de Ilhéus
João Tavares é um dos ícones da tradição e, ao mesmo tempo, da renovação da cacauicultura. Os 904 hectares de suas três fazendas começaram a ser comprados por seu avô, imigrante português que começara a vida em Ilhéus com uma venda. Produziam 67 mil arrobas por ano antes da crise e este ano não devem passar dos 16 mil. Enquanto outros fazendeiros diversificam a produção criando gado de leite para aplacar o impacto das eventuais quedas de preço do cacau, Tavares começou há três anos a produzir cacau fino, que pode ser vendido por até o dobro do preço que o comum. Seu plano é começar a vender em meados do próximo ano seus próprios chocolates feitos com cacau fino. Os lotes experimentais que produz nos laboratórios da Ceplac contêm 56% de massa de cacau, o dobro que nos chocolates vendidos hoje no Brasil.
Visto como uma saída para os produtores, por permitir a venda direta aos fabricantes de chocolates com preço até duas vezes maior, o cacau fino cresce como o cacau comum, mas é colhido e tratado com mais cuidado. Só as amêndoas perfeitas seguem para os cochos de fermentação, que refina o sabor e reduz o amargor e a acidez. Depois de secas as amêndoas de cacau fino são marrons por dentro e, não só na cor mas também no gosto, já parecem chocolate. Já as amêndoas do cacau comum são lilases por dentro. O gosto ácido, estranho, horrível. Nas indústrias o cacau comum se transforma em chocolate porque a aeração, o açúcar e leite disfarçam os gostos liberados pela fermentação das sementes infectadas por microrganismos.
Para os produtores de cacau e de chocolate, habitualmente ligados às grandes indústrias, faltavam máquinas adequadas para tratar com delicadeza – e em volumes menores – as amêndoas ou a massa de cacau fino. Até que o engenheiro de produção Adriano Sartori Pedroso, insatisfeito com o que viu ao montar sua própria empresa, a Chocolataria Dunluce, em São Roque, município da Grande São Paulo, resolveu projetar e construir os equipamentos para chocolate fino por meio de uma empresa-irmã, a JAF, de Tambaú, interior paulista. Com o rigor de quem havia trabalhado na certificação dos aviões da Embraer, Adriano Pedroso fez primeiramente para uso próprio os equipamentos da etapa final de produção, para derreter e temperar até 50 kg de chocolate por hora, mas logo as encomendas começaram a chegar. Ele espera concluir este mês os primeiros equipamentos, para mistura e refino, e até o final do ano pretende terminar os que faltam, dando conta da torração, da remoção da casca e da prensagem das amêndoas.
“Como os aviões”, diz Pedroso, “as máquinas de fabricação de chocolates com cacau fino também precisam de bons pilotos”. Foi por meio de muitos cursos e de muita pesquisa que a engenheira de alimentos Arali Cunha de Aguiar, com quem trabalha, aprendeu não só a lidar com as máquinas como também a preparar receitas que decretam o fim da padronização e instauram o direito à criatividade na elaboração de chocolates. O processo de produção também precisa de ajustes finos. Uma equipe do Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital), de Campinas, já mostrou que o resfriamento a 2 graus Celsius por minuto em uma das etapas da fabricação do chocolate, a temperagem, é a mais adequada para obter o melhor brilho, consistência e sabor dos chocolates. Mas ainda há muitas outras variáveis a serem estudadas, porque deixar o chocolate aerando por quatro ou por 96 horas pode levar a trufas completamente diferentes. “Os institutos de pesquisa são vitais nessa etapa de disseminação de conhecimento entre os produtores e fabricantes de chocolate”, ressalta Pedroso. “Temos de ser humildes porque o caminho até chegarmos a chocolate de altíssima qualidade feitos a partir cacau fino inteiramente nacional ainda é longo”.
Foi essa desarticulação entre os participantes da cadeia produtiva, os métodos arcaicos de trabalho e as brechas por serem preenchidas que levaram Gonçalo Pereira a concluir que a vassoura-de-bruxa era o mais simples dos problemas do mundo do cacau. Ele nasceu e cresceu em Salvador e depois estudou agronomia em Cruz das Almas, interior da Bahia, sem nunca ter se conformado com o abismo entre os coronéis e os operários do cacau. Em dezembro de 2001, disposto a provar que as plantações poderiam se recuperar se gerenciadas de outro modo, ele e dois sócios compraram uma fazenda de Ilhéus – imensa mas abandonada, pela qual pagaram quase 40 vezes menos do que valia dez anos antes.
“O que encontramos em janeiro de 2002 era deprimente”, conta Ricardo Abude, administrador da fazenda. “Gente tratada como bicho, passando fome e vivendo em casas sem banheiro, esgoto, cozinha, água e energia elétrica”. Os camponeses recebiam metade do dinheiro da venda do cacau colhido, já descontadas os gastos com o cultivo – o proprietário das terras ficava com a outra metade. Para colher mais, as crianças tinham de ajudar. “Me senti de novo na África”, conta Abude, engenheiro que havia ajudado a instalar equipamentos de telecomunicações na Nigéria. Hoje as casas da Fazenda Porto Novo têm água, luz e esgoto, as crianças estudam e cada uma das 32 famílias cultiva um ou dois hectares com banana ou mandioca cuja venda lhes permite até dobrar o salário. Começaram a criar gado de leite, quintuplicaram a produção de cacau e no ano passado produziram cacau fino pela primeira vez. “É trabalhoso”, reconhece Derivaldo Evangelista de Jesus, que nasceu há 35 anos na fazenda que agora gerencia. “Pensei que a gente não ia conseguir.”
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