Em 1947, ao ser contratado pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) para duas expedições às aldeias Kaapor, na fronteira do Pará com o Maranhão, o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) percebeu que, apesar de conhecer um pouco da língua daquele povo, precisaria de um intérprete para compreender mais a fundo questões como genealogia e rituais. Foi o intérprete sertanista João Carvalho que o auxiliou nessa tarefa. “João é nosso intérprete e nessas horas de recepções sociais seu papel é tão importante quanto nas de trabalho, de modo que tem de falar muito para compensar meu silêncio”, escreveu Ribeiro em seus relatos da expedição compilados em Diários índios. Os Urubus-Kaapor (Companhia das Letras, 1996).
A parceria está registrada no livro Fotografias de intérpretes: Em busca das vidas perdidas, do tradutor britânico John Milton, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Lançada em 2022 no Brasil pela editora Lexikos, a obra saiu em inglês no final de 2024 pela Cambridge Scholars Publishing, do Reino Unido. Na publicação, o pesquisador reúne histórias de intérpretes de vários lugares do mundo, a exemplo do russo Viktor Sukhodrev (1932-2014), que trabalhou na diplomacia soviética durante a Guerra Fria (1947-1991). Segundo o livro, o presidente norte-americano Richard Nixon (1913-1994) confiava mais em Sukhodrev do que na própria equipe, já que o intérprete estava distante dos jogos de poder da Casa Branca.
Um dos capítulos é dedicado aos intérpretes indígenas do Brasil, como Megaron Txucarramãe, tradutor e intérprete do tio, Raoni Metuktire, cacique do povo Caiapó e uma das principais lideranças indígenas do país. Em suas interpretações, Megaron, que dirigiu o Parque Indígena do Xingu de 1985 a 1989, não faz traduções literais: inclui explicações e tece considerações. “Por ser também uma liderança indígena, sua presença não tem apenas valor semântico, mas simbólico”, considera Milton.
Os intérpretes trabalham com linguagem oral, de forma instantânea e simultânea, em eventos de toda natureza, das conferências científicas aos encontros políticos. “Já os tradutores, em geral, possuem um tempo maior para editar e refletir sobre determinado material escrito. Mas o papel de ambos é ser intermediário de diferentes culturas”, explica Milton. “Em termos literários, muito se fala dos escritores, mas pouco se olha para o trabalho dos tradutores. Acho importante tirar essas trajetórias dos bastidores, pois elas podem ajudar a iluminar aspectos históricos e do fazer literário, por exemplo.”
Iniciada em 2017, a coleção Palavra do tradutor tem esse objetivo. “Nossa ideia é divulgar o trabalho de tradutores que atuam no Brasil e de tradutores estrangeiros que traduzem literatura brasileira”, conta Dirce Waltrick do Amarante, do Curso de Pós-graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que está à frente da iniciativa ao lado de outros professores da mesma universidade. Desde então o projeto já publicou 11 livros com entrevistas e dados biográficos de tradutores de diversos gêneros textuais, como ficção, poesia e teatro. Em 2018, saíram os dois primeiros volumes pela editora Medusa. Um deles é dedicado a Aurora Fornoni Bernardini, do Departamento de Letras Orientais da USP, conhecida pelas traduções do italiano e do russo para o português. O outro é dedicado a Donaldo Schüler, professor aposentado de língua e literatura grega da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Todos os títulos podem ser baixados de forma gratuita no site da UFSC.
Segundo a tradutora Luciana Carvalho Fonseca, professora do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP, os estudos contemporâneos de teoria da tradução foram, em grande parte, estabelecidos a partir da noção de equivalência. Um de seus expoentes na década de 1960 foi o linguista norte-americano Eugene A. Nida (1914-2011), que a aplicava na tradução da Bíblia. “Nessa concepção, a tarefa de tradução é vista como a transposição do texto de uma língua para outra, com uma grande reverência à obra original”, comenta a pesquisadora. Ao longo do tempo, prossegue Fonseca, surgiram outras propostas. É o caso, por exemplo, do funcionalismo, que admite adaptações, a exemplo de cortes, inserções, notas de rodapé e textos introdutórios. Ou então do paradigma dos estudos descritivos da tradução, que olham para o texto traduzido a partir de aspectos como sua contextualização socio-histórica, a recepção, a circulação e sobre a figura de tradutores e tradutoras.
