Quando se tornam peixinhos capazes de nadar e saem dos ninhos de cascalho no fundo de rios da América do Norte, as trutas-de-brook (Salvelinus fontinalis) enfrentam desafios à sobrevivência. Precisam perceber obstáculos no espaço, encontrar alimento e, sobretudo, escapar de predadores – que podem ser adultos da própria espécie. Detalhes de como se forma o sistema sensorial típico de peixes que ajuda a detectar esses perigos e oportunidades, a linha lateral, indicam que ele se altera conforme as circunstâncias experimentadas pelas trutas à medida que crescem, em um ajuste fino que pode ser afetado por mudanças de temperatura previstas pelos modelos de aquecimento global, e que já estão acontecendo, de acordo com artigo publicado em julho na revista Journal of Morphology.
“A água é densa o suficiente para que o animal detecte um objeto próximo apenas pelas mudanças de fluxo causadas por esse objeto na água”, explica o zoólogo Pedro Rizzato, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). “É como um sexto sentido dos peixes”, compara, uma habilidade de tato à distância capaz até de detectar diferenças de textura. Os receptores, chamados neuromastos, ficam distribuídos na superfície da pele e também podem estar abrigados em canais por baixo dela. Cada escama que recobre o poro de abertura de um canal tem um furo por cima e outro por baixo, formando uma linha visível da cabeça à cauda, daí o nome “linha lateral”.
Essa organização pode variar de espécie para espécie. As trutas estudadas não têm a linha lateral tão desenvolvida quanto se esperaria a partir de outras espécies, no momento em que começam a nadar, ainda jovens. Peixes de regiões temperadas têm mais receptores do que os tropicais, de modo geral, e estudos recentes vêm documentando uma variação dos tipos de organização desses sensores. “Em águas paradas é mais favorável ter receptores de superfície, enquanto nas movimentadas eles estão concentrados em canais dentro da pele”, detalha Rizzato. Segundo ele, há uma hipótese – ainda não consensual – de que essa organização permite filtrar a turbulência da água e evita uma estimulação sensorial excessiva.
O trabalho recente do zoólogo contribuiu para esmiuçar como a distribuição dos neuromastos varia no desenvolvimento das trutas, em uma parceria com duas evolucionistas norte-americanas da Universidade de Rhode Island, nos Estados Unidos: Aubree Jones, que fez a pesquisa como parte de seu doutorado, e sua orientadora, Jacqueline Webb. “Eu já era influenciado pelo trabalho do grupo [de Webb] e elas vieram conversar depois que apresentei meu trabalho em um congresso, assim iniciamos a parceria”, conta Rizzato.
Da família dos salmões, as trutas integram um grupo de peixes de importância comercial, o que adiciona interesse em conhecê-los. A espécie em questão vive em regiões temperadas, na América do Norte, e habitualmente migra rio acima para se reproduzir. O ciclo de vida é ritmado pelas estações bem marcadas, e o desenvolvimento é lento.
Segundo Rizzato, nas primeiras fases da vida os neuromastos estão à flor da pele. À medida que os peixinhos se destacam do chão e começam a frequentar a coluna d’água, a corrente se torna mais rápida e os receptores são engolfados por uma invaginação que os transfere para dentro de canais. Esse processo leva oito meses desde a fertilização – ou, no caso desses peixes, pelo menos seis meses depois da eclosão. É muito lento: em algumas espécies tudo isso se dá em cerca de um mês.
Para investigar esse desenvolvimento, o grupo analisou peixinhos desde recém-eclodidos, com cerca de 1,5 centímetro (cm), até os juvenis de quase 1 ano, que chegam a 8 cm. Os adultos da espécie podem chegar a mais de 40 cm de comprimento. As observações envolveram uma série de metodologias, incluindo o estudo de cortes ao microscópio, o exame de peixes preservados em álcool, a microscopia eletrônica de varredura, a tomografia computadorizada e a diafanização, tratamento que torna transparentes os tecidos superficiais, enquanto ossos e cartilagens são tingidos com cores diferentes, o que permite distingui-los. Foi utilizada ainda uma outra técnica, que usa corantes fluorescentes que se ligam especificamente aos receptores da linha lateral. “O corante se liga aos receptores ativos, que brilham”, descreve Rizzato. “Dessa forma, fizemos uma descrição detalhada que não tinha sido realizada para nenhuma espécie de peixe.”
Experimento natural
Os peixes do estudo têm algo que os diferencia do padrão natural da espécie: vivem em açudes, onde não podem migrar, como fariam se habitassem um rio que precisassem galgar na época da reprodução, para na maturidade descer em direção à jusante. Essa situação, que acontece em consequência de alterações humanas ao ambiente, faz parte do interesse da evolucionista Aubree Jones. “Eu queria ver como as represas afetam a migração dos peixes”, conta. Mas, antes de comparar a vida em água parada àquela nos rios, ela encontrou uma oportunidade experimental para verificar como a temperatura afeta o desenvolvimento.
Assim, criou três condições experimentais em que os peixes cresciam em temperaturas que correspondiam à média térmica dos rios da região, ou aquecidos a 2 graus Celsius (°C) ou a 4 °C a mais. “Descobrimos que a estrutura dos neuromastos se mantém nessas condições”, afirma ela. O que muda é o tamanho dos neuromastos, que se mantêm menores, e a velocidade de desenvolvimento, que se torna mais rápida. Os dados integram sua tese de doutorado, defendida em setembro de 2023, e ainda não foram publicados.
De acordo com Jones, essas mudanças podem levar a um descompasso entre o desenvolvimento das jovens trutas e as condições ambientais. “Os filhotes são noturnos, o que lhes permite evitar serem comidos pelos adultos da mesma espécie, que se alimentam de dia.” Uma maturação sensorial mais rápida, sem o tempo para que o animal atinja tamanhos mais robustos, pode representar perigo.
Quando começou o trabalho, há cerca de seis anos, a evolucionista via as temperaturas experimentais como fictícias, de certa maneira. Mas rapidamente viu aquelas condições se tornarem a realidade em parte dos hábitats desses peixes. “As coisas estão mudando tão depressa, que é difícil produzir resultados significativos a tempo”, lamenta. “Uma temperatura 4 °C mais quente está logo ali.”
O problema pode ser maior do que isso, alerta o biólogo Adalberto Val, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). “A mudança climática é muito mais ampla do que a temperatura crescente; o aumento do gás carbônico tem um efeito brutal na água, que se torna acidificada.” Os peixes estão sempre dentro da água, respirando pelas brânquias e têm sensores epidérmicos afetados pela acidez. “A tomada de oxigênio precisa se dar no pH correto”, exemplifica o pesquisador. Essas mudanças de temperatura e acidez, e seu efeito sobre os peixes, são justamente a especialidade de Val, como ele contou em entrevista publicada em setembro (ver Pesquisa FAPESP nº 343).
Val se preocupa com o impacto das mudanças sobre os peixes amazônicos. Afinal, eles evoluíram em contato com um ambiente de clima equatorial, em que as condições se alteram pouco de uma estação a outra. A maneira como peixes de regiões temperadas, mais habituados a grandes flutuações, se adaptam às mudanças pode dar pistas de como seria a remodelação da linha lateral em ambientes tropicais. “Seria interessante comparar para entender melhor”, reflete.
Artigo científico
JONES, A. E. et al. Development of the cranial lateral line system of Brook Trout, Salvelinus fontinalis (Teleostei: Salmonidae): Evolutionary and ecological implications. Journal of Morphology. v. 285, n. 8. e21754. ago. 2024.