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Saúde pública

Solidariedade na ciência

Pesquisadores criam estratégias para ajudar uns aos outros a enfrentar a epidemia do novo coronavírus

Tubos com o vírus Sars-CoV-2 inativado em laboratório na USP

Léo Ramos Chaves

Dia 20 de março, pouco depois de a Universidade de São Paulo (USP) anunciar a formação de uma rede de laboratórios para reforçar o diagnóstico molecular do novo coronavírus (Sars-CoV-2), dezenas de e-mails chegaram ao coordenador da iniciativa, o médico Roger Chammas, professor da Faculdade de Medicina (FM). Foram enviados por pesquisadores dispostos a ajudar voluntariamente na força-tarefa. “Foi emocionante receber mensagens de alunos de doutorado, estagiários de pós-doc e professores da USP e de outras universidades, todos se colocando à disposição para auxiliar na ampliação dos testes laboratoriais no estado de São Paulo”, diz Chammas. Quatro dias antes, a Organização Mundial da Saúde (OMS) havia recomendado a testagem em massa, na tentativa de conter o avanço explosivo da epidemia pelo mundo.

Além da USP, outras instituições paulistas, como a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o Instituto Butantan, mobilizaram seus laboratórios como parte de uma estratégia do governo do estado para suprir a crescente demanda de análise de casos suspeitos. Até então, essa tarefa vinha sendo desempenhada unicamente pelo Instituto Adolfo Lutz, principal órgão de vigilância epidemiológica de São Paulo.

“Os cientistas estão conscientes da necessidade de unir esforços para enfrentar essa crise”, afirma Chammas, chamando a atenção para o senso de solidariedade e auxílio mútuo que se instalou no meio acadêmico desde a confirmação do primeiro caso do novo coronavírus no Brasil, em 26 de fevereiro. Com a coordenação integrada de laboratórios pela USP, ele estima que será possível realizar 135 mil diagnósticos nos próximos três meses, utilizando testes moleculares do tipo RT-PCR em tempo real – um método para detectar o RNA viral das amostras de secreções respiratórias dos pacientes.

Cinco unidades da USP integram a rede, sendo que uma delas, o Laboratório Central do Hospital das Clínicas (HC), na capital paulista, já tem capacidade instalada para executar 30 mil diagnósticos por mês até junho. Os demais laboratórios localizam-se no Hospital Universitário, no campus do Butantã (em parceria com o Instituto de Ciências Biomédicas, a Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia e a Plataforma Científica Pasteur); na Faculdade de Odontologia, em Bauru; na Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos, em Pirassununga; e no Hospital de Clínicas e no Hemocentro em Ribeirão Preto.

De acordo com Chammas, são infraestruturas que preenchem de imediato os requisitos para validação no Instituto Adolfo Lutz. “Para se enquadrarem como entidades de saúde e executarem testes clínicos em São Paulo, os laboratórios precisam ser credenciados pelo instituto. É uma medida para assegurar padronização e controle de qualidade dos testes, e garantir a segurança dos pesquisadores”, explica Chammas. Por enquanto, apenas os hospitais de clínicas de São Paulo e de Ribeirão Preto e o Hemocentro têm autorização para realizar os testes, além do próprio Adolfo Lutz. “A expectativa é de que os outros laboratórios sejam credenciados nos primeiros dias de abril.”

Léo Ramos Chaves Grupo da Unicamp faz o trabalho de expansão do novo coronavírus, a primeira etapa para o desenvolvimento de testes diagnósticosLéo Ramos Chaves

Um passo importante no combate ao coronavírus é o deslocamento voluntário de pesquisadores com experiência em áreas como infectologia e virologia para contribuir com o trabalho de fazer diagnóstico molecular nos laboratórios da rede da USP, ressalta o biólogo Luis Carlos de Souza Ferreira, diretor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB-USP) e vice-coordenador da força-tarefa. “Vários cientistas do ICB e de outras unidades da USP interromperam suas atividades habituais para trabalhar voluntariamente em equipes que buscam gerar conhecimento e encontrar soluções para a crise que vivenciamos com o novo coronavírus.”

