação desportiva da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Foi também quando começou a exercitar seu senso de empreendedor, ao vender traduções de artigos científicos, que ele mesmo fazia, para os colegas que não sabiam ler em inglês. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores (PT), pelo qual foi vereador, na década de 1980, e não sossegou: teve uma produtora de vídeo e uma provedora de acesso à internet e é acionista do laboratório de análises clínicas CDB.

Paulistano, separado, com um filho médico, ele atendeu em uma manhã de janeiro a equipe de Pesquisa FAPESP em sua sala de trabalho, no sétimo andar de um edifício da Associação Fundo de Incentivo à Pesquisa (Afip), fundação privada que ele criou durante o doutorado, no final dos anos 1970, e abriga laboratórios de análises clínicas e o Instituto do Sono. Ali, o movimento não para. No início da noite começam chegar as pessoas para as polissonografias – cerca de 100 por turno – que fundamentam as descobertas sobre o sono e as recomendações sobre como dormir melhor, apresentadas na entrevista a seguir.

Idade 73 anos
Especialidade
Medicina do sono
Instituição
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
Formação
Graduação em medicina pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (1972), mestrado em fisiologia pela Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto (1976) e doutorado em psicofarmacologia pela Unifesp (1978)
Produção
1.357 artigos científicos, 3 livros como autor e 9 como coautor

O senhor e sua equipe do Instituto do Sono viram algum efeito da pandemia no sono das pessoas?
O isolamento social e o home office mudaram muito a relação das pessoas com o sono. Não se gasta mais tempo com transporte, mas as preocupações aumentaram. Em 2020, meu filho, Sergio Brasil Tufik, entrevistou 1.700 pessoas no Brasil inteiro, de 18 a 93 anos. Mais da metade, 56%, alegou piora no sono; 39% não perceberam nenhuma diferença; e para 9% o sono melhorou. As pessoas relataram que o sono havia piorado por causa das preocupações, por estarem mais tempo em frente às telas da televisão ou do celular, e mais tempo em casa. Houve muitas queixas, como demorar para pegar no sono, ter indisposição e ficar na cama mais tempo do que gostariam. Mas tudo isso deve voltar ao normal à medida que a pandemia passar.

O senhor dorme bem?
Estou dormindo muito bem. Costumo dormir entre seis e sete horas, mas na última semana estou dormindo oito, não sei por quê. E não ronco, mesmo tendo o tipo físico para roncar, nem tenho apneia.

Viver em uma cidade como São Paulo faz mal para o sono?
Lógico. Você não consegue dormir bem à noite se está estressado ou com medo.

Treinamos times de futebol, com melatonina e luz intensa, para reduzir o efeito do fuso horário

Por muito tempo não se tinha muita clareza sobre as funções do sono. Como é hoje?
Não há nada em que gastamos mais tempo do que dormindo, um terço, às vezes metade da vida. Até algumas décadas atrás não havia como estudar o sono, porque não adianta ficar ao lado de quem está dormindo. Com a polissonografia [exame que registra as variações da respiração, do ritmo cardíaco, da atividade cerebral e de outros parâmetros durante o sono], a partir dos anos 1970, começamos a ver o que acontece com as pessoas enquanto dormem. Fui, nessa época, um dos pioneiros da pesquisa em sono no Brasil.

Como o senhor começou?
Eu vim da USP [Universidade de São Paulo] de Ribeirão Preto para fazer o doutorado na Unifesp com o Elisaldo Carlini [1930-2020]. Ele me pôs para estudar os efeitos da maconha sobre o cérebro de roedores, um tema bastante ousado para o final dos anos 1970. Tentamos descobrir o receptor celular da maconha no cérebro. Estávamos usando Delta-9-THC, um dos compostos da maconha, que é alucinógeno. Carlini privava os camundongos de comida, dávamos maconha e eles brigavam. Depois ele começou a deixar os animais sem dormir, tratava com maconha e de novo os animais brigavam. Tínhamos achado um modelo animal para estudar a ação da maconha. Dormindo à vontade, mas com maconha, os animais ficavam catatônicos. Sem dormir e com maconha, eles brigavam.

