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Geologia

Terra Mãe

Equipe da USP põe a América do Sul no mapa de Rodínia, um supercontinente de 1 bilhão de anos atrás

Dez mil amostras cilíndricas de rocha com 2 centímetros de altura desvendam a América do Sul de 1 bilhão de anos atrás, um quadro bastante diferente do atual mapa-múndi. Naquela época, o que corresponde ao atual território brasileiro era uma série de grandes ilhas distantes umas das outras. O bloco que corresponde à Amazônia estava separado de Goiás e do Nordeste por mares e, ao mesmo tempo, mais próximo da porção sul do país do que hoje e quase colado ao que seria a América do Norte.

Coletadas de norte a sul do Brasil, no restante da América do Sul e na África, as amostras de rocha contam histórias que permitiram a uma equipe da Universidade de São Paulo (USP) montar o quebra-cabeça da composição de Rodínia – Terra Mãe, em russo –, um dos supercontinentes nos quais a crosta se dividia há cerca de 1 bilhão de anos, período anterior ao de Gondwana – o supercontinente mais conhecido, formado há 750 milhões de anos a partir da fragmentação de Rodínia. Para chegar a esses resultados, os pesquisadores do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) usaram a técnica do paleomagnetismo, que se baseia no fato de que uma rocha, ao resfriar-se, cria uma marca que mostra a direção do campo magnético terrestre naquele momento e assim permite localizar sua posição em relação aos pólos.

Laurentia
O trabalho, desenvolvido em projeto iniciado em 1998, foi apresentado em outubro de 2001 num congresso em Perth, Austrália, e num simpósio internacional sobre Rodínia e Gondwana reunido em Osaka, Japão. As descobertas completam e corrigem o primeiro mapa de Rodínia, mostrado em 1991 pelo geólogo norte-americano Paul Hoffman, hoje na Universidade de Harvard, Estados Unidos. Fundamentado em estudos feitos basicamente no Hemisfério Norte, o desenho de Hoffman mostrava um supercontinente cujo centro era um grande bloco chamado Laurentia – a atual América do Norte. Em torno, aglutinavam-se os que formariam Antártica, Austrália, Sibéria, Índia, Kalahari (leste da África), sul da China, Congo-São Francisco (parte da África e do Nordeste brasileiro) e Continente Báltico (norte da Europa).

O grupo brasileiro, que já atuavana área desde o início dos anos 70, decidiu então oferecer uma visão sul-americana de Rodínia, acrescentando peças ao quebra-cabeça de Hoffman. Coordenado por Igor Ivory Gil Pacca, o grupo do IAG voltou seu foco para as rochas dos crátons, que formaram o sul de Rodínia. Crátons são os blocos rochosos mais antigos da litosfera – camada externa do planeta, que é formada pela crosta e pelo manto superior, e tem cerca de 100 quilômetros de espessura.

O grupo coletou material em Mato Grosso, Rondônia, Ceará, Bahia e Paraná. Pegou amostras também na Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia e, do outro lado do Atlântico, no Gabão, na Nigéria e em Camarões. Foram coletadas rochas dos três tipos: as sedimentares (arenitos, carbonatos e siltitos), as magmáticas (basaltos, granitos, gabros e andesitos) e as metamórficas (anfibolitos, granulitos, migmatitos e gnaisses).

À medida que terminava as análises desse material, o grupo agregava peças à proposta original. Inicialmente, mostrou que a região central de Goiás, o Rio de la Plata (que abrangia o sul do Brasil), a África Ocidental e outros blocos menores também participaram da formação e fragmentação do supercontinente.O resultado é que a imagem idealizada por Hoffman mudou significativamente: a Amazônia, por exemplo, saiu do lado oeste e passou para leste. Segundo Pacca, Hoffman incluiu a Amazônia no mapa de 1991 com base em evidências estruturais e semelhanças geológicas, mas com pouquíssimas informações paleomagnéticas, indispensáveis para a reconstituição da Terra antiga. “Era quase uma suposição, uma possibilidade”, comenta. Um dos méritos da equipe da USP foi justamente reunir dados abundantes da posição do bloco amazônico em Rodínia. “Hoje, não restam mais dúvidas”, assegura.
A história extraída das rochas reforça as hipóteses sobre a aparência que tinha a Terra há 1 bilhão de anos – um quinto de sua idade. Acredita-se que na época de Rodínia o planeta era uma imensa bola de gelo, resultante, provavelmente, de interferências astronômicas e alterações de órbita: o gelo aumentava a reflexão da luz, o que diminuía a absorção de energia. Veio, em seguida, o reverso da medalha: a intensa atividade vulcânica daquele período emitia uma quantidade enorme de gases, que acabaram por originar um gigantesco efeito estufa.