Também há outras maneiras de ajudar, informa Ferreira. “Colegas que suspenderam seus experimentos por conta da quarentena podem contribuir emprestando equipamentos e materiais de pesquisa que ficariam ociosos nesse período.” Há uma preocupação especial em relação aos reagentes químicos, insumos indispensáveis no preparo de amostras e reações em testes moleculares. Em razão do aumento da demanda global, existe escassez de reagentes no mercado, alerta o biólogo molecular José Luiz Proença Módena, coordenador do Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes (Leve) do Instituto de Biologia da Unicamp.

“Trata-se de um material importante não só para fazer os testes, mas também na condução de experimentos em busca de novas ferramentas de diagnóstico e medicamentos para conter a epidemia”, observa Módena. De acordo com ele, grande parte dos reagentes usados no Brasil é importada de países como Estados Unidos e Alemanha, onde a demanda interna também aumentou nas últimas semanas.

Para estimular o compartilhamento de insumos e a atuação em rede, a FAPESP autorizou, em 25 de março, o redirecionamento de recursos, mão de obra e materiais de projetos vigentes, apoiados pela agência, para estudos dedicados a conter o avanço da Covid-19, a doença respiratória causada pelo novo coronavírus. A Fundação também anunciou a liberação de R$ 30 milhões para investigações científicas sobre o tema – R$ 10 milhões já foram disponibilizados em chamada de proposta recém-anunciada.

O valor restante (R$ 20 milhões) será oferecido em uma linha especial de financiamento, no âmbito do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe-Fase 3), em parceria com a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), para apoiar startups dispostas a aplicar ou escalonar processos ou produtos inovadores relacionados à doença, como kits diagnósticos, ventiladores pulmonares e tecnologias de inteligência artificial para os serviços de saúde. “Os temas especificados na chamada surgiram de conversas entre a Fundação e a comunidade acadêmica, que tem trazido sugestões nas últimas semanas”, disse à Agência FAPESP Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP.

Léo Ramos Chaves Equipe da USP analisa amostras de secreções da região da nasofaringeLéo Ramos Chaves

Doações
Diante da deterioração do orçamento para ciência, tecnologia e inovação nos últimos anos, algumas instituições lançaram mão de estratégias para estimular o compartilhamento de insumos e equipamentos de pesquisa. Em maio do ano passado, em meio aos cortes de verbas das universidades públicas federais anunciados pelo governo, a Unicamp inaugurou a plataforma Solidariedade à Pesquisa, para facilitar a partilha de materiais, como reagentes químicos, entre pesquisadores vinculados a programas de pós-graduação do país. Idealizada pelo professor José Antonio Rocha Gontijo, da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, a ferramenta é útil para os pesquisadores que querem ajudar no combate ao coronavírus.

A universidade também lançou o projeto Força-Tarefa Unicamp, que visa organizar todas as ações contra o coronavírus colocadas em prática na instituição. A iniciativa busca centralizar a captação de recursos por meio de doações, que podem ser feitas diretamente para uma conta bancária da Unicamp. As doações não precisam ser direcionadas exclusivamente para fins de pesquisa, avisa a instituição. Em nota, a universidade informou que os recursos poderão ser usados, por exemplo, para a aquisição de equipamentos necessários às atividades de ensino a distância, como forma de ajudar estudantes carentes. Em 26 de março, um empresário doou R$ 50 mil para a compra de laptops. Com a suspensão das atividades presenciais, esses computadores serão usados por alunos da instituição para continuar a assistir às aulas, agora virtuais.

