Estou trabalhando em casa desde o dia 13 de março e a quarentena afetou de várias maneiras o meu trabalho como pesquisador e docente do Departamento de Antropologia da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos. De início, era tanta incerteza que eu vi uma oportunidade de dar uma parada e refletir sobre as prioridades da minha vida pessoal e profissional. A gente acaba aceitando fazer mais do que pode, na vontade de contribuir, e o resultado disso é uma vida tumultuada. Com o cancelamento de viagens para reuniões e para pesquisas de campo que eu faria ao Brasil, aproveitei para limpar minha mesa de coisas pendentes e acumuladas e enfrentar esse momento junto à família.
Tento não esquecer o tamanho do privilégio de enfrentar esse momento difícil dessa forma, quando há tanta gente sem a mesma chance, que perdeu emprego ou salário ou que ficou doente, ou dos muitos que têm de fazer a opção entre o risco de ficar doente e comer. Sempre penso no apoio dos meus irmãos aos nossos pais, nos colegas que estão tomando conta de familiares adoecidos, ou que têm tido de se desdobrar para tomar conta de filhos pequenos, acompanhar aulas a distância e ainda ter de ser ‘produtivo’, e que, no caso do Brasil, estão enfrentando ataques diários à ciência e às universidades, ao meio ambiente, aos povos indígenas e daí por diante.
Esse conflito interno com o impacto desigual que essa pandemia teve na vida das pessoas também me serve de motivação para escrever artigos e participar de discussões sobre o assunto. A publicação do Levantamento global da biodiversidade e serviços ecossistêmicos do IPBES em maio de 2019, o qual codirigi, trouxe à tona vários dos problemas que estamos enfrentando hoje, como a relação entre desenvolvimento econômico, degradação ambiental e seus impactos desiguais na qualidade de vida das pessoas. O levantamento mostra que a situação que vivemos hoje não é nova, mas vem se configurando há décadas; o momento atual oferece uma oportunidade para pensarmos como podemos buscar um novo modelo de desenvolvimento justo e sustentável daqui para frente. Dependendo de como forem encaminhados os estímulos e subsídios para recuperação econômica, estaremos minimizando ou exacerbando a chance de futuras pandemias. Escrever e participar de discussões sobre esses assuntos tem sido uma maneira de contribuir para uma reflexão que confronte as raízes desses problemas no Brasil e além.
A pandemia impactou bastante as pesquisas em andamento. Os planos para 2020 e 2021, que envolviam uma quantidade significativa de trabalhos de campo, tiveram de ser refeitos. O atraso será de um ano, um ano e meio. O principal prejuízo envolve um projeto que estamos fazendo na Amazônia, aprovado no fim de 2018 pelo Belmont Forum e pelo Norface, que reúne agências de fomento à pesquisa de todo o mundo e é voltado para pesquisas sobre transições sociais para sustentabilidade. O nome do projeto é Agentes, cuja sigla em inglês denota Governança Amazônica para Viabilizar Transformações Rumo à Sustentabilidade, e tem apoio fundamental da FAPESP, no Brasil, da National Science Foundation, nos Estados Unidos, e de agências de fomento dos Países Baixos e da Suécia. É uma equipe internacional com predominância de brasileiros. Pessoalmente, tive de cancelar as quatro viagens que eu faria ao Brasil neste ano, incluindo reuniões em São Paulo, com parceiros da USP [Universidade de São Paulo], Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], Univap [Universidade do Vale do Paraíba], e em Rondônia. Entre junho e agosto, passaria dois meses no Pará. E ainda pretendia voltar para a região por mais 15 dias em dezembro.
