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Astrofísica

Simulação sugere que Mercúrio se formou a partir de colisão de raspão com corpo de massa similar

Choque teria arrancado parte da massa do planeta e moldado sua atual constituição geológica

Mosaico de imagens do planeta Mercúrio: possível trombada no início do Sistema Solar

Nasa / Laboratório de Física Aplicada da Universidade Johns Hopkins / Instituição Carnegie de Washington

Um dos desafios dos modelos que tentam desvendar o processo de formação de Mercúrio, o menor planeta do Sistema Solar, é encontrar um cenário plausível capaz de explicar uma singularidade de sua geologia. O núcleo de Mercúrio, a camada mais interna de sua estrutura, é muito maior, em termos proporcionais, do que o da Terra, de Vênus e de Marte, os outros três planetas rochosos do Sistema. Devido a essa particularidade, a extensão de seu manto, a camada intermediária entre o núcleo e a crosta superficial, é muito pequena se comparada, sempre de forma relativa, à dos planetas rochosos. Tal característica faz com que os astrofísicos especulem que Mercúrio sofreu algum tipo de grande abalo que alterou sua estrutura geológica.

Um estudo coordenado por brasileiros propõe uma variante desse modelo para explicar a gênese de Mercúrio e de seu núcleo avantajado, que abrange mais de 80% da extensão de seu raio. Segundo o artigo, disponibilizado na forma de preprint no repositório arXiv e aceito para publicação em uma revista científica, a constituição do planeta foi alterada nos primórdios do Sistema Solar em razão de um grande choque, ainda que de raspão, que lhe arrancou um pedaço. “Nossas simulações computacionais indicam que a estrutura geológica atual de Mercúrio pode ter sido o produto de uma colisão do tipo hit and run”, comenta o astrofísico brasileiro Patrick Franco, que faz estágio de pós-doutorado no Instituto de Física do Globo, em Paris, na França, autor principal do trabalho.

Entrevista: Patrick Franco
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Como um motorista imprudente que passa por cima de uma pessoa na rua e se evade da cena do crime, um acidente espacial no estilo hit and run envolve um objeto celeste que atropela outro e pode acarretar danos em ambas as partes. Nessa hipotética trombada celeste, o motorista imprudente teria sido Mercúrio, segundo o trabalho.

“Não é novidade atribuir a estrutura geológica desse planeta a um cenário do tipo hit and run. Outros trabalhos já fizeram isso”, explica o astrofísico Fernando Roig, do Observatório Nacional (ON), do Rio de Janeiro, que também assina o paper e foi orientador da tese de doutorado de Franco sobre a formação de Mercúrio, defendida em 2023 na mesma instituição. “Esses estudos anteriores diziam que Mercúrio deveria ter se chocado com um objeto maior. Mas nossas simulações indicam que colisões entre corpos de tamanho muito diferentes são raras. Os resultados sugerem que o mais provável é ter havido um choque entre o planeta e um objeto de tamanho similar.” Pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Guaratinguetá, e de instituições da França e da Alemanha também estão entre os coautores do trabalho.

Não é qualquer trombada celeste que teria o potencial de gerar um objeto com as principais características de Mercúrio. O planeta mais interno do Sistema Solar parece ter se originado em condições muito especiais que o levaram a apresentar peculiaridades. A começar por seu tamanho. Ele é pequeno e denso. Seu diâmetro representa 38% da Terra e a massa equivale a apenas 5,5% do nosso planeta.

Imagem colorizada do polo norte de Mercúrio durante momento de grande variação de temperatura, que chega a ultrapassar os 200 ºC nas áreas em vermelho e a atingir apenas 10 ºC os trechos azuladosNasa / Laboratório de Física Aplicada da Universidade Johns Hopkins / Instituição Carnegie de Washington

Além das dimensões e da densidade, as simulações teriam de tentar reproduzir a estrutura interna de Mercúrio, formado por 70% de ferro, sobretudo no núcleo, e apenas 30% de silicatos – um composto derivado do silício, amplamente presente na natureza em diferentes formas, como rochas, argilas e minerais. “Encontramos um cenário nas nossas simulações em que, depois de ter colidido de raspão com um corpo similar, um protoplaneta rochoso apresenta composição geológica e massa similares às de Mercúrio, dentro de uma margem de variação de 5%”, explica Othon Winter, da Unesp, colaborador do estudo.

Nas simulações, os melhores resultados foram obtidos quando a batida entre o corpo celeste e o proto-Mercúrio não ocorreu de frente, mas em um ângulo de 32 graus e a uma velocidade de impacto relativamente baixa, de 22 quilômetros por segundo. A massa estimada para o então nascente Mercúrio foi um pouco superior ao dobro da atual e a do outro corpo foi ainda ligeiramente maior. O planeta foi simulado com uma composição inicial de 70% de silicatos e 30% de ferro, mais ou menos o inverso do que atualmente. Todo esse cenário foi criado em um modelo computacional que roda no que seriam condições semelhantes aos primórdios do Sistema Solar, há cerca de 4,5 bilhões de anos.

“Fizemos três rodadas de simulações de colisões alterando esses parâmetros críticos, a massa dos dois corpos e a velocidade relativa entre eles e o ângulo da batida”, conta Franco. “Apesar de não descartarmos a possibilidade de Mercúrio ter sofrido mais de uma colisão, conseguimos explicar sua constituição geológica com apenas uma.” O choque angulado teria sido forte e feito Mercúrio perder uma parte significativa do manto, onde se encontram basicamente os silicatos, alterando pouco ou quase nada seu núcleo ferroso.