Qual era o efeito da maconha no cérebro dos animais?
Não sabíamos. Achávamos que a privação de sono mudava os receptores cerebrais e a maconha os ativava de tal maneira que levava os animais a brigarem. Aí falamos: “Vamos bloquear o efeito da maconha e entender qual receptor está envolvido”. Ficamos superanimados. Eu tratava os animais não mais com privação de sono, mas com haloperidol, um bloqueador do sistema dopaminérgico, usado para crises de esquizofrenia. Ao bloquear os receptores da dopamina, o haloperidol estimula as células a produzirem mais receptores. Depois eu retirava o haloperidol, dava apomorfina e os animais brigavam. Dava maconha, os animais entravam em catatonia total. Carlini ficou nervosíssimo, não descobrimos qual era o receptor, ele parou de trabalhar temporariamente com a maconha e minha tese foi buraco abaixo. Eu falei para ele: “Vou estudar a privação de sono, porque já vi que isso aumenta o efeito da apomorfina e provoca briga”. Ele estava muito bravo e respondeu: “Faça o que você quiser!”. Então eu comecei a estudar sono, lá por 1976, porque a pesquisa com a maconha não deu certo. E me entusiasmei com o sono, porque quase não existia pesquisa na área, não existia associação, nem congresso, nem classificação das doenças. A primeira classificação de doenças do sono foi em 1979. Logo fiz uma descoberta interessante e me convidaram para um congresso mundial de psiquiatria na Finlândia, que tinha uma área de sono. Me senti o máximo, não tinha nem 30 anos ainda.

O que descobriu?
Eu vi que a privação de sono aumentava a sensibilidade dos neurônios dopaminérgicos. Com a privação, quando dava apomorfina, os animais brigavam; sem privação de sono, não brigavam. O sono mudava o status do receptor. A privação de sono faz muitas coisas, essa foi só a primeira. Muda tudo, é uma desgraça. Depois estudei o efeito sobre os receptores cerebrais de serotonina e todos os outros neurotransmissores. Hoje eu falo para os alunos: “Quando ocorre uma desgraça na sua vida, pode ser que seja para o bem e apareça coisa melhor”. Comigo foi assim. Depois do congresso na Finlândia, meu nome cresceu. Fizemos o primeiro congresso aqui em São Paulo, com os grandes especialistas em sono dos Estados Unidos, e organizamos a Sociedade Brasileira do Sono. E a pesquisa foi crescendo. Descobri que somos o grupo que mais produz pesquisa sobre sono no mundo. Fiquei muito impressionado. É porque consegui montar um dream team, com bons líderes. A Monica Andersen publica muito. A Lia Rita Bittencourt, da parte clínica, que hoje é pró-reitora de Pesquisa da Unifesp, também produziu bastante. E o Marco Túlio de Mello foi para a Universidade Federal de Minas Gerais trabalhar com medicina esportiva, algo que já fazia aqui.

O sono afeta o desempenho no esporte?
Completamente. Desde o final dos anos 1990, o Instituto do Sono prepara atletas paraplégicos para as paraolimpíadas e eles ganham em quase todas as modalidades. Agora estamos treinando também times de futebol para reduzir o efeito do fuso horário. O São Paulo teve ajuda do Instituto do Sono para driblar os efeitos do fuso horário no mundial de 2005, no Japão, e ganhamos o campeonato mundial. Sou são-paulino, claro. O Corinthians também contratou o instituto e ganhou o mundial de clubes, em 2012. Até o ano passado, o Santos e o Palmeiras não contrataram e perderam…

Quem tem apneia apresenta mais risco de ter problema cardiovascular. O que aparece primeiro é a hipertensão

