Lúcia Garcez Lohmann descobriu bem cedo o prazer de organizar o mundo ao seu redor. Aos 5 anos iniciou uma ordenada coleção de selos de plantas e flores e, aos 16, não teve dúvida sobre qual profissão seguir: faria biologia para se tornar sistemata, especialista na classificação dos seres vivos. Começou estudando uma família de fungos microscópicos que consomem escamas de peixes e répteis. Mas encantou-se mesmo foi com uma família de plantas com flores em forma de sino e um colorido intenso que vai do vermelho-sangue ao branco-reluzente: as bignoniáceas, cerca de 850 espécies com variadas formas e tamanhos que se distribuem pelas regiões tropicais do planeta.
Lúcia viajou o mundo estudando essa família de plantas à qual pertence o ipê-amarelo, árvore símbolo do Brasil, e agora propõe uma classificação mais confiável para elas. Visitou coleções nos Estados Unidos e na Europa e embrenhou-se pelas florestas da América Latina para conhecer de perto onde estão e como são as bignoniáceas. Especializou-se em um grupo de quase 400 espécies dessa família que há décadas aguçam o interesse dos botânicos por três razões. A primeira é que esse grupo reúne a maior variedade das Américas de cipós ou lianas, trepadeiras de caule amadeirado que crescem enroscadas ao tronco das árvores, espalham-se por suas copas em busca da luz necessária para sobreviverem.
O outro motivo é que várias dessas plantas, que tecem redes impenetráveis no interior das florestas e conectam a copa das árvores ao chão, servindo de ponte para macacos e preguiças, têm potencial medicinal. Alguns povos latino-americanos as usam contra diarréia, malária, hepatite, leishmaniose e câncer. Em alguns países, servem de tempero por terem aroma e sabor de alho ou cravo, além de serem úteis para a construção de móveis e casas. Mas Lúcia sentiu-se especialmente atraída por essas plantas porque formavam um grupo com uma intricada história evolutiva cujas relações de parentesco desafiam os botânicos há quase dois séculos.
Além da aparência
Melhor, desafiavam. Em um artigo publicado em 2006 no American Journal of Botanny, Lúcia apresentou a árvore genealógica que desvenda a história evolutiva desse grupo. Agora, em um artigo de 400 páginas a ser publicado nos Annals of the Missouri Botanical Garden, ela apresenta uma nova classificação que reorganiza esse grupo das bignoniáceas com base em critérios que vão além da semelhança de flores e frutos, como era feito até recentemente, e promete desatar os nós desse cipoal. A partir da análise do material genético dessas plantas, ela redistribuiu 400 espécies em 22 gêneros. O mais abrangente, Adenocalymma, compreende 78 espécies de cipós e arbustos das regiões tropicais das Américas. Com a nova classificação, alguns gêneros, como o Fridericia, passaram a abarcar um número maior de espécies – antes era uma, hoje são 69. Só os gêneros Callichlamys e Manaosella continuam com uma espécie cada um: a Callichlamys latifolia, trepadeira de flores amarelas, encontrada do Brasil ao México; e a Manaosella cordifolia, descrita em Manaus.
É um avanço e tanto em relação à classificação anterior, em que havia 47 gêneros, 30 deles com até três espécies. Para quem trabalha com classificação, um sistema com muitos gêneros agrupando poucas espécies é de pouca utilidade: quase não fornece informação sobre o grau de parentesco, impedindo que se façam previsões sobre as espécies incluídas em cada gênero. Sem esse tipo de informação, pouco se descobre sobre quando e onde essas plantas surgiram ou como e por que se tornaram bem-sucedidas e se disseminaram por toda a região tropical das Américas, originando espécies tão distintas quanto a trepadeira da Caatinga Neojobertia brasiliensis, de flores amarelas, ou a Adenocalymma cladotrichum, cipó de caule grosso que produz um fruto em forma de vagem com meio metro de comprimento.
No artigo dos Annals of the Missouri Botanical Garden, 180 espécies recebem um novo nome porque trocaram de gênero. Há ainda uma detalhada ilustração de cada gênero e mapas com a distribuição geográfica das 400 espécies. “Espero que não seja mais necessário refazer essa classificação e, a partir de agora, se consiga de fato avançar na investigação sobre a origem, a evolução e a diversificação desse grupo de plantas, o mais rico em variedades de cipós”, comenta a botânica, professora da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Jardim Botânico de Missouri, Estados Unidos, onde trabalhou na coleção de outro estudioso dessas plantas, o botânico Alwyn Gentry, morto em 1993.
Desde que o botânico inglês David Don propôs a primeira classificação desse grupo de bignoniáceas em 1838, foram 170 anos andando em círculos. “Cada um que se propunha a estudá-las criava um novo sistema de classificação baseado em critérios subjetivos e não saía do lugar”, explica Lúcia, que, aos 33 anos, vem se tornando referência internacional no assunto. A nova classificação promete ser duradoura porque se vale de uma ferramenta mais adequada, só disponível recentemente: a sistemática molecular. Esse método permite organizar as plantas por grau de parentesco com base em características genéticas, e não mais apenas pela comparação das formas de flores, frutos e sementes.
