Os primeiros registros dos impactos da desinformação em processos políticos datam da Roma Antiga (753 a.C.-476 d.C.), quando Otaviano (63 a.C.-14 d.C.) valeu-se de frases curtas cunhadas em moedas para difamar inimigos e se tornar o primeiro governante do Império Romano (27 a.C.-476 d.C.). Mas, como bem recorda o historiador português Fernando Catroga, da Universidade de Coimbra, em artigo publicado em 2020, a emergência de tecnologias digitais fez o fenômeno ganhar novas roupagens, sendo uma de suas características atuais o impulso de ir além da manipulação dos fatos, buscando substituir a própria realidade. Com foco nessa questão, estudo desenvolvido entre abril de 2020 e junho de 2021 por pesquisadores da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP), com financiamento da FAPESP, analisou como organizações jurídicas brasileiras reagiram a informações falaciosas espalhadas por plataformas digitais durante o período eleitoral de 2018. A ausência de consenso em torno do conceito de desinformação e as dificuldades para mensurar suas consequências foram identificadas como centrais para o estabelecimento de uma legislação.
Coordenador do estudo, o jurista Celso Fernandes Campilongo, da FD-USP, observa que há 15 anos a formação da opinião pública era influenciada, majoritariamente, por análises longas e reflexivas, divulgadas de forma centralizada por veículos da grande imprensa. “Hoje a opinião pública tem de lidar com uma avalanche de informações curtas e descontínuas, publicadas por pessoas com forte presença nas mídias sociais. Com isso, de certa forma, os memes e as piadas substituíram o texto analítico”, compara. Ao destacar que o acesso às redes sociais pode ser visto como mais democrático, Campilongo cita a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Tecnologia da Informação e Comunicação (PNAD Contínua – TIC), publicada em abril de 2020 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2019, indicam seus dados, três em cada quatro brasileiros utilizavam a internet, sendo o celular o equipamento usado com mais frequência para essa finalidade. Além disso, o levantamento mostra que 95,7% dos cidadãos do país com acesso à web valiam-se da rede para enviar ou receber mensagens de texto, voz ou imagens por aplicativos.
O jurista lembra que, desde a Proclamação da República, em 1889, as eleições no país têm sido marcadas por manifestações autoritárias. Como exemplo, cita a Comissão de Verificação de Poderes. Criada no Império, a iniciativa ganhou importância durante a Primeira República, principalmente a partir de 1899, por meio de ações promovidas pelo então presidente Manuel Ferraz de Campos Sales (1841-1913). A comissão permitia ao governo central, por exemplo, destituir candidatos da oposição, mesmo quando eleitos, de seus cargos políticos. Para Campilongo, a permanência do chamado voto de cabresto, ou seja, aquele no qual eleitores votam em candidatos indicados por chefes políticos ou por seus cabos eleitorais, e o fato de que somente em 1988 pessoas que não sabem ler nem escrever puderam exercer o direito ao sufrágio são outros exemplos do fenômeno.
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) desaconselha o uso do termo “notícia falsa” – ou, em inglês, fake news. A instituição assinala que a palavra “notícia” diz respeito a informações verificáveis de interesse público. Informações que não observam tal padrão não devem ser denominadas de notícias. No lugar de notícia falsa, a organização sugere o uso do termo “desinformação”, em referência a tentativas deliberadas para confundir ou manipular pessoas via transmissão de dados mentirosos. Por sua vez, o termo “informação incorreta” deve ser aplicado para se referir a conteúdo enganoso disseminado sem a intenção de manipular.
“Considerando esse histórico, as eleições de 2018 foram marcadas por um protagonismo inédito das plataformas digitais de comunicação, incluindo as redes sociais e os serviços de mensageria privada, que se tornaram as bases para a disseminação massiva de desinformação. Analisamos como esse fenômeno repercutiu no sistema jurídico”, conta o jurista Marco Antonio Loschiavo Leme de Barros, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, outro autor do estudo assinado por cinco pesquisadores. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu empresas de financiarem campanhas e partidos, com o objetivo de diminuir o peso do poder econômico nas disputas eleitorais e equalizar a participação de representantes de grupos sociais menos favorecidos. De acordo com Loschiavo, a medida acabou por desestabilizar o mercado eleitoral, de forma que o apoio que antes era financeiro migrou para outros ambientes, mobilizando empresários a custear o envio massivo de informações nas redes sociais, como forma de garantir a manutenção de seus interesses.