Como vocês preparam os atletas?
Quando mudamos de fuso, temos de nos adaptar rápido, senão o rendimento não é o mesmo. Os jogadores, por exemplo, precisam estar tinindo para enfrentar os grandes clubes europeus. Os brasileiros chegam para jogar em outros continentes como zumbis, tendo de atuar em um horário em que o corpo diz que deveriam estar dormindo. Com melatonina e bright light, uma luz intensa, fazemos com que eles sincronizem rapidamente o ritmo circadiano, o horário de sono, com o do lugar onde vão jogar. Se vai daqui para o Japão, inverte o ciclo de claro e escuro, porque é dia aqui e noite lá. Demora duas semanas para uma pessoa se adaptar naturalmente. Com melatonina e luz intensa, fazemos isso em dois dias. A melatonina é um hormônio que sincroniza os ritmos biológicos. Ela é produzida na glândula pineal quando escurece. Disseram que teria muitas outras funções, mas não é tanto assim. Antigamente, quando as atividades eram reguladas apenas pelo sol, o ciclo era simples. Quando a luz chegava, a melatonina baixava e o indivíduo acordava. Quando o sol se ia, ela aumentava e vinha o sono. Com a luz artificial, acabamos com esse ciclo natural, porque à noite as pessoas ficam em casa com a luz acesa, televisão, computador, celular. O excesso de luz noturna bagunçou o sono e as pessoas começaram a ter muita insônia.

Com essa grande produção científica, como seu grupo é visto em outros países?
Ainda há preconceito e inveja. Faz alguns anos, eu estava em um grupo multicêntrico para fazer genética da apneia, o Sagic [Sleep Apnea Global Interdisciplinary Consortium]. Eu me senti maltratado pelos outros pesquisadores. Tive uma ideia muito boa, estudar os extremos. Em geral, quanto mais gordo e velho, mais apneia tem. Pensei diferente, em comparar as situações menos esperadas. Eu queria pegar o homem velho, gordo e sem apneia, de um lado, e de outro uma pessoa jovem, magra e com apneia. Assim poderíamos ver, por exemplo, o que leva uma mulher, que normalmente tem menos apneia que o homem, magra e jovem a desenvolver apneia e por que o indivíduo gordo, velho e do sexo masculino, ao contrário do esperado, não tem apneia. Passei para o grupo, a proposta avançou, mas, quando começaram a sair os trabalhos, meu nome, que deveria aparecer por último na lista de autores, por ter proposto o experimento, estava no meio, em um lugar de menor importância. Disseram que era a regra, mas na verdade inventaram uma regra. Aí eu saí do grupo, mas no fim eu fiz a maior descoberta sobre apneia.

O que é?
Seguimos um grupo de pessoas no Episono, na cidade de São Paulo, e descobrimos que as pessoas com apneia, todas elas, têm três SNP em um gene específico. Foi difícil publicar, porque os pareceristas que analisaram o artigo científico não acreditavam no resultado, mas conseguimos. Saiu em 2018 na Sleep Medicine. É um trabalho importante porque agora podemos fazer exame genético, ver se a pessoa tem os três SNP e maior probabilidade de desenvolver apneia e começar um tratamento preventivo, com dieta e exercícios. A primeira coisa que a apneia causa são problemas cardiovasculares. Quando eu divulguei essa relação entre apneia e problemas do coração, fui criticado publicamente, mas hoje está mais que provado. Quem ronca e tem apneia tem mais risco de apresentar problema cardiovascular. O que aparece primeiro é a hipertensão e depois a arritmia. Se uma pessoa tiver 60 apneias por hora, a respiração para uma vez por minuto e causa uma sobrecarga para o sistema cardiovascular. Não fomos nós que vimos isso, mas temos vários trabalhos nessa área.