O projeto foi extremamente bem-sucedido no primeiro ano de execução. Nosso objetivo é identificar e entender iniciativas promovidas por agentes de mudança, como indivíduos, associações e cooperativas, que sejam capazes de melhorar a vida da comunidade local em seus aspectos sociais e ambientais. São iniciativas frequentemente pouco visíveis, mas que fazem muita diferença na vida das pessoas e na região como um todo. Queremos entender que processos facilitam o surgimento dessas iniciativas e se é possível reproduzi-las ou ampliá-las. No ano passado, fizemos workshops participativos e visitas de campo com lideranças e associações nos lugares em que escolhemos trabalhar: o vale do Acará e Belém e a região de Santarém-Belterra, no Pará, e em menor escala, nos arredores de Rio Branco, no Acre. Documentamos 200 iniciativas até agora, entre arranjos de produção, arranjos de mercado e arranjos de governança. E fizemos muito trabalho de campo para saber que tipo de perguntas são mais relevantes a nível local. Nos workshops, dialogamos com mais de 40 organizações. Quando você traz um produtor rural, um líder comunitário ou organizações civis e pergunta ‘O que vocês estão fazendo?’, ‘O que tem facilitado e dificultado os esforços de vocês?’, o efeito é muito forte. As pessoas veem que existe um interesse legítimo em saber sobre os problemas que estão enfrentando e como estão se organizando e agindo para buscar respostas duradouras e inclusivas para problemas locais. Mesmo que enfrentem grandes problemas históricos e estruturais da região, muitas vezes o obstáculo é só um pouquinho de dinheiro ou o mínimo de assistência técnica, outras vezes a falta de transporte para comercializar a produção e o armazenamento. Dá para ver a diferença que pode fazer um microcrédito, apoio a uma cooperativa local, parceria entre órgãos públicos e comunidades, suporte a uma associação de mulheres, por exemplo; ou o simples reconhecimento social do valor de uma iniciativa local para o desenvolvimento da região. Por outro lado, é muito clara a apreensão de pequenos agricultores, comunidades rurais e indígenas com o crescimento de conflitos, invasões e violência que assombram a região no momento.
O projeto inclui duas pós-doutorandas, quatro estudantes de doutorado e cinco pesquisadores trabalhando colaborativamente. Criamos uma relação próxima com muitas organizações e tínhamos planejado, em 2020, passar três meses em campo tentando entender como essas iniciativas funcionam. Infelizmente, isso foi paralisado. O projeto nos entusiasma pelo contato direto com as pessoas e pela esperança que brota em ver quantas pessoas, grupos e iniciativas estão tentando mudar o presente e o futuro da Amazônia. Para não perder a conexão, continuamos conversando com algumas delas por WhatsApp, mantendo-as informadas sobre as perspectivas de retomar os trabalhos de campo. Também iniciamos colaborações com universidades e organizações da região, inclusive planos de intercâmbio, que queremos continuar o mais cedo possível. Felizmente, conseguimos coletar muitos dados no primeiro ano; e também preparamos cinco relatórios que retornamos aos participantes e colaboradores locais. Agora estamos trabalhando na produção de artigos científicos que possam fornecer subsídios para a segunda fase da pesquisa com os colaboradores na região.
Aqui na universidade, nosso laboratório fechou em março. É possível ir lá sob certas condições, mas o grupo praticamente não está indo. Tínhamos um seminário a cada duas ou três semanas, um fórum construtivo para alunos e professores apresentarem suas ideias e discutirem papers e projetos que estão preparando. Isso está fazendo falta. Ainda não foi possível reorganizar on-line, mas essa é a ideia. O fórum acontecia as sextas-feiras na hora do almoço. Nós nos reuníamos para comer pizza e discutir. É difícil reproduzir esse espaço social em um evento virtual.
O trabalho como professor sofreu outro tipo de impacto. O semestre letivo já estava em andamento quando veio a pandemia e tivemos de fazer uma transição rápida para o ambiente virtual. Fizemos o melhor possível e acho que deu certo, pois naquele momento eu já tinha muita familiaridade com os alunos e os cursos estavam andando bem. No passado, já tive boas experiências com cursos de curta duração on-line, porém eles sempre foram preparados antecipadamente, com gravação de aulas e módulos de exercícios, envolvendo reunião com alunos uma vez por semana. No semestre passado, eu estava dando um curso de Sustentabilidade e Sociedade para 50 alunos do primeiro ano da graduação e tentei manter uma interação próxima para que eles não se sentissem sós após a transição on-line. Naquela altura do semestre, eu já os conhecia pelo nome, o que faz muita diferença. O curso costuma ser bastante interativo, em termos de leitura e discussão. Sempre inicio minhas aulas com um contexto histórico e também tento buscar a experiência pessoal dos alunos para engajá-los. Isso dá tempo em 75 minutos. Na transição para o on-line, tive de selecionar conceitos e gravar vídeos de 10 a 15 minutos sobre eles, além de criar atividades que os estudantes pudessem fazer sozinhos. Cortei parte do contexto histórico e preservei os conceitos principais.