Tradutores e intérpretes intermedeiam diferentes culturas
Nos últimos anos, Fonseca vem se debruçando sobre o percurso de Maria Velluti (1827-1891), tradutora, atriz e diretora portuguesa que emigrou para o Brasil em 1847. A história começou após uma conversa informal de Fonseca com o pesquisador Dennys Silva-Reis, da Universidade Federal do Acre (Ufac), sobre o apagamento das mulheres na história da tradução brasileira. A partir dessa questão, a dupla levantou quase 60 nomes de tradutoras na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e escreveu o artigo “Nineteenth century women translators in Brazil: From the novel to historiographical narrative” (2018). Entre eles, estava o de Velluti. “Ela era muito citada pelos jornais. Traduziu mais de 40 peças e apresentou o teatro realista francês às companhias brasileiras da época. Isso me chamou a atenção e quis saber mais a respeito de sua trajetória”, conta Fonseca. Em suas buscas, a pesquisadora encontrou críticas na imprensa da época, algumas delas escritas por Machado de Assis (1839-1908), com elogios ao trabalho de Velluti.
“Um dos grandes desafios para quem pesquisa esse campo é localizar arquivos e acervos que documentem as contribuições desses profissionais, desde os bastidores das editoras até correspondências e manuscritos”, constata Bruno Gomide, professor de literatura e cultura russa da USP. Ele coordena um projeto de pesquisa, financiado pela FAPESP, voltado aos tradutores de textos russos no Brasil. Uma das linhas investiga a produção e a trajetória de vida de Boris Schnaiderman (1917-2016), nascido na Ucrânia, Tatiana Belinky (1919-2013) e Valeri Pereléchin (1913-1992), oriundos da Rússia, além do húngaro Paulo Rónai (1907-1992). “Todos eles se radicaram no Brasil. Belinky e Schnaiderman na infância, ambos nos anos 1920, enquanto Rónai e Pereléchin vieram mais tarde, respectivamente, nas décadas de 1940 e 1950”, conta o pesquisador, que em agosto passado organizou o seminário Histórias de tradutores e tradutoras, no Centro MariAntonia da USP, na capital paulista.
No evento, Gomide falou sobre Schnaiderman, famoso pelo rigor com que verteu contos, romances e poemas diretamente do russo para o português a partir dos anos 1940 (ver Pesquisa FAPESP nº 236). “Ele foi um dos primeiros a ter uma trajetória contínua, sistemática e profissional de tradução da literatura russa não apenas no Brasil, como na América Latina”, afirma o pesquisador. Além disso, se destacou no campo institucional, ao contribuir para a formação do curso de língua russa na USP, em 1961. “Schnaiderman traduziu para o português não apenas os clássicos literários, como também teóricos russos com propostas inovadoras em diversas áreas, a exemplo do linguista Mikhail Bakhtin [1895-1975]”, acrescenta Walter Carlos Costa, da UFSC e também do Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal do Ceará (UFC). “E teve grande contato com os escritores brasileiros: trocou cartas com Dalton Trevisan [1925-2024] e foi amigo de Rubem Fonseca [1925-2020]”, prossegue o pesquisador, que atualmente investiga a participação de Schnaiderman no Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo
Rónai, por sua vez, foi perseguido pelos nazistas e passou seis meses em um campo de trabalhos forçados na Hungria durante a Segunda Guerra Mundial antes de se mudar para o Brasil, em 1941, a convite do governo Getúlio Vargas (1882-1954). “Ele começou a estudar português, sozinho, em 1937 e cerca de dois anos mais tarde publicou Mensagem do Brasil, antologia de poemas brasileiros traduzidos para o húngaro, com apresentação do embaixador brasileiro na Hungria”, conta a pesquisadora independente Zsuzsanna Spiry, que defendeu tese de doutorado em 2016 sobre o intelectual na FFLCH-USP. “Rónai chegou ao Brasil em março de 1941 e em julho daquele ano ministrou palestra na Academia Brasileira de Letras.”