Como esse conhecimento foi usado na prevenção da apneia?
A aplicação foi imediata. Se a pessoa estiver há pouco tempo com apneia, é possível evitar o surgimento da hipertensão com o uso do CPAP [aparelho usado para dormir, que bombeia o ar para evitar a obstrução das vias aéreas; a sigla significa pressão positiva contínua nas vias aéreas]. Quem me ajudou muito foi o fisiologista Eduardo Moacyr Krieger. Fui aluno dele na USP de Ribeirão Preto. Foi com ele que fiz as maiores descobertas sobre hipertensão e apneia. Quando começou a ser usado, lá pelos anos 1980, o CPAP era um aparelho enorme, hoje é uma caixinha que insufla ar, abre as vias e permite respirar normalmente durante o sono. Acaba com a apneia. Tem gente que se adapta na hora ao CPAP, acorda no dia seguinte dando pulos, feliz, porque, dormindo melhor, melhora o desempenho sexual, melhora tudo. Mas outros sofrem, não se adaptam, querem fazer cirurgia, mas cirurgia para apneia não funciona. No Episono, usando o exame de polissonografia, descobrimos que um terço da população da cidade de São Paulo tinha apneia. Um grupo da Universidade Harvard havia publicado um artigo no New England Journal of Medicine em 1994, indicando que a prevalência de apneia na população seria de 2% a 4%. Imagina, completamente errado. Os pesquisadores de Harvard não levaram a população a fazer polissonografia e concluíram com base apenas na avaliação de um grupo de trabalhadores que roncavam. O nosso trabalho todos elogiaram.

Como o Episono progrediu?
Ao planejar o primeiro, vi que a primeira coisa a fazer era uma fotografia dos distúrbios de sono. Iniciamos em 1986 com um número pequeno de participantes e a aplicação de questionários, para verificar quais os problemas mais frequentes, depois acompanhamos de década em década, mais ou menos como o Censo Demográfico. Na terceira edição do estudo, em 2007, trouxemos 1.101 participantes com idades entre 20 e 80 anos para dormir uma noite no Instituto do Sono e fazer polissonografia. Esse grupo era uma amostra representativa da população da cidade de São Paulo. Além da polissonografia, fizemos coleta de sangue, análise de RNA e uma série de exames e avaliações, que incluíram a aplicação de questionários detalhados. Ninguém nunca fez isso. Os motoristas daqui iam buscar o pessoal em casa e pela manhã os levavam de volta. Foi assim que mostrei que 33% da população da cidade de São Paulo tem apneia. A média é 40% nos homens e 26% nas mulheres. O problema aumenta com a idade. Começa com uma frequência de 7% na faixa de 20 a 29 anos. Entre as mulheres, cresce mais tarde, por volta dos 50 anos, depois da menopausa, porque os hormônios femininos as protegem da apneia. No final da vida, a frequência entre elas é igual à dos homens. Depois dos 70 anos, 80% dos homens e das mulheres têm apneia.

33% da população da cidade de São Paulo tem apneia. A média é 40% nos homens e 26% nas mulheres

A apneia é o maior problema de sono?
Os dois maiores são apneia e insônia, insônia muito mais nas mulheres e apneia nos homens. A apneia é pior, porque a pessoa interrompe a respiração e perde o sono, na insônia não, só o sono. Mas as queixas sobre os três tipos de insônia, que é a dificuldade de iniciar o sono, de manter o sono e o despertar precoce, também eram altas, chegavam a 30%. Olha como cresceu nestas três últimas décadas [mostrando gráficos em uma tela grande na parede ao lado de sua mesa], porque aumentou a violência, o estresse, o trânsito.

