Borges – e, com certeza, o Umberto Eco, de O Nome da Rosa -, já avisava que uma biblioteca, mais que um depósito de livros, pode ser a porta para novos mundos. Ao iniciar a reforma de uma das salas da antiga residência da família Álvares Penteado, na rua Maranhão, 88, em São Paulo, para abrigar a biblioteca do curso de pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), o professor José Katinsky, da mesma unidade, e seus colegas, viram o eventual depósito de documentos se transformar num canteiro de pesquisas.
“Como a casa, que vai completar seu centenário este ano, foi tombada pelo Condephaat e pelo Conprest, tomamos cuidados especiais com o seu restauro e acabamos por reunir um grupo de especialistas que, em suas áreas específicas, descobriu um grande material de estudo no trabalho de recuperação”, conta Katinsky. Foram arquitetos, engenheiros, historiadores, químicos, especialistas em madeira, pintura, etc., que encontraram na casa informações preciosas sobre formas de construção do passado e de como o tempo pode manipular essas formas.
“Pesquisadores da Escola Politécnica (Poli) da USP, por exemplo, estavam diante de uma argamassa e um revestimento centenário e puderam avaliar como esses cem anos agem sobre essas estruturas”, diz o professor. E a situação de conservação da casa podia prover trabalho para todos. “Desconhecíamos o estado precário em que ela se encontrava, com cupins e tudo o mais.” As obras foram feitas com o programa de Apoio à Pesquisa e Modernização da Infra-estrutura de Pesquisa da FAPESP. Dinheiro fundamental para a pesquisa na recuperação do palacete em estilo art nouveau, cuja construção foi iniciada em 1898 sobre projeto do arquiteto sueco Carlos Ekman.
“Foi a primeira obra de arquitetura brasileira feita em consonância com esse estilo europeu. Mais que uma residência, o edifício é um símbolo do poder e do amor pela cultura de uma das famílias mais poderosas do país no início do século”, conta o pesquisador. Ligados à indústria do café (produtores de sacas e, mais tarde, distribuidores dos grãos), os Penteado (também fundadores da Escola de Comércio de São Paulo) estavam comprometidos com o desenvolvimento capitalista paulista. Assim, em 1945, tempos após a morte do patriarca, a família doou o casarão para a USP com a condição de que fosse utilizado para ensino e pesquisa em arquitetura.
“Os Penteado tiveram a percepção extraordinária na época e para o país de que a cultura não era apenas o sorriso da sociedade, mas um elemento dinamizador desta, em especial a arquitetura”, elogia Katinsky. E assim foi feito. O edifício de 1.500 m2 abriga hoje os cursos de pós-graduação da FAU-USP e, a partir de outubro, com a inauguração da nova biblioteca, o palacete dos Álvares Penteado reunirá a súmula das teses defendidas pela instituição, além dos acervos da Assessoria em Planejamento (Asplan S.A.) e da Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais (Sagmacs), espécie de centro de documentação em planejamento urbano.
Palacete
O acervo da Asplan é de especial importância, pois a organização foi a responsável pelo Plano Urbanístico Básico de São Paulo (PUB), tendo sido adquirido com auxílio da FAPESP. A nova biblioteca complementará os recursos disponíveis na outra unidade, localizada na Cidade Universitária (feita com recursos da FAPESP). Agora, os usuários – pesquisadores – poderão ter acesso ao material de referência em meio ao luxo art nouveau do palacete dos Penteado numa bibiblioteca de 223 m2 dividida em sete ambientes, que, para deleite extra dos pesquisadores, abrigam, nas paredes, pinturas decorativas do delicado estilo europeu, atualmente restauradas para a inauguração da biblioteca da pós-graduação.
“O ideal agora é continuar o trabalho e recuperar todo o resto do edifício, deixando-o pronto para que se possam fazer visitas monitoradas pelo prédio em breve”, promete Katinsky. Uma biblioteca pode ser mais do que uma biblioteca. “Queremos dividir essa experiência adquirida com outros pesquisadores e instaurar uma discussão dentro dos meios acadêmicos em relação à necessidade da implementação de estudos sobre restauro interdisciplinar”, fala o pesquisador. “Afinal, durante o restauro, fomos obrigados a procurar as soluções mais adequadas que não ferissem as decorações internas do casarão, as pinturas art nouveau, e as paredes”, diz o professor. “E, assim, aprendemos muito sobre como essas delicadas operações são feitas”, completa. Foi necessário mesmo procurar testemunhos pessoais, pois as lacunas em projetos e traçados de época tiveram de ser preenchidas com lembranças pessoais de como o casarão da rua Maranhão, 88 se parecia em seu apogeu.
Segundo Katinsky, todo esse cuidado é também uma homenagem ao pioneirismo intelectual da família que construiu o palacete e o doou à universidade. “Eles perceberam o poder da arquitetura no desenvolvimento artístico e industrial do Brasil. Foram casos raros, pois, por aqui, quase não se entendeu, naqueles tempos, que a indústria poderia florescer como um processo criativo”, observa.
O pesquisador acredita que o trabalho renderá, além da biblioteca, um livro sobre os esforços de restauração da residência dos Álvares Penteado. “Será uma forma de mostrar que restauro, ao contrário do que muitos pensam, não é coisa para um especialista, mas a obra conjunta de um grupo de profissionais das mais variadas áreas do conhecimento científico”, assegura. “Se queremos romper com a terrível tradição brasileira da falta de memória e reconstruir, com precisão, a nossa cultura material, essa discussão precisa ser colocada dentro do ambiente universitário”, diz. Lugar para guardar livros? O que alguns chamam de biblioteca, Borges chama de universo.
O Projeto
Biblioteca da Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) – Rua Maranhão, 88; Modalidade Infra-estrutura 4 – Bibliotecas; Coordenador Julio Katinsky – FAU-USP; Investimento
R$ 200.000,00