O gelo começou a derreter e, em cerca de 10 mil anos – período geológico extremamente curto –, a temperatura da Terra passou de 50ºC (graus Celsius) negativos para 50ºC positivos. As conseqüências sobre a vida, ainda incipiente, foram imediatas. “Esses eventos de estresse favoreceram o surgimento dos seres pluricelulares”, diz Ricardo Trindade, pesquisador da equipe do IAG. “Antes, o que havia na Terra eram as cianobactérias, seres muito simples e capazes de sobreviver em condições adversas.”

Rodínia em pedaços
Foi justamente nessa época de mudanças climáticas intensas, há cerca de 750 milhões de anos, que Rodínia começou a se fragmentar e a dança dos blocos passou a formar outro supercontinente: Gondwana. Ele aglutinava as atuais América do Sul, África, Antártica, Austrália e Índia. Os blocos que formariam o Brasil começaram a se aproximar do desenho de hoje quando surgiu o último dos grandes continentes: Pangea, há cerca de 300 milhões de anos. Foi da fragmentação de Pangea que nasceram os atuais oceanos e continentes, há aproximadamente 100 milhões de anos.

E a dança não pára: estima-se que atualmente os blocos se movam 3 centímetros ao ano, em média. O grupo do IAG aponta algumas tendências: nos próximos milhões de anos, devem surgir rachaduras na América do Norte, na Ásia e entre a África e a Península Arábica. Brasil e África se encontrarão de novo, desta vez do outro lado – oeste brasileiro com leste africano. Tanto as descobertas quanto as conjecturas se apóiam na Teoria da Deriva Continental, apresentada em 1912 pelo cientista alemão Alfred Wegener (1880-1930), mas só consolidada nos anos 60. Pela teoria, a litosfera é formada por partes deformáveis chamadas placas tectônicas. As placas se movem ao longo da superfície, se quebram e se juntam, tudo sob o impulso do calor de dentro da Terra.

Rochas marcadas
À medida que se recua no tempo, contudo, cresce a incerteza sobre a movimentação efetiva das placas, de modo que não se pode dizer que o mapa de Rodínia, mesmo acrescido pelas contribuições brasileiras, seja definitivo. “Além de persistir alguma dúvida sobre quais blocos realmente fizeram parte de Rodínia, há divergências sobre a posição correta deles e onde exatamente se encaixariam”, afirma Manoel Souza D’Agrella, do grupo do IAG. Num artigo publicado em março em Geology, uma das revistas mais importantes da área, Ebbe Hartz e Trond Torsvik, da Universidade de Oslo, Noruega, mostram evidências de que o continente báltico estaria, na verdade, numa posição invertida em relação ao que se tem hoje – o norte seria o sul e vice-versa.

“Essa verificação teria implicações para a Amazônia, que normalmente aparece colada ao continente báltico nas reconstruções de Rodínia”, diz Hoffman, o autor do primeiro mapa. Segundo ele, um estudo, a sair na Earth and Planetary Science Letters, mostra que a Austrália pode não ter estado ao norte do México, um dos integrantes do bloco chamado de Laurentia, 1 bilhão de anos atrás. Há divergências, mas num ponto os pesquisadores concordam: seria impossível recuperar essa história tão remota sem o paleomagnetismo, ferramenta que o IAG e os outros grupos adotam para relatar a deriva continental.

A técnica apóia-se no fato de que, seja há 1 bilhão ou há 100 milhões de anos, o resfriamento de uma rocha sempre registra nela a direção do campo magnético terrestre. “O paleomagnetismo determina a latitude em que o bloco de rocha se encontrava e a posição dele em relação ao eixo da Terra”, afirma a geofísica Márcia Ernesto, que divide com Pacca a coordenação da equipe da USP.