Em relação às iniciativas que procuravam regulamentar o ambiente digital antes de 2018, outro integrante da equipe de pesquisa, o jurista Lucas Fucci Amato, da FD-USP, explica que o Marco Civil da Internet, em vigor desde 2014, foi a primeira legislação aprovada com essa finalidade, estabelecendo princípios, garantias, direitos e deveres para quem utiliza a rede, assim como diretrizes à atuação do Estado. Outro marco é a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), vigente desde 2018, que diz respeito ao tratamento de dados pessoais no ambiente digital. Em 2019 o Código Eleitoral passou a proibir o envio em massa por aplicativos de mensagens.
Gustavo Nascimento
Considerando a difusão de informações falaciosas envolvendo questões políticas, Amato recorda que o Código Eleitoral tipifica os crimes de calúnia, difamação e injúria, relativos à divulgação de fatos inverídicos. Além disso, a Lei n° 9.504/1997 prevê o direito de resposta em casos de disseminação de fatos inverídicos ou ofensivos e considera crime a exposição de comentários na internet que ofendam a imagem de candidatos, partidos ou coligações. “Essas leis foram criadas para tentar controlar a atuação de grandes corporações e dizem respeito a situações de calúnia, difamação e injúria que acontecem de forma centralizada. Com a emergência de plataformas digitais, a comunicação passou a ser mais veloz e descentralizada e o controle repressivo previsto em legislações precedentes deixou de funcionar”, observa Loschiavo.
“Por causa dessas características, constatamos que o sistema de Justiça tem tido dificuldades para lidar com fluxos transnacionais de comunicação e regular a difusão de informações falsas no ambiente digital”, diz Amato sobre os resultados do estudo. Ao mapear os recentes esforços dos poderes públicos para controlar a desinformação, os pesquisadores observam que o Judiciário adotou ações cautelosas para proteger o meio digital. “Já no Legislativo, disputas levaram a sucessivas protelações da votação de alguns projetos de lei e à postergação do início da vigência de outras, já aprovadas. Para solucionar casos com acusações envolvendo a divulgação de dados mentirosos, juízes recorreram a princípios gerais indeterminados, em vez de estabelecer regras claras e precisas, e ao auxílio de especialistas em tecnologia e direito digital, incluindo as próprias empresas do setor”, conta o jurista.
Sobre a atuação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Amato destaca que até o começo de 2021 as decisões tomadas foram monocráticas, ou seja, deliberadas por um único juiz e não pelo plenário, o que não contribui para a consolidação de jurisprudência. “Esses elementos evidenciam que o TSE atuou em favor da liberdade de expressão, com a finalidade de evitar situações de censura, em detrimento de uma proposta de maior controle da disseminação de conteúdos falsos em serviços de mensagens privadas e redes sociais”, informa Amato.
Pesquisadores do Centro de Ciências Matemáticas Aplicadas à Indústria (CeMEAI) do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (ICMC-USP), em São Carlos, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP, criaram um algoritmo para detectar informações falsas com 96% de precisão. A ferramenta funciona no site www.fakenewsbr.com, que combina modelos matemáticos criados a partir da exposição a mais de 100 mil notícias publicadas nos últimos cinco anos. “O algoritmo tende a entender textos com tom imperativo ou sentido de urgência, por exemplo, como falaciosos, mas também faz análise do contexto das palavras, antes de fazer a predição sobre se o conteúdo em questão é ou não falso”, informa o estatístico Francisco Louzada Neto, diretor de Transferência Tecnológica do CeMEAI. Segundo ele, a plataforma recebeu mais de 4 mil acessos desde fevereiro de 2022 e deverá ser constantemente atualizada, para acompanhar o contexto de difusão de informações falsas.