Outras instituições estão promovendo o financiamento coletivo como forma de complementar as verbas para pesquisas. A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), por exemplo, lançou em 24 de março campanha para receber doações destinadas à aquisição de medicamentos, equipamentos e insumos para pesquisa. O montante arrecadado será direcionado aos hospitais de Clínicas da UFMG, Risoleta Tolentino Neves e à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Centro-Sul, os dois últimos também gerenciados pela universidade. Interessados em contribuir podem acessar o site da instituição.

O Hospital das Clínicas da USP também iniciou uma campanha de financiamento coletivo, na última semana de março. A “vaquinha” on-line, disseminada nas mídias sociais pela hashtag #VemPraGuerra, busca arrecadar R$ 10 milhões para a compra de equipamentos hospitalares, como máscaras N95 e máquinas de raio X. O hospital estima que a demanda por esses materiais e equipamentos possa crescer mais de 400% no auge da epidemia do novo coronavírus. Ainda em abril, o HC da USP também vai lançar um portal na internet para receber doações, o HCcomVida.

Léo Ramos Chaves Pesquisador do Laboratório de Virologia Clínica e Molecular da USP trabalha com amostras do novo coronavírusLéo Ramos Chaves

Uma mão lava a outra
Na Unicamp, Módena e sua equipe estão trabalhando na padronização de testes moleculares que já se encontram em domínio público. O objetivo, diz ele, é ampliar a capacidade de diagnósticos no Laboratório de Patologia Clínica do Hospital de Clínicas da Unicamp. O credenciamento do Hospital de Clínicas no Instituto Adolfo Lutz foi anunciado pelo reitor Marcelo Knobel em 1º de abril.

Além disso, Módena busca por métodos alternativos, como a identificação de biomarcadores capazes de auxiliar no diagnóstico, sem que seja necessário achar fragmentos do material genético do Sars-CoV-2 nas amostras – como ocorre com a técnica usual do RT-PCR. “Estamos trabalhando para identificar os biomarcadores mais adequados”, avisa Módena, que celebra a parceria estabelecida com o virologista Edison Luiz Durigon, professor do ICB-USP. “O professor Durigon liderou o projeto que conseguiu, com apoio da FAPESP, isolar e cultivar o novo coronavírus no Brasil, obtido dos dois primeiros pacientes diagnosticados com a doença no Hospital Israelita Albert Einstein.”

A equipe de Módena também é parceira do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio) do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), que busca identificar tratamentos para a Covid-19, no âmbito da Rede Vírus MCTIC. No CNPEM, cientistas da computação e biólogos trabalham juntos em torno de um método de triagem virtual (screening) para analisar aproximadamente 2 mil moléculas de fármacos a fim de encontrar substâncias capazes de se ligar ao vírus, em lugares específicos, e bloquear a replicação viral. “Até agora selecionamos 16 medicamentos com potencial de inibir proteínas do novo coronavírus e estamos fazendo testes mais específicos com seis deles”, informa o virologista Rafael Elias Marques Pereira Silva, pesquisador do CNPEM. “Ainda não podemos revelar quais são esses medicamentos, mas adianto que todos eles são considerados seguros e estão disponíveis nas farmácias.”

Dentre os seis medicamentos promissores ao tratamento de COVID-19 que foram submetidos a séries de ensaios com células infectadas, em parceria com Módena, dois se mostraram capazes de reduzir significativamente a carga viral, combatendo o vírus. Além da eficácia contra o COVID-19, os dois medicamentos identificados pelo CNPEM são economicamente acessíveis, bem tolerados em geral, comumente utilizados por pessoas dos mais diversos perfis e, um deles, inclusive, está disponível em formulação pediátrica.

“Estamos bastante animados com os resultados destes ensaios. Contudo, ainda são resultados in vitro, ou seja, na bancada do laboratório. Agora seguiremos para avaliações complementares, mas que são fundamentais para que possamos aferir se esses dois medicamentos poderão ser levados com segurança para estudos clínicos, testes com humanos infectados. Acreditamos que em cerca de duas semanas teremos novos resultados”, afirma Rafael Elias, virologista do CNPEM.

