Um dos desafios dos modelos que tentam desvendar o processo de formação de Mercúrio, o menor planeta do Sistema Solar, é encontrar um cenário plausível capaz de explicar uma singularidade de sua geologia. O núcleo de Mercúrio, a camada mais interna de sua estrutura, é muito maior, em termos proporcionais, do que o da Terra, de Vênus e de Marte, os outros três planetas rochosos do Sistema. Devido a essa particularidade, a extensão de seu manto, a camada intermediária entre o núcleo e a crosta superficial, é muito pequena se comparada, sempre de forma relativa, à dos planetas rochosos. Tal característica faz com que os astrofísicos especulem que Mercúrio sofreu algum tipo de grande abalo que alterou sua estrutura geológica.
Um estudo coordenado por brasileiros propõe uma variante desse modelo para explicar a gênese de Mercúrio e de seu núcleo avantajado, que abrange mais de 80% da extensão de seu raio. Segundo o artigo, disponibilizado na forma de preprint no repositório arXiv e aceito para publicação em uma revista científica, a constituição do planeta foi alterada nos primórdios do Sistema Solar em razão de um grande choque, ainda que de raspão, que lhe arrancou um pedaço. “Nossas simulações computacionais indicam que a estrutura geológica atual de Mercúrio pode ter sido o produto de uma colisão do tipo hit and run”, comenta o astrofísico brasileiro Patrick Franco, que faz estágio de pós-doutorado no Instituto de Física do Globo, em Paris, na França, autor principal do trabalho.
Como um motorista imprudente que passa por cima de uma pessoa na rua e se evade da cena do crime, um acidente espacial no estilo hit and run envolve um objeto celeste que atropela outro e pode acarretar danos em ambas as partes. Nessa hipotética trombada celeste, o motorista imprudente teria sido Mercúrio, segundo o trabalho.
“Não é novidade atribuir a estrutura geológica desse planeta a um cenário do tipo hit and run. Outros trabalhos já fizeram isso”, explica o astrofísico Fernando Roig, do Observatório Nacional (ON), do Rio de Janeiro, que também assina o paper e foi orientador da tese de doutorado de Franco sobre a formação de Mercúrio, defendida em 2023 na mesma instituição. “Esses estudos anteriores diziam que Mercúrio deveria ter se chocado com um objeto maior. Mas nossas simulações indicam que colisões entre corpos de tamanho muito diferentes são raras. Os resultados sugerem que o mais provável é ter havido um choque entre o planeta e um objeto de tamanho similar.” Pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Guaratinguetá, e de instituições da França e da Alemanha também estão entre os coautores do trabalho.
Não é qualquer trombada celeste que teria o potencial de gerar um objeto com as principais características de Mercúrio. O planeta mais interno do Sistema Solar parece ter se originado em condições muito especiais que o levaram a apresentar peculiaridades. A começar por seu tamanho. Ele é pequeno e denso. Seu diâmetro representa 38% da Terra e a massa equivale a apenas 5,5% do nosso planeta.

Imagem colorizada do polo norte de Mercúrio durante momento de grande variação de temperatura, que chega a ultrapassar os 200 ºC nas áreas em vermelho e a atingir apenas 10 ºC os trechos azuladosNasa / Laboratório de Física Aplicada da Universidade Johns Hopkins / Instituição Carnegie de Washington
Além das dimensões e da densidade, as simulações teriam de tentar reproduzir a estrutura interna de Mercúrio, formado por 70% de ferro, sobretudo no núcleo, e apenas 30% de silicatos – um composto derivado do silício, amplamente presente na natureza em diferentes formas, como rochas, argilas e minerais. “Encontramos um cenário nas nossas simulações em que, depois de ter colidido de raspão com um corpo similar, um protoplaneta rochoso apresenta composição geológica e massa similares às de Mercúrio, dentro de uma margem de variação de 5%”, explica Othon Winter, da Unesp, colaborador do estudo.
Nas simulações, os melhores resultados foram obtidos quando a batida entre o corpo celeste e o proto-Mercúrio não ocorreu de frente, mas em um ângulo de 32 graus e a uma velocidade de impacto relativamente baixa, de 22 quilômetros por segundo. A massa estimada para o então nascente Mercúrio foi um pouco superior ao dobro da atual e a do outro corpo foi ainda ligeiramente maior. O planeta foi simulado com uma composição inicial de 70% de silicatos e 30% de ferro, mais ou menos o inverso do que atualmente. Todo esse cenário foi criado em um modelo computacional que roda no que seriam condições semelhantes aos primórdios do Sistema Solar, há cerca de 4,5 bilhões de anos.
“Fizemos três rodadas de simulações de colisões alterando esses parâmetros críticos, a massa dos dois corpos e a velocidade relativa entre eles e o ângulo da batida”, conta Franco. “Apesar de não descartarmos a possibilidade de Mercúrio ter sofrido mais de uma colisão, conseguimos explicar sua constituição geológica com apenas uma.” O choque angulado teria sido forte e feito Mercúrio perder uma parte significativa do manto, onde se encontram basicamente os silicatos, alterando pouco ou quase nada seu núcleo ferroso.
Cerca de 48 horas após as simulações de colisão, Mercúrio já assumiria uma configuração relativamente estável e similar à atual, com um núcleo agigantado e um manto reduzido. Para efeito de comparação, a Terra, depois de Mercúrio, é o planeta terrestre com o maior núcleo em relação ao seu raio. Ele abrange 55% do diâmetro de nosso planeta e é, proporcionalmente, um terço menor do que o de Mercúrio.
Estudos sobre a origem de Mercúrio só podem ser realizados porque hoje, apesar de ainda existirem lacunas de conhecimento, os astrofísicos têm uma boa noção de como ocorre o processo de formação de planetas rochosos. Por estarem mais perto do Sol, eles se originam a partir da junção gradual de poeira e gás liberados pelo disco da matéria que gerou a estrela. Rica em carbono e ferro, a poeira se agrega e forma, inicialmente, pequenas pedras. Com o passar do tempo, devido a interações gravitacionais e outras forças, as pedras colidem umas com as outras.