É bem provável que, ao ver este título, O idílio degradado: Um estudo do romance Til, alguns leitores se perguntem: como e por que escrever um livro sobre José de Alencar? Paula Maciel Barbosa oferece uma resposta consistente. Concentrou-se em Til, romance pouco lido e pouco comentado pela crítica, e realizou uma escavação sistemática para seguir suas raízes, tanto as visíveis como as profundas. Escolheu uma forma de exposição que combina uma direção do mais geral ao mais singular a um movimento semelhante ao da dobradiça para comentar as relações entre os elementos de composição da obra e os diversos contextos por eles mobilizados. Assim, explicita sua filiação crítica a Antonio Candido e a opção pela escrita generosa que acolhe com igual respeito o interesse pela história do Brasil e pela literatura.
As complexas relações sociais capturadas pelo enredo de Til são o foco da primeira e mais extensa parte do livro que historiciza o texto, extraindo dele uma leitura da crise do Segundo Reinado, operação que requer alguns movimentos. A autora apresenta o romance referindo-se a seus principais acontecimentos e personagens bem como ao tempo e ao espaço em que tudo ocorreu: no período de 1826 a 1846, em uma fazenda às margens do rio Piracicaba, interior de São Paulo. Com esses elementos básicos, Alencar pôs em ação a propriedade agrícola produtiva e Paula Barbosa põe em destaque o fazendeiro de café, o trabalho escravo, os imigrantes, o capanga e ampla variedade de homens livres e pobres; adota a classificação de “romance fazendeiro”, proposta por Antonio Candido, e explora os diferentes contextos em que Til se insere. No plano literário, dialogando com a fortuna crítica, a autora demarca as singularidades da obra em foco diante de outros romances do escritor, comparando-os aos abrigados na tipologia de “regionalistas” e a alguns filiados aos demais tipos, pois considera procedimentos literários recorrentes na ficção de Alencar. Assim, a autora postula haver certa continuidade de traços das obras indianistas nas regionalistas ou recursos semelhantes de construção das personagens femininas que povoam obras de Alencar inscritas em outras tipologias.
A passagem para um âmbito mais amplo da análise de Til é feita por meio do exame das circunstâncias de sua própria composição, em torno de 1870. Nesse movimento o estudo considera a dimensão política do projeto de Alencar para sua ficção e expõe as contradições do romance, das polêmicas literárias e das políticas manifestas em seus textos literários ou nos escritos de intervenção em debates acalorados então em pauta, como abolição da escravidão, sistema de governo ou medidas de política econômica. Mas a mais interessante linha de leitura de Til desenvolvida pela autora é o exame do contexto social que dá visibilidade à força estruturadora da propriedade da terra, e não do trabalho na terra, no processo de exclusão, inserção e ascensão social, econômica e política do conjunto dos atores envolvidos na produção agrícola exportadora, modelo de longa história no Brasil.
As duas outras partes do livro refinam a análise dos recursos literários utilizados por Alencar na obra. Uma delas, a segunda do livro, detém-se nos personagens agrupando-os em conformidade com as funções sociais a eles atribuídas no enredo. Em torno de conflitos que se manifestam em confrontos e dissimulações, alinham-se em dois grupos: o dos que integram a elite e o constituído por diferentes modos de dependência. Na terceira parte, o estudo dos recursos literários ganha mais densidade pelo método adotado. A autora escolhe episódios da obra, propõe a identificação das fontes que os inspiram e examina como Alencar delas se apropriou. Merece destaque a relação estabelecida entre as passagens de Til e o romance gótico inglês ou com os cantos populares entoados por aquele contingente de homens livres que percorrem o interior do país ou os que advêm de cerimônias e festas africanas. No trânsito das fontes ao enredo do romance, as cenas adquirem, para a autora, o estatuto de fantasmagorias que figuram a violência das relações sociais, quase sempre exercida sobre o corpo dos escravos e nos espaços a eles destinados. É a violência que degrada a paisagem do campo como lugar idílico.
Valeria De Marco é professora do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
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