alexandre camanhoDesde os oito anos acompanhava seu pai, e com doze João ganhou seu primeiro serrote.
“É teu, mas cuida, corta, e feio.”
E assim passou de um mero observador a assistente. Ele subia primeiro, amarrava uma corda num galho resistente, fazia o nó que seu pai lhe ensinara.
“Nem um navio a todo vapor acaba com esse nó.”
E a corda entrava por um furo e saía por outro no colete de couro de vaca, que sua mãe fizera, e por fim era amarrada na outra extremidade da corda, por outro poderoso nó. Caso se descuidasse, ficaria suspenso, e não desabaria como uma maçã podre. Com o serrote desbastava os galhos mais finos, se embrenhava na árvore e, como era leve e pequeno, conseguia chegar nos pontos mais altos das árvores, limpava a área para subida de seu pai. E não tinha medo, subia rapidamente, não sabia muito bem o que era a dor, o que era a morte. Ele apenas não gostava de subir em eucaliptos, pois quase não havia copa, e o chão estava sempre à vista: os galhos também eram distantes uns dos outros, e os eucaliptos mediam dezenas de metros de altura. E agora cada vez mais se plantavam eucaliptos, para fins industriais e também nas grandes residências: os ricos gostavam da opulência da árvore, naquele tempo.
O pai viera da região oeste do Paraná, do distrito de Cascavel, hoje município homônimo. Trabalhara durante muitos anos na extração de madeira nativa, para empresas madeireiras regionais, até que uma dessas empresas resolveu abrir uma filial no nordeste de Santa Catarina. Seus pertences couberam numa saca de feijão de cinquenta quilos: algumas roupas e uma bíblia. Nunca mais viu seus pais ou algum dos seus treze irmãos, e era assim naquela época, quando alguém partia, realmente partia. Morou nos fundos da madeireira, com outros peões, durante alguns anos, até que conheceu Salete, a filha da faxineira do escritório da madeireira.
Em pouco tempo se casaram, e ao lado da casa do seu sogro ele ergueu sua casa, toda em madeira, com ajuda dos cunhados e do sogro. A madeira era retirada da mata e trazida para o terreno com a carroça do Gerçon, o carroceiro do bairro. Com a casa pronta, saiu da madeireira e passou a trabalhar sozinho, primeiro extraindo madeira da mata e vendendo às famílias do bairro e depois como aparador e cortador de árvores, o que se mostrou mais lucrativo, pois a extração da madeira era perigosa e demorada, numa época em que motosserras pesavam sessenta quilos e custavam uma verdadeira fortuna. E com ele era na serra, no serrote e no braço.
“Quando se tem braço, pra que motor?”
Chegaram os filhos: um, dois, três, quatro. Dois meninos e duas meninas. Ao primogênito, João, nome de apóstolo, decidiu passar sua paixão pelo corte da madeira. E escondia o orgulho ao ver seu filho, ágil como um sagui, de galho em galho, serrando e serrando. E ensinara João a sentir o cheiro e a textura de cada árvore, a imaginar o peso do galho pela extensão e pelo tipo da madeira, e, principalmente, saber o tanto de trabalho que cada tipo de árvore dava ao ser cortada ou desbastada ou transportada. Cortar é a parte mais fácil, difícil é prever para que lado o galho vai pender, qual o estrago que vai causar e onde vai cair. Em Cascavel já havia visto inúmeros acidentes: pernas e braços arrancados e todo o tipo de esmagamento. Membros pendurados, tripas à mostra, e certa vez um galho de pinheiro-brasileiro atravessou o Augusto, seu companheiro de trabalhos. E não importa a espécie, pau-brasil, jacarandá, peroba, garupuvu, jequitibá-rosa, cedro, eucalipto, o barulho é o mesmo ao cair, um ruído assustador. Havia um prazer secreto no corte de árvores, uma sensação de poder, a força do braço subjugando a natureza, e, quando o galho ia ao chão, uma sensação de vitória.
Ele ensinara seu ofício a João, e também a sobreviver na mata, a reconhecer os pássaros pelo cantar, e conhecer os costumes das cobras, principalmente das jararacas, que também subiam em árvores. Não havia como evitar as cobras, era preciso vê-las, afugentá-las, ou em casos mais extremos matá-las. E treinou seu filho para perceber as cobras no meio das árvores, na vegetação fechada, onde fosse preciso. Mas João quis a cidade.