De acordo com a pesquisadora, o tradutor participou ativamente da vida intelectual brasileira. “Entre outras coisas, escreveu artigos de crítica literária para os principais jornais do país e trabalhou como editor, inclusive dos livros de Guimarães Rosa [1908-1967], de quem foi muito próximo”, relata Spiry, organizadora do livro Rosa & Rónai: O universo de Guimarães por Paulo Rónai, seu maior decifrador (Bazar do tempo, 2020) com a jornalista e editora Ana Cecilia Impellizieri Martins. Um dos trabalhos mais significativos de Rónai foi a organização de Mar de histórias: Antologia do conto mundial (Editora Nova Fronteira), com o filólogo Aurélio Buarque de Holanda (1910-1989). Parte dos textos da coletânea de 10 volumes, iniciada em 1945 e concluída em 1990, ganhou tradução da dupla. “Rónai dominava não apenas o russo, como outros oito idiomas, a exemplo do latim, francês e alemão”, diz Spiry.
Outro aspecto de sua obra que merece destaque, segundo a pesquisadora, são os ensaios e reflexões sobre a prática tradutória reunidos em títulos como Escola de tradutores (Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Saúde, 1952) e Tradução vivida (Editora Nova Fronteira, 1974). Amarante, da UFSC, concorda. “Muitos de seus textos anteciparam debates sobre questões centrais na teoria da tradução nos dias de hoje, como estrangeirização e tradução mecânica [realizadas por programas de computador]”, comenta.
Já Belinky ficou conhecida como escritora de livros infantis e pela adaptação de O sítio do pica-pau amarelo, de Monteiro Lobato, para a série exibida pela TV Tupi entre 1952 e 1963. “No entanto, ela também verteu para o português diversos livros da literatura russa, que englobam obras para as crianças e de autores clássicos e contemporâneos”, diz Cecilia Rosas, que integra o grupo de pesquisa Exílio e Tradução, coordenado por Gomide, na USP. É o caso de No degrau de ouro (1987), de Tatiana Tolstáia, título publicado no Brasil em 1990 pela Companhia das Letras, que ganhou reedição no ano passado pela Editora 34.
Dentre os quatro, Pereléchin é o nome menos conhecido do público brasileiro. O tradutor, que era também poeta e crítico, viveu por quatro décadas no Brasil. “Ele era fluente em inglês, mandarim e português”, conta Gomide. Dono de uma história de vida conturbada, Pereléchin escreveu poesia homoerótica, porém proferiu também comentários antissemitas e elogios à ditadura militar (1964-1985). Morreu pobre e cego no Retiro dos Artistas, no Rio de Janeiro.
De acordo com Gomide, um dos objetivos da pesquisa é buscar pontos de convergência nos percursos dos quatro tradutores. Entre as décadas de 1960 e 1980, por exemplo, Rónai e Schnaiderman trocaram correspondência e compartilharam observações sobre o fazer tradutório. Além disso, o primeiro participou da banca de tese de livre-docência de Schnaiderman em 1974, na USP, publicada posteriormente em 1982 pela editora Perspectiva sob o título Dostoiévski: Prosa e poesia. “Ao longo da vida, eles concordaram e discordaram em diversos momentos”, finaliza Gomide.
A reportagem acima foi publicada com o título “Vidas traduzidas” na edição impressa nº 347, de janeiro de 2025.
Projeto
Exílio e tradução no Brasil: Os textos russos (n° 22/05910-4); Modalidade Auxílio à pesquisa ‒ Regular; Pesquisador responsável Bruno Barretto Gomide (USP); Investimento R$ 355.408,64.
Livro
MILTON, J. Fotografias de intérpretes: Em busca das vidas perdidas. São Paulo: Lexikos Editora, 2022.
Capítulo de livro
GOMIDE, B. B. Translation Russian literature in Brazil: Politics, emigration, university and journalism (1930-1974). In: MAGUIRE, M. e McATEER, C. Translating Russian literature in the global context. Cambridge, Reino Unido: Open Book Publishers, 2024.
Artigos científicos
FONSECA, L. C. e SILVA-REIS, D. Maria Velluti’s theater translations in nineteenth-century Brazil: A mise-en-scène. Revista da Associação Brasileira de Literatura Comparada. n. 34, p. 23-46. 2018.
FONSECA, L. C. Mulheres de imaginação ardente e leitores terríveis: Maria Velluti, uma traductora do século XIX. Boletim 3×22. p. 108-17. 2021.
GOMIDE, B. B. Le texte littéraire russe et l’émigration: Les trajectoires parallèles de Schostakovsky et Schnaiderman. Brésil (s) – Sciences Humaines et Sociales. v. 22, p. 1-20. 2022.