Os médicos de outras especialidades reagem bem aos estudos sobre os efeitos da privação de sono? Um trabalho de anos atrás de seu grupo mostrou a interferência dos distúrbios de sono no metabolismo. Os endocrinologistas hoje reconhecem o sono como um problema?
Os endocrinologistas e os imunologistas foram mais fáceis de convencer, com os estudos, que não param de sair. Quem mais demorou foram os cardiologistas, mas nos últimos congressos do sono fiz uma sala só para eles, e encheu. E passaram a pedir polissonografia. Em vez de tratar a hipertensão, que é a manifestação clínica, tratam a apneia, que é a causa. O problema é que o sistema privado de planos de saúde paga a polissonografia, mas não o aparelho CPAP, que é o tratamento. A polissonografia é um exame caro. Além dos equipamentos, tem a hotelaria, porque a pessoa passa a noite aqui. Quando o José Serra foi ministro da Saúde [1998 a 2002], conseguimos incluir o tratamento para apneia no SUS [Sistema Único de Saúde]. Fiz até um prédio para atender os pacientes do SUS, aqui do lado, mas depois deixei de usar. Na época, o SUS pagava pouco mais de R$ 100, já era pouco, e não corrigiu nos anos seguintes. Não dá para fazer polissonografia com R$ 100. Aqui tentamos fazer de R$ 500 a R$ 700. O Hospital das Clínicas da USP ainda faz. O SUS também não fornece o CPAP.

Os distúrbios de sono são um problema de saúde pública, não?
Só a apneia atinge 33% da população. São milhões de pessoas. Os outros problemas são mais raros. A narcolepsia [distúrbio marcado por acessos súbitos de sono, mesmo após uma noite bem dormida], por exemplo, afeta menos de 1% das pessoas, mas é grave porque o indivíduo pode estar dirigindo e cair no sono de repente, pode estar conversando e dormir de um momento para o outro. É fácil de tratar, com medicação. O Luiz Roberto Barradas Barata [1953-2010], quando era secretário estadual de Saúde de São Paulo [de 2003 a 2010], estava ajudando a estruturar uma política pública para tratar os distúrbios de sono. Queríamos tratar pelo menos os casos graves de apneia, mas ele morreu de repente, de infarto, e isso não avançou mais.

Como normalmente os médicos aprendem sobre os distúrbios de sono?
A Unifesp criou uma disciplina, Biologia e Medicina do Sono, mas a maioria das escolas médicas trata esses distúrbios dentro da pneumologia ou da neurologia. A neuro domina a polissonografia e a pneumologia a apneia. A Medicina do Sono ainda não está bem estabelecida no currículo médico, mas pelo menos nessas disciplinas se fala de sono no Brasil. Já existe residência médica na área, o próximo passo é virar especialidade, mas demora. Temos de formar gente. Eu formei muita gente, uns 3 mil médicos, que abriram laboratórios de sono no país todo.

Quem foram seus inspiradores?
Em Ribeirão Preto, o neurofisiologista Miguel Covian [1913-1992] e o Krieger. Covian foi meu orientador de mestrado. Aprendi com ele a fazer ciência. Ele era um filósofo, um ser de outro planeta. À noite, a gente se reunia só para falar de filosofia, refletir sobre o Universo. Krieger é mais empreendedor. Carlini, aqui na Unifesp, era superousado. Sempre fomos muito ativos politicamente. Participei da criação do PT e fui vereador. Depois me afastei. Fiz todos os vídeos do PT porque tinha uma produtora de filmes.

Para dormir bem, tem de reduzir o estresse. Não tem de sofrer tanto com os problemas da vida

De onde vem o Tufik?
É o nome do meu avô libanês. Os nomes da família estão todos errados. Meu bisavô se chamava José Kalil Sawaya. Ele deu o nome para o meu avô de Tufik José Kalil, com o nome dele como sobrenome. Aí meu avô colocou o nome dele como sobrenome do meu pai, Brasil Tufik. Todos os libaneses fazem isso no Brasil, não sei por quê. Continuamos com o Tufik, que na verdade não é sobrenome, é nome.