Aos dezoito anos comunicou seu pai que não queria mais cortar árvores, seus amigos iam, todos, trabalhar na Tigre, que até 1941 fabricava pentes de boi, mas desde 1950 começara a fabricar tubos e conexões de PVC. Iria ganhar o mesmo que ganhava com seu pai, mas o serviço era mais leve.
“Só digo uma coisa, na hora de cortar, você nunca sabe para que lado vai cair o galho.” Este ditado era usado para tudo por seu pai, um homem de uma frase. E foi o que disse quando João lhe comunicara que iria trabalhar na cidade, e também quando Matheus destruiu a vida de todos, serrando.
Cada árvore tinha sua textura, seu peso, seu cheiro específico: não existe “madeira”, dizia seu pai, mas sim jequitibá-rosa, mangueira, peroba et cetera… Não devíamos generalizar, nunca, era como chamar todos de “gente”.
Embora parecesse aceitar bem, nunca digeriu muito bem a traição do primogênito, que trocou a arte de lidar com a madeira pela manipulação de produtos plásticos. Não entendia como João trocara a liberdade de trabalhar em horários alternativos, em meio à natureza, com algo que era realmente vivo, pulsante, como a madeira, para ficar trancafiado num depósito, cheirando plástico oito horas por dia. E este ressentimento passou a pontuar a relação dos dois e, como ambos eram de poucas palavras, o contato passou a ser cada vez mais estreito. Logo João saiu de casa, alugou um quarto numa pequena pensão próxima da empresa e, como era dedicado, começou a prosperar, e logo ficou encarregado do setor de expedição, ganhando o dobro do que ganhava com seu pai. Conheceu Márcia, que seria sua esposa.
E o pai direcionou sua atenção para Matheus, seu filho caçula, o preferido da mãe e das irmãs do meio. Ensinou a plantar e matar árvores, um pouco de marcenaria. Mas Matheus não era paciente como João, e mais uma vez ele viu um de seus abandoná-lo. O filho mais novo não queria saber de madeira, para ele estava claro que a alvenaria era o futuro, e tornou-se servente do Gumercindo, um dos bons pedreiros do bairro. Queria aprender, queria logo ser um pedreiro, tão bom quanto o viúvo Gumercindo, e por isso foi morar com o velho ranzinza, grosso e turrão, para aprender. Então o pai deu serrotes para as meninas, e as ensinou a serrar madeiras menos resistentes, pois na casa dele todos tinham serrotes, até Salete.
“Quem tem um serrote, tem tudo, pode construir uma casa, se perder na mata que vai achar comida, pode se defender.”
Quando casou e mudou para uma pequena casa, João colocou seu último serrote numa moldura, e pendurou na parede de sua sala, para que soubessem que a sua família era de homens de serra.
“Quero que meu futuro filho herde este serrote, e isto só vai sair da parede quando eu morrer.” Mas o serrote sairia da parede uma semana depois.
O pai de João soube pelo rádio, à noite, e chorou como criança, como nunca chorara. E repetia o quinto e o sexto mandamento, ininterruptamente.
“5 – Honra a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá.”
“6 – Não matarás.”
O motivo da discussão teria sido a perda de um prumo. Gumercindo e Matheus trocaram socos, e sabe-se apenas que o resultado final de tudo foi o corpo do primeiro, serrado em 11 partes, e jogado numa vala que Matheus tentara cavar no quintal da casa de Gumercindo. Matheus sumira, e nunca mais ninguém ouvira falar dele. O pai proibira a pronúncia do nome dele em casa, e a mãe rezava todas as noites, bem baixinho, um murmúrio, para que deus perdoasse seu filho, que era um bom menino, embora tivesse cometido um erro. O pai recolheu todos os serrotes da casa, pediu o de João também, fez um grande buraco e enterrou todos.
“Lugar de serra é na terra, a partir de agora.”
Carlos Henrique Schroeder é contista e romancista. Autor de Ensaio do vazio (2006, e adaptado para os quadrinhos em 2012) e As certezas e as palavras (2010, Prêmio Clarice Lispector da Biblioteca Nacional), dentre outros.
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