Loschiavo destaca que a pesquisa também identificou que o principal meio de combate à desinformação adotado pela Justiça brasileira foi exigir a remoção de conteúdo intencionalmente falacioso, além de determinar que as plataformas passassem a sinalizar o potencial de serem inverídicas determinadas informações. “Os conceitos de notícias falsas e desinformação seguem abertos. Não existe uma definição para eles no direito eleitoral, o que coloca um problema interpretativo aos tribunais”, detalha.
Outro desafio para o sistema de Justiça, segundo Loschiavo, envolve a dificuldade de comprovar o potencial uso lesivo da desinformação e sua capacidade de interferir no resultado de pleitos eleitorais. “Na pesquisa, identificamos que depois de 2018 o Judiciário percebeu que a forma mais eficaz para lidar com desinformação é por intermédio de comportamentos preventivos. Com isso, o TSE passou a convocar as plataformas para fazer acordos que as obrigam a aderir a programas de enfrentamento à desinformação, moderando conteúdos, oferecendo sistemas de checagem de fontes, limitando o repasse de mensagens e bloqueando contas falsas”, detalha.
As discussões desencadeadas pelo contexto eleitoral de 2018 levaram à formulação do Projeto de Lei n° 2.360/2020, conhecido como PL das Fake News, que, atualmente, tramita na Câmara dos Deputados. A iniciativa prevê a necessidade de as plataformas digitais sinalizarem a difusão de conteúdo publicitário para que a audiência possa diferenciá-lo de notícias. O PL também estabelece que as empresas devem ter representantes no Brasil, aptos a prestar esclarecimentos à Justiça quando solicitados. Conforme Loschiavo, no projeto há a previsão de empresas de tecnologia identificarem e advertirem comportamentos abusivos, ou seja, a atuação de contas que simulam a identidade de terceiros para divulgar massivamente conteúdo destinado a desestabilizar o debate público. De acordo com ele, o PL apresenta o conceito de “autorregulação perdulada”, estabelecendo a criação de uma instância mista entre companhias de comunicação digital, integrantes do governo e da sociedade civil para o desenvolvimento conjunto de normas destinadas a regular o ambiente digital. “Porém esse mecanismo traz o risco de que interesses públicos sejam capturados pelos privados”, analisa, ao refletir sobre as fragilidades da proposta legal.
Na mesma linha, o jornalista Ivan Paganotti, pesquisador da Universidade Metodista de São Paulo, considera que a falta de uma definição clara sobre o conceito de desinformação no PL pode ameaçar o direito à liberdade de expressão, a exemplo do que acontece com a legislação de nações como a Malásia. “Na lei do país asiático, a definição de desinformação é tão ampla que todo dado que não tem confirmação jurídica pode ser considerado falso. Desde que a lei entrou em vigor, em 2018, muitas pessoas têm sido penalizadas injustamente”, informa Paganotti, que há quatro anos pesquisa o tema da desinformação em ambiente digital. Com dinâmica similar, ele informa que, na Rússia, a legislação de combate à desinformação está sendo utilizada para cercear notícias críticas à postura do país na guerra contra a Ucrânia.
Projeto
Direito à privacidade e o processo eleitoral brasileiro: uma perspectiva sociológica sistêmica acerca da regulação jurídica da disseminação de notícias falsas a partir das eleições majoritárias em 2018 (nº 19/22197-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Celso Fernandes Campilongo (USP); Investimento R$7.610,00.
Artigo científico
CATROGA, F. O abscôndito da mentira. Revista Estudos Literários – Universidade de Coimbra. v. 10, p. 711-728, 2020.
Livro
SABA, D. T. et al. Fake News e eleições – estudo sociojurídico sobre política, comunicação digital e regulação no Brasil. Porto Alegre: Editora Fi, 2022.
Documento
Jornalismo, fake news e desinformação: Manual para educação e treinamento em jornalismo. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Paris/Brasil: 2019.