A grande vantagem do reposicionamento de fármacos é reduzir o custo e o tempo da pesquisa, porque a droga utilizada já passou por testes toxicológicos, observa o biólogo Lúcio Freitas-Junior, pesquisador visitante do ICB-USP. “Utilizo a tecnologia de triagem fenotípica, conhecida como High Content Screening, em que moléculas químicas ou fármacos já existentes são identificados como possíveis combatentes de um determinado patógeno, como vírus, parasitas ou bactérias”, explica Freitas-Junior, ressaltando que, no momento, a técnica é aplicada em mais de 1.500 medicamentos.

Léo Ramos Chaves Cientistas alertam para o risco de haver falta de materiais de pesquisa para a realização de testes laboratoriaisLéo Ramos Chaves

Cultura de colaboração
Para essa tarefa, Freitas-Junior conta com a ajuda de colegas como o botânico Marcos Buckeridge, do Instituto de Biociências da USP, que lhe emprestou uma máquina, avaliada em US$ 32 mil, usada para preparar placas que abrigam as culturas de células infectadas com o vírus. “Sem esse equipamento, a limpeza teria de ser manual, o que levaria muito tempo e atrasaria a pesquisa”, diz Freitas-Junior. Já a geneticista Lygia da Veiga Pereira, do Instituto de Biociências da USP, disponibilizou células do trato respiratório para serem usadas nos testes. Isso porque a ação do vírus é predominantemente nas células epiteliais, que revestem os alvéolos pulmonares e participam do processo de troca gasosa – de gás carbônico por oxigênio. “Estamos adotando um protocolo científico para produzir células alveolares a partir de células-tronco, mas isso pode demorar”, diz Lygia Pereira. Para ganhar tempo, ela firmou parceria com um grupo da Universidade de Boston, nos Estados Unidos, que já está produzindo essas células em laboratório e irá ceder amostras para a USP. No laboratório de Freitas-Junior, as células alveolares serão infectadas pelo novo coronavírus e, depois, receberão a ação de milhares de fármacos, a fim de identificar possíveis tratamentos.

“Fico emocionado ao ver de perto o fortalecimento de uma cultura de colaboração entre pesquisadores que nunca trabalharam juntos, mas que agora se unem contra o avanço do coronavírus”, avalia Freitas-Junior, que em setembro de 2019 criou o SocialLab, uma plataforma gratuita para reunir e compartilhar um inventário de reagentes químicos e células existentes em laboratórios de pesquisadores de todo o Brasil. “É imprescindível evitar o desperdício de reagentes e a ociosidade de equipamentos de pesquisa.”

José Módena chama a atenção para o espírito prestativo que tomou conta dos pesquisadores na Unicamp. “Os testes moleculares exigem equipamentos muito caros, como termocicladores, que servem para aumentar as amostras de DNA. Sabendo disso, laboratórios da própria Unicamp alocaram 21 máquinas dessas para nossa pesquisa com coronavírus. Cada uma tem capacidade de fazer 100 testes por hora”, conta Módena. “Espero que essa cultura colaborativa permaneça depois que essa crise passar. O compartilhamento de equipamentos é fundamental para evitar a pulverização de recursos. Eu mesmo nem sabia que havia tantos termocicladores dentro da nossa universidade.”

Serviços gratuitos
Enquanto no Brasil os pesquisadores unem esforços para compartilhar materiais e recursos, ao redor do mundo destacam-se ações que incluem a suspensão de pagamento por serviços oferecidos à comunidade científica global, como plataformas utilizadas no recrutamento de pesquisadores e técnicos. No dia 17 de março, o portal ResearchGate – mídia social voltada à comunidade de pesquisa que permite a interação entre seus usuários e o compartilhamento de arquivos – anunciou que está oferecendo gratuitamente seus serviços de recrutamento. A ideia é que instituições de pesquisa, laboratórios, hospitais e organizações não governamentais possam publicar anúncios e rapidamente localizar especialistas nas áreas demandadas. “O ResearchGate está abrindo seu quadro de vagas em instituições científicas, permitindo que os grupos de pesquisa trabalhem ativamente no combate à pandemia da Covid-19”, informou a empresa.