O gene empreendedor deve vir da família.
Vem dos libaneses. Meu pai era um empreendedor. Começou com uma loja, depois abriu um bar e trabalhou com construção. Não era engenheiro, mas ele próprio fazia as plantas. Quando me formei em medicina, ele queria abrir um hospital para mim. Eu falei que queria fazer ciência e ele ficou muito bravo. Disse que eu seria um barnabé, como naquela época se chamava o funcionário público que não trabalhava, mas depois viu que eu comecei a fazer outras coisas.

Certa vez, o senhor disse que criou a Afip porque não queria ser um cientista mendigo.
No passado, os pesquisadores da Unifesp tinham problemas de financiamento. Na FAPESP diziam: “Você é federal, procure o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] ou a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior]”. Quando chegava na Capes e no CNPq, diziam o contrário: “Mas você é de São Paulo, vai para a FAPESP”. Por isso, em 1976, eu tinha 28 anos, era ainda aluno de doutorado quando vi esse problema e pensei: “Vou abrir uma organização sem fins lucrativos para trazer dinheiro para pesquisa”. Começamos a fazer polissonografia particular. A primeira coisa que fiz foi dar um complemento para os técnicos de laboratório, para que ficassem depois das 17h e não perdêssemos os experimentos. Montávamos um laboratório para fazer pesquisa e depois desmontávamos. Pensei: “Vou parar com isso, não aguento mais monta e desmonta. Vou deixar funcionando, pegar um pouco de serviço e quando entrar uma pesquisa a gente faz”. Criei a Afip, uma fundação privada, ligada à Unifesp. Hoje a Afip tem 50 laboratórios e faz 6 milhões de exames por mês, a maioria para o SUS. Fazemos de 1 milhão a 2 milhões de testes por mês para a prefeitura de São Paulo e de 2 milhões a 3 milhões para o estado. Tenho 3.600 funcionários. O que era para dar só uma ajuda foi crescendo e agora está em nove estados. Com o dinheiro que entra, pago funcionários para trabalhar no Departamento de Psicobiologia da Unifesp, dou espaço e insumos. O Instituto do Sono e este prédio são da Afip.

Mesmo com esses problemas de financiamento da Unifesp, o senhor teve aprovado e coordenou o Centro de Estudos do Sono por 10 anos, apoiado pela FAPESP.
Sim, e foi muito produtivo. Não sei por que não renovaram por mais 10 anos, fiquei chateadíssimo, porque estava tudo dando certo. Foi pelo centro que Marco Túlio de Mello descobriu que 48% dos motoristas profissionais, de uma amostra de 400, estavam cansados e com sono na hora de dirigir novamente, o que aumentava o risco de acidentes. Com base nesses dados, conseguimos mudar a legislação de trânsito, que agora inclui uma avaliação dos distúrbios de sono entre os critérios para obter a Carteira Nacional de Habilitação como motorista profissional. Depois de avaliar quase 8 mil pessoas, vimos também que os trabalhadores noturnos ou por turno ganhavam de 5 a 6 quilos (kg) de peso no primeiro ano e depois de 0,8 a 1,2 kg por ano. Eles comem mais comida calórica por estarem acordados, quando deveriam ingerir apenas alimentos mais leves, além de fazer exercícios.

Uma pergunta bem prática: como fazer para dormir melhor?
Você tem de entender seu organismo. Se está com sobrepeso, tem de emagrecer. Se não faz exercício, tem de fazer. Aquelas coisas que ninguém gosta de ouvir quando vai ao médico. Tem também de diminuir a luz à noite para a melatonina começar a subir e você dormir. Principalmente, tem de reduzir o estresse. Não tem que sofrer tanto com os problemas da vida. Se ficar nervoso, vai se desgastar ou agredir outras pessoas, e aí os problemas só aumentam. Tem de focar no problema e resolver, se for possível. Se não for, o melhor é esquecer. Do contrário, o sono vai embora mesmo.

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