No final dos anos 90, já com as primeiras amostras à mão, o grupo do IAG constatou que a posição do pólo arquivada nas rochas não correspondia à atual: numa era vertical, noutra horizontal, outras eram posições diagonais diversas. A hipótese de que o campo magnético terrestre tenha se alterado ao longo do tempo foi logo descartada: “Os pólos magnéticos terrestres sempre estiveram muito próximos dos pólos geográficos”, enfatiza Pacca. “E o eixo magnético terrestre funciona como um grande ímã de barras, próximo ao eixo de rotação.” Portanto, o que explica a discrepância na orientação magnética das rochas é que os continentes estiveram mesmo andando.

Rotas continentais
Depois se fez a análise de rochas de idades diferentes, coletadas no mesmo lugar. A série histórica permitiria definir as direções de pólo registradas. Um exemplo hipotético: há 800 milhões de anos, a direção era horizontal, aos 600 milhões fez uma curva à esquerda, aos 300 milhões à direita e assim por diante. A memória das rochas arquiva as rotas. Ao se juntar esses rastros e ordená-los numa linha de sentidos, surge a curva de deriva polar aparente – que mostra claramente os caminhos dos continentes. Foi o queaconteceu com os arenitos colhidos em duas cachoeiras de Mato Grosso – uma em Salto do Céu, perto de Cuiabá, outra em Vila Bela da Santíssima Trindade, antiga capital do Estado, próxima à Bolívia –, que deram segurança sobre onde estavam os blocos que formariam a América do Sul.

Traçadas as rotas de movimento da América do Sul e da África, os pesquisadores puseram a primeira sobre a segunda e vice-versa, e viram exatamente onde e quando esses continentes se aproximara ou se afastaram. O trabalho de campo exige paciência e certa dose de adrenalina para a aventura. Da última vez em que estiveram em Rondônia, em julho de 2001, o grupo teve de invadir áreas controladas por madeireiras e o carro da universidade foi confundido com a fiscalização. “Não foi nada agradável”, conta Pacca: “Quase levamos uns tiros”.

Em campo, os pesquisadores penetram as rochas com uma furadeira especial e extraem os cilindros. Imediatamente, uma bússola determina a direção do campo magnético no momento e o pesquisador anota na própria amostra. No laboratório, as amostras passam por fornos que aumentam e diminuem alternadamente a temperatura, para eliminar interferências magnéticas recentes. É preciso deixar só o registro antigo, que é avaliado numa sala blindada – “o lugar de campo magnético menos intenso que existe em São Paulo”, segundo Márcia.

Parcerias
O grupo recebeu o reforço do Centro de Pesquisas Geocronológicas do Instituto de Geociências (IG), também da USP. É ali que se fazem as análises químicas e de elementos radioativos, que atestam a idade das rochas. “Como a margem de erro é mínima, podemos estabelecer hipóteses cada vez mais coerentes sobre a formação de Rodínia”, diz Wilson Teixeira, diretor do Instituto de Geociências (IG) da USP, que integra o grupo. Foi o IG, aliás, que sediou um encontro internacional sobre Rodínia, em agosto do ano passado.

O grupo do IAG, hoje umas das referências internacionais e provavelmente o único a trabalhar com paleomagnetismo no Brasil, atua em colaboração também com grupos da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro e as universidades federais da Bahia, do Pará e do Rio Grande do Norte, que facilitam a coleta e interpretação dos resultados. Há ainda parcerias com especialistas das universidades de Berkeley (Estados Unidos), Trieste e Pádua (Itália), Suécia, Toulouse (França) e Buenos Aires (Argentina). O habitual espírito de colaboração entre cientistas é reforçado pelo fato de ninguém saber onde pode estar a rocha faltante no quebra-cabeça que cada grupo procura montar.

O Projeto
Participação das Unidades Cratônicas da América do Sul na Evolução de Supercontinentes, Desde o Mesoproterozóico (nº 98/03621-4); Modalidade Projeto temático; Coordenador Igor Ivory Gil Pacca – IAG/USP; Investimento R$ 292.409,52

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