Diversas editoras e publicações científicas também anunciaram medidas para facilitar o acesso a papers e preprints que tratem do novo coronavírus. A editora holandesa Elsevier criou uma página especial, o Novel Coronavirus Information Center, que disponibiliza acesso aberto, e sem cobrar taxas de publicação dos autores, a mais de 20 mil artigos. Por seu intermédio é possível fazer o download de dados brutos gerados nas pesquisas, além de guias e protocolos para testes clínicos. O British Medical Journal (BMJ) também montou uma plataforma para veicular notícias e papers, sem cobrar pelo serviço.

Iniciativas desse tipo estão sendo estimuladas por várias agências de fomento, entre elas a Wellcome Trust, fundação do Reino Unido de apoio à pesquisa biomédica. “Estamos muito satisfeitos com a forma como pesquisadores, editores, financiadores e universidades se mobilizaram rapidamente para acelerar o acesso a descobertas e dados relevantes sobre a Covid-19”, disse a Pesquisa FAPESP David Carr, gerente do programa de Ciência Aberta da Wellcome Trust. Em declaração dada em janeiro, a entidade fez um apelo para que publicações científicas e outras agências de apoio garantissem acesso livre e gratuito aos resultados de estudos sobre o coronavírus, como forma de contribuir para o desenvolvimento de ações de emergência no campo da saúde pública. O comunicado foi endossado por dezenas de instituições, entre associações científicas, editoras, e universidades de vários países, especialmente da Europa.

“Durante emergências de saúde fica clara a importância do acesso aberto e amplo a publicações científicas”, afirma Carr. Para ele, embora o foco deva ser o combate à pandemia atual, a expectativa é de que a situação emergencial possa acelerar a transição global para o acesso aberto total e imediato a toda literatura científica financiada pelos membros da cOAlition S. Carr se refere ao consórcio internacional responsável pelo chamado Plano S, uma iniciativa de acesso aberto proposta por 19 agências de apoio à pesquisa de vários países, na maioria europeus. Em maio de 2019, a coalisão decidiu adiar a execução do projeto em um ano – de 2020 para 2021.

A necessidade de compartilhamento de dados e informações foi reforçada pela OMS, que em 22 de março lançou o projeto Solidarity. Trata-se de um grande estudo global que busca realizar testes com quatro drogas promissoras no tratamento contra o novo coronavírus: o remdesivir, usado no tratamento do ebola; a cloroquina, utilizada para tratar malária; o ritonavir ou lopinavir, que faz parte do coquetel de tratamento do HIV; e o interferon-beta, uma molécula envolvida na regulação da inflamação corporal que, em testes anteriores, demonstrou efeito em saguis infectados por Mers – a síndrome respiratória do Oriente Médio, também causada por um tipo de coronavírus e que provocou 858 mortes desde 2014. A base da iniciativa consiste na inserção de dados médicos sobre o tratamento de pacientes do mundo todo em uma plataforma hospedada no site da OMS.

Em paralelo, agências de fomento estão se mobilizando não só para direcionar recursos para novas pesquisas sobre o novo coronavírus como para flexibilizar os prazos de projetos afetados pelas determinações de quarentena. O Conselho Europeu de Pesquisa (ERC), que apoia grupos de pesquisa de excelência em várias áreas do conhecimento, comunicou, pelo Twitter, estar “ciente de que muitos projetos financiados pelo ERC estão enfrentando interrupções e atrasos”. A instituição se comprometeu a buscar soluções para cada caso, dando margem para o adiamento de prazos. A Agência Nacional de Pesquisa da França (ANR) também se manifestou, afirmando que postergou as datas de submissão de projetos. Nos Estados Unidos, os Institutos Nacionais de Saúde (NIH), agência que apoia a pesquisa biomédica, optou por analisar os atrasos individualmente, mas solicitou que os pesquisadores enviem relatórios de prestação de contas “o mais rápido possível” após a retomada das operações.