Com o início de um novo semestre, agora, o desafio de trabalhar virtualmente é muito maior. Além do meu seminário de doutorado em antropologia ambiental, que é on-line, mas interativo, estou preparando um curso para 90 estudantes, Introdução à Antropologia Social e Cultural, que envolve conceitos complexos e não será interativo. Dei esse curso presencialmente no ano passado e foi ótimo. Por duas ou três aulas a gente discute a história da antropologia, a antropologia diante da globalização e da evolução do conceito de cultura. O resto do curso é organizado em torno da estruturação de poder na sociedade, em que discutimos raça e racismo, etnicidade e nacionalismo, classe e desigualdade, gênero e sexualidade, família e parentesco, religião e por aí adiante; e por fim as consequências desiguais da globalização e da degradação ambiental. Eu adoro discutir esses assuntos em sala de aula. Você tira os alunos da zona de conforto, dá ferramentas analíticas para entenderem questões sociais atuais e tenta trazer e valorizar suas experiências pessoais. Dessa vez, estou quebrando cada palestra em dois ou três vídeos de 15 minutos. A grande dificuldade é planejar a interação por escrito. Suponha que você proponha um ponto de discussão em uma aula e receba 90 interações por escrito ou peça que alunos participem de discussões e logo isso se transforma em 180 ou o dobro de reações em uma só aula. A participação interativa por escrito, que é fundamental num curso como esse, pode gerar um tsunami de material e é compreensível que os alunos tenham a expectativa que você responderá cuidadosamente e também rapidamente. Enfim, estou planejando com muito cuidado as aulas, atividades individuais e os fóruns de discussão, junto com meu assistente de curso. Mas perder a relação face a face na sala de aula quando estou discutindo esses assuntos é o que mais sinto falta.
Eu adoro ficar em casa e isso me ajudou muito na quarentena, mas a certa altura se chega a um ponto de saturação, em que você se sente exausto e ansioso, distraído e com concentração variada durante o dia e semana, sem saber se você fez ou não tudo o que devia. O que me ajudou muito foi manter uma rotina e pensar na organização da semana como um todo, com uma lista de prioridades que gostaria de terminar. Caminho todos os dias no bairro com a minha esposa e/ou minha filha; também aproveitamos o momento para fazer uma horta. A experiência familiar de quarentena tem sido boa e nos sentimos mais próximos e enfrentando tudo isso juntos. O mais difícil tem sido a distância da nossa filha mais velha. Ela trabalha no Canadá e ainda não sabemos quando a situação permitirá que estejamos juntos novamente, com certeza na primeira ocasião que der. Para contornar a monotonia de trabalho contínuo em casa, organizamos diferentes espaços de trabalho em casa. Minha esposa estará ministrando três cursos este semestre e nossa filha mais nova também estará estudando em casa a maior parte do tempo. Quando estamos cansados de um lugar, podemos trabalhar um pouco ao ar livre ou trocar de poltrona para variar. Percebi a importância de cuidar da ergonomia. Investimos na logística de trabalho, em iluminação, melhores cadeiras e equipamentos para gravar aulas em vídeo. Coisas que não eram preocupação viraram prioridade.
Vim para os Estados Unidos há quase 30 anos. Parte da razão de voltar muito ao Brasil é que aproveito para ver meus pais idosos, que moram em São José dos Campos [SP]. Essa parte tem sido difícil. Sempre conversamos com frequência, mas agora falamos todos os dias sagradamente por vídeo no WhatsApp; o esforço do meu pai em utilizar a ferramenta valeu a pena. Todos os dias a gente mata a saudade, eles podem ver a neta, acompanhar o que estou fazendo na cozinha – cozinho todos os dias e faço pão em casa muito antes de virar moda na pandemia. Isso cria um senso concreto de conexão, mas não vejo a hora mesmo é de abraçá-los!
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