“Essa nova classificação permitirá, por exemplo, a busca mais bem orientada de compostos com potencial farmacológico”, afirma Lúcia. Ela avaliou a proximidade entre as espécies do grupo comparando mutações de dois genes: o ndhF, associado ao armazenamento de energia solar na forma de açúcares, e o PepC, ligado à quebra desses açúcares e à liberação de energia. Esses genes desempenham um papel essencial à sobrevivência e permitem avaliar o parentesco entre as espécies em uma escala de tempo de até milhões de anos – chegam a ser idênticos em espécies evolutivamente próximas e apresentam diferenças à medida que o parentesco diminui. “Esses genes se encontram em regiões distintas do genoma e, ainda assim, contam uma história coincidente”, diz Lúcia. “Por isso é alta a probabilidade de que a nova árvore genealógica represente de fato o parentesco entre essas plantas.”
Primeiras respostas
Nos 13 anos em que percorreu as matas do Brasil e de outros seis países latino-americanos (Costa Rica, Suriname, Guiana Francesa, Peru, Bolívia e Panamá), Lúcia caminhou durante dias, atravessou rios e, quando preciso, escalou árvores de até 40 metros à procura de suas lianas. Coletou amostras de quase mil exemplares, hoje armazenadas nos herbários da USP e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e nos jardins botânicos do Rio de Janeiro, de Nova York e Missouri. Em um trabalho de formiguinha, marcou o ponto de cada coleta com um aparelho de GPS e aos seus dados acrescentou os de outras coleções, gerando mapas com a distribuição das espécies. Sobrepostos, esses mapas revelam um dado importante para a conservação dessas plantas: nem sempre as áreas de vegetação natural que deveriam ser preservadas por abrigarem espécies raras, de grande diversidade genética ou de importância evolutiva estão legalmente protegidas.
Ao cruzar seus dados com os de fósseis, Lúcia conseguiu reconstituir a história evolutiva do grupo. Agora já se pode dizer quando e onde esses cipós surgiram: foi no Brasil, na região hoje ocupada pela Mata Atlântica, há 40 milhões de anos – quando os continentes já tinham a forma atual e os mamíferos começavam a se disseminar pela Terra. Mas não foi a única vez. Plantas com características de cipós apareceram em três outros momentos entre as bignoniáceas, nos Andes, na Áfria e na Ásia. Mas só o grupo da Mata Atlântica foi tão bem-sucedido e se diversificou tanto, gerando as 400 espécies conhecidas.
Os achados comprovaram ainda que o antigo método de classificação, baseado na cor das flores ou forma dos frutos, era de fato falho. Cipós ou arbustos com flores amarelas surgiram em seis momentos diferentes nesse grupo, em gêneros não-aparentados. “Esse dado confirma que o uso exclusivo de critérios morfológicos pode levar a sistemas de classificação não confiáveis”, diz Lúcia. Outra dúvida que se desfaz é a de quem surgiu primeiro: os cipós, hoje a forma mais abundante, ou os arbustos, atualmente raros” Segundo Lúcia, as primeiras espécies desse grupo se desenvolveram como cipós em florestas úmidas. Possivelmente, foram bem-sucedidos nesses ambientes de pouca luz por terem desenvolvido um caule com anatomia peculiar, mais flexível, e gavinhas, filamentos que se enroscam em outras árvores e lhes permitem alcançar as partes altas da floresta. Só entre 5 milhões e 10 milhões de anos depois de esses cipós também se espalharem por regiões de clima mais seco e quente como o atual Cerrado é que surgiram os arbustos.
Mas a anatomia do caule e as gavinhas não explicam como essas plantas se diversificaram tanto e dominaram as regiões tropicais do globo. Parte da resposta pode estar ligada à forma das sementes. As espécies mais comuns nas florestas produzem sementes com uma fina membrana que se estende para lados opostos, como asas abertas. Para Lúcia, esse formato favorece a dispersão nos ambientes úmidos. Quando os frutos secam e se abrem, elas caem do alto girando como hélices de helicóptero. Já nas savanas são mais comuns as sementes arredondadas semelhantes a discos voadores, aparentemente mais adequadas à dispersão em áreas secas. “Quando sopra o vento, essas sementes devem voar como se fossem frisbees, os discos plásticos com que as pessoas brincam nas praias”, explica.
Como esse grupo de bignoniáceas é muito diverso e abundante nas florestas tropicais, acredita-se que sirva de modelo para entender o que pode ocorrer com as 300 mil espécies de plantas com flores (angiospermas). Reunindo informações sobre a distribuição, a forma e a ecologia dessas 400 espécies aos dados de clima, solo e temperatura, Lúcia tenta agora prever o que acontecerá com a distribuição delas caso a temperatura do planeta aumente alguns graus. Ela ainda não tem a resposta, mas arrisca um palpite: é bem provável que as florestas que hoje abrigam a maior diversidade de plantas do planeta se transformem em imensos cipoais, uma vez que essas bignoniáceas crescem mais rapidamente do que algumas árvores e são as primeiras a ocupar áreas desmatadas.
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