Stu Rosner/Havar O filósofo norte-americano Peter Suber, pesquisador da Universidade HarvardStu Rosner/Havar

Acesso aberto contra o vírus
Enquanto milhões pessoas respeitam medidas de isolamento social para tentar conter a Covid-19 e permanecem fechadas em casa, a ciência, ao contrário, torna-se mais aberta. Essa é a avaliação do filósofo norte-americano Peter Suber, pesquisador do centro Berkman Klein para Internet e Sociedade da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e diretor do Programa de Acesso Aberto da mesma instituição. Defensor do Plano S – iniciativa de alcance internacional que estabelece a partir de 2021 a publicação imediata em acesso aberto de artigos que recebem financiamento público –, Suber conversou com Pesquisa FAPESP sobre o impacto da pandemia no sistema de atual de comunicação científica.

A atual pandemia pode deixar alguma lição para o sistema de comunicação científica?
A pandemia está explicitando o valor do acesso livre e imediato a informações e dados científicos e mostrando como o acesso restrito, que mantém artigos resguardados por paywall [em que os leitores são submetidos a sistemas de pagamento de taxas ou assinaturas], pode ser danoso em situações emergenciais como a que vivemos. Essas lições devem permanecer em mente mesmo após o fim da pandemia de coronavírus.

Qual a importância do acesso aberto nesse contexto?
Em crises passadas, também geradas por surtos epidêmicos, muitas editoras científicas colocaram em prática o que estão fazendo agora: instituíram acesso aberto temporário a periódicos médicos, alegando que as informações precisam circular com rapidez como forma de enfrentar uma emergência humanitária. Ações desse tipo merecem aplausos, mas com ressalva.

Por quê?
Esse ímpeto solidário geralmente cessa quando a crise epidêmica termina. O problema disso é que artigos sobre outras doenças graves, que também demandam soluções rápidas e urgentes, continuam sendo publicados com acesso restrito. Observa-se, então, que boa parte das editoras aplica de maneira seletiva o princípio de fornecer acesso aberto a informações de interesse público em áreas como saúde e segurança.

Como a epidemia de Sars-CoV-2 pode mudar essa postura?
Dada a gravidade da Covid-19, há esperança de que os editores científicos mantenham a decisão de facilitar o acesso gratuito a resultados de pesquisas com potencial de ajudar a salvar vidas. Formuladores de políticas públicas, agências de fomento e universidades podem aproveitar o momento para exigir das editoras a adoção de modelos de publicação em acesso aberto.

O que os pesquisadores podem fazer para agilizar e remover barreiras na divulgação de seus trabalhos?
Uma saída é publicar em repositórios de preprints, como bioRxiv e medRxiv. Os preprints são artigos que ainda não passaram pelo crivo da revisão por pares, mas ajudam a comunicar pesquisas de maneira rápida, expondo os resultados à crítica instantânea da comunidade científica. É um modelo que também estimula novas parcerias entre cientistas, facilitando colaborações mais sólidas no futuro.

A divulgação de dados brutos também é importante, não?
Sim. Disponibilizar dados brutos obtidos em trabalhos científicos é essencial para aumentar a reprodutibilidade de testes clínicos e pesquisas sobre coronavírus e torná-los mais transparentes. Outra opção é utilizar ferramentas abertas de Interface de Programação de Aplicativos [API], uma solução computacional que permite maior interoperabilidade e troca de informações com base em grandes volumes de dados. Esses mecanismos ajudam outros pesquisadores a fazer mineração de dados para produzir novas informações, alertas em tempo real e outros serviços úteis.

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