Cerca de 48 horas após as simulações de colisão, Mercúrio já assumiria uma configuração relativamente estável e similar à atual, com um núcleo agigantado e um manto reduzido. Para efeito de comparação, a Terra, depois de Mercúrio, é o planeta terrestre com o maior núcleo em relação ao seu raio. Ele abrange 55% do diâmetro de nosso planeta e é, proporcionalmente, um terço menor do que o de Mercúrio.

Estudos sobre a origem de Mercúrio só podem ser realizados porque hoje, apesar de ainda existirem lacunas de conhecimento, os astrofísicos têm uma boa noção de como ocorre o processo de formação de planetas rochosos. Por estarem mais perto do Sol, eles se originam a partir da junção gradual de poeira e gás liberados pelo disco da matéria que gerou a estrela. Rica em carbono e ferro, a poeira se agrega e forma, inicialmente, pequenas pedras. Com o passar do tempo, devido a interações gravitacionais e outras forças, as pedras colidem umas com as outras.

Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

Algumas rochas são destruídas. Outras continuam crescendo, agregando poeira e gás. As que permanecem se expandindo podem dar origem a corpos maiores, com quilômetros de extensão, os chamados planetesimais. Esses são os embriões dos futuros planetas rochosos, que serão formados pela adição de ainda mais matéria ao seu corpo. “A acreção de matéria é uma etapa essencial da formação dos planetas”, comenta Roig. A gênese dos chamados planetas gigantes gasosos (Júpiter, Saturno, Urano e Netuno), situados em regiões mais frias e distantes da estrela, se dá por um processo similar. Mas, nesse caso, o mecanismo envolve mais gás e partículas de gelo do que matéria sólida.

O processo de formação de um planeta não é linear. Há idas e vindas e nem todo planetesimal torna-se necessariamente um planeta. Perturbações gravitacionais e eventos com grande força destrutiva, sobretudo colisões com outros corpos, podem dar um fim precoce à história do que um dia poderia vir a ser uma Terra ou Marte. No caso de Mercúrio, segundo a hipótese mais aceita pela comunidade de astrofísicos, sua existência em si não foi abreviada por um grande choque, mas seu tamanho e constituição geológica foram modificados.

Para o astrofísico Matt Clement, do Laboratório de Física Aplicada da Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos, o artigo coordenado pelos brasileiros dá uma importante contribuição para o entendimento do processo de gênese dos planetas terrestres, em especial de Mercúrio, que considera o mais incomum deles. “O trabalho demonstra que a formação de Mercúrio por um ou mais impactos do tipo hit and run entre corpos de massa mais ou menos igual é um cenário mais plausível do que se pensava anteriormente”, diz Clement, que estuda a formação de Mercúrio e outros planetas, em entrevista por e-mail a Pesquisa FAPESP.

O pesquisador norte-americano, no entanto, comenta que o trabalho não aborda algumas questões ainda em aberto. Se uma parte de um nascente Mercúrio se rompeu e foi removida durante uma grande colisão, esse pedaço partido do planeta foi para algum lugar. As opções são limitadas para o destino final dessa fatia de Mercúrio, segundo ele: ela pode ter sido direcionada para o vizinho Sol; ter se incorporado a um dos outros planetas; ter sido ejetada completamente do Sistema Solar, onde encontraria uma órbita estável; ou ainda ter retornado ao próprio Mercúrio. “Na maioria dos casos, o resultado mais provável é a matéria ejetada voltar para Mercúrio”, comenta Clement.

Os próprios autores do artigo deixam claro que alguns pontos relacionados à origem e à constituição de Mercúrio não foram explorados nas simulações. Um deles, por exemplo, diz respeito à quase ausência de uma atmosfera no planeta, característica incomum nos planetas rochosos. A falta de uma camada significativa de gases em seu entorno, no entanto, não impediu a detecção de compostos voláteis em sua superfície, como água, sódio e dióxido de carbono.

É possível que a hipotética colisão com um corpo similar tenha arrancado também quase toda a atmosfera do planeta. Se isso ocorreu, os compostos voláteis podem ter retornado a Mercúrio de carona com outros objetos que caíram ou se chocaram depois com o planeta, ou mesmo com novas levas de matéria adicionada à sua estrutura ao longo de sua história evolutiva, argumentam os astrofísicos brasileiros.

Mercúrio é um planeta esquisito. Apesar de ser o mais próximo do Sol, não é o mais quente (essa característica é de seu vizinho Vênus). Mas é o que apresenta a maior variação térmica. Pode chegar a 430 graus Celsius (ºC) de dia e, como praticamente não tem atmosfera para reter o calor, a -180 ºC à noite. Em suas regiões polares, há água congelada, às vezes em buracos que permanecem constantemente em zonas de sombra. Como a Lua, é rico em crateras e falhas geológicas, das quais escapam vapores e outros compostos. Um mundo que talvez fosse muito diferente hoje se não tivesse tido um esbarrão com um objeto similar bilhões de anos atrás, como sugere o novo artigo.

A reportagem acima foi publicada com o título “Choque primordial” na edição impressa nº 352 de junho de 2025.

Artigo científico
FRANCO, P. et al. Forming Mercury by a grazing giant collision involving similar mass bodies. arXiv (preprint). 4 mar. 2025

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