A sexualização do crime no Brasil: Um estudo sobre criminalidade feminina no contexto de relações amorosas (1890-1940), pesquisa de doutorado de Alessandra de Andrade Rinaldi, apresenta uma minuciosa análise de processos criminais de mulheres autoras de crimes contra seus companheiros ou suas “rivais” em disputas amorosas no período do primeiro Código Penal. Rinaldi mostra um processo de “sexualização dos crimes” na Justiça que está apoiado na naturalização dos comportamentos pautados em diferenças sexuais, ou seja, os crimes são julgados com base em padrões sociais do que são entendidos como comportamentos femininos e masculinos. Com base em um extenso material de pesquisa coletado, a autora faz dialogar dois campos do saber, o histórico e o antropológico, delimitando um período de análise entre 1890 e 1940 e realizando uma análise antropológica dos processos criminais. O interesse foi perceber como os operadores do direito e os litigantes produzem e reproduzem representações sociais sobre relações de gênero, conjugalidade, relações amorosas e criminalidade.
Rinaldi se inspira no trabalho que foi um marco nesse campo de estudos, o de Maria Filomena Gregori com o livro Cenas e queixas: Um estudo sobre mulheres, relações violentas e prática feminista, de 1993, propondo uma análise que não tem a priori a mulher como vítima da violência no contexto de relações amorosas ou conjugais, mas sim como autora e produtora de violência. Rinaldi, assim como Gregori, mostra uma mulher que é o oposto da fragilidade e da passividade, uma mulher ativa, agindo conforme seus desejos. O trabalho não procurou entender por que as mulheres cometeram tais atos, investigou de que forma suas ações violentas foram percebidas e interpretadas pelos profissionais do campo jurídico.
O livro está dividido em duas partes. A primeira trata dos “crimes passionais”. A autora realiza um debate sobre o crime em geral no campo jurídico e médico-legal fazendo uma releitura brasileira da discussão sobre o próprio estatuto do crime, que no século XIX era entendido como resultado de um “psiquismo perturbado” e depois passa a ser visto como fruto de uma “natureza individual”, atributo da pessoa. Esse debate, no Brasil, incorporava as proposições da Escola Positiva do Direito, predominando o discurso biologizante e naturalizador sobre os comportamentos transgressivos, entendidos como um atributo natural da mulher. Pouco peso se dava ao meio social em que ela vivia. Havia um discurso marcado pela patologização do comportamento feminino.
Na segunda parte do livro, a análise está centrada nos processos criminais, mais especificamente nas diferentes versões dos depoimentos, buscando destacar a argumentação mobilizada tanto nas visões dos representantes do Poder Judiciário quanto dos litigantes desde o inquérito até o processo no Judiciário.
Ao longo do livro vai se delineando um argumento de que apesar de essa mulher agir ativamente, ela própria se representa como passiva nos processos, corroborando para uma posição social e uma representação de gênero legitimada na sociedade patriarcal. A sua representação como frágil e passiva também serve como estratégia de defesa na Justiça. Seu ato criminoso, assim, é visto pelos representantes da Justiça como patologia, pois há um desvio daquilo que seria sua natureza feminina.
Os processos analisados mostram que havia uma tendência em não considerar os atos violentos femininos como crimes, sobretudo quando envolvem duas mulheres em situação de disputa amorosa. Esse argumento é fundamental para explicar a absolvição tanto da mulher como autora do crime quanto do homem autor de violência nesse mesmo contexto. Mais importante do que punir os delitos, Rinaldi mostra que para o sistema de Justiça importa manter os vínculos conjugais, ou seja, o universo jurídico tende a não penalizar os crimes que eram cometidos no contexto de relações amorosas. O que demonstra condescendência com as mulheres autoras e legitima a violência doméstica, mostrando a importância e o peso que a instituição família ocupa na nossa sociedade, até mesmo nos dias atuais, que deve ser preservada acima de tudo! Este é um livro que, sem dúvida, servirá para promover o debate em várias áreas, tais como história, antropologia e direito, mais especificamente, no campo dos estudos de gênero.
Marcella Beraldo de Oliveira é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora de Antropologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
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