HÉLIO ALMEIDAUm fungo encontrado em vegetais e uma bactéria originária da Amazônia são a base de sistemas nanobiotecnológicos com potencial para uso no transporte e entrega de medicamentos dentro do organismo humano e até na produção de tecidos com propriedades bactericidas. Do fungo Fusarium oxysporum, que provoca a morte das plantas após infectar a raiz e causa perdas significativas a culturas brasileiras como a da banana-prata e ouro, um grupo de pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) conseguiu, por meio da ação de dois componentes presentes no fitopatógeno, a enzima nitrato reductase e o composto orgânico quinona, transformar íons de prata (Ag+) em nanopartículas de prata metálica, que apresentam forte ação bactericida.
O emprego dessas nanopartículas em tecidos que ajudam a cicatrizar lesões é uma das possíveis aplicações do material observado apenas por meio de microscópios eletrônicos de transmissão ou de varredura. “Estamos avaliando a aplicação dessas nanopartículas em curativos feitos de gaze, ou tecidos semelhantes, impregnados com prata que poderiam ser indicados para pessoas diabéticas, com freqüentes ulcerações nos pés”, diz o professor Oswaldo Luiz Alves, coordenador do Laboratório de Química do Estado Sólido, que desenvolveu a pesquisa em parceria com o professor Nélson Duran, coordenador do Laboratório de Química Biológica. “Como as partículas são muito ativas, elas acabam destruindo as substâncias indesejáveis.”
Outra aplicação na linha de nanobiotêxteis prevê a produção de tecidos anticheiro, indicados para meias, por exemplo. “Nos Estados Unidos existem no mercado meias bactericidas impregnadas com nanopartículas de prata, mas o processo de obtenção é completamente diferente do nosso”, relata o pesquisador.
Compostos associados
A proposição do mecanismo pelo qual as nanopartículas de prata são formadas a partir do fungo F. oxysporum resultou em uma patente, assim como a aplicação do processo para tecidos impregnados com essas partículas de prata, ambas depositadas pela Agência de Inovação da Unicamp (Inova). “A pesquisa permitiu definir uma plataforma para aplicação dessas partículas com outros sistemas envolvendo várias famílias de compostos, como antibióticos e antimaláricos, associados com nanopartículas metálicas”, diz Alves.
O mecanismo utilizado para chegar às pequeníssimas partículas de prata teve como base um processo químico conhecido por óxido-redução, que basicamente promove a transferência de elétrons entre moléculas, íons e átomos neutros. Os pesquisadores usaram uma solução contendo nitrato de prata misturada a cepas selecionadas do fungo, seleção necessária porque nem todas as linhagens possuem a enzima nitrato reductase, essencial para que ocorra a reação de óxido-redução.
As quinonas, compostos orgânicos presentes em plantas como o ipê-roxo, por exemplo, também são importantes nesse processo, porque elas têm grande facilidade de transferência de elétrons. Na medida em que se forma a prata metálica, a cor da solução muda do amarelo-claro para o marrom-escuro. A banda de absorção decorrente da redução dos íons de prata para prata metálica é observada pela técnica de espectroscopia de absorção ultravioleta-visível, que permite associar os espectros ópticos às espécies químicas presentes.
A pesquisa foi publicada na conhecida revista da área de nanobiotecnologia Journal of Nanobiotechnology, onde o artigo figurou entre os dez mais acessados no ano passado. O projeto contou ainda com a participação de Priscyla Marcato, também da Unicamp, e de Gabriel de Souza e Elisa Esposito, ambos do Laboratório de Química Biológica da Universidade de Mogi das Cruzes.
A perspectiva dos pesquisadores na atual fase é trabalhar com outros fungos, bactérias, microorganismos e sistemas vegetais que tenham capacidade de transformar íons de prata em nanopartículas de prata metálica. Resultados preliminares de pesquisas realizadas recentemente apontam que é possível obter esse material a partir de extratos de algumas flores bem comuns na região de Campinas. “Isso nos leva a um entendimento que podemos executar o mesmo tipo de processo de redução do metal sempre que houver a presença da enzima e de substâncias redutoras”, conta Alves.
A outra linha de pesquisa, desenvolvida também em parceria entre os dois laboratórios da Unicamp, trata do desenvolvimento de um sistema nanobiotecnológico para combater células cancerígenas que envolve nanopartículas de ouro e a violaceína, o princípio ativo da Chromobacterium violaceum, bactéria encontrada em grande quantidade no rio Negro, no Amazonas, e conhecida por sua capacidade de combater doenças como o mal de Chagas e a leishmaniose.
Para o transporte da violaceína, um pigmento de cor violeta insolúvel em água, foi escolhida a ciclodextrina, um anel de moléculas de glicose que tem a forma de um balde, capaz de armazenar diversas substâncias. Mas testes feitos in vitro mostraram que a associação entre a violaceína e a ciclodextrina não agia de forma seletiva, isto é, matava além das células cancerígenas também as normais.
Pigmento seletivo
A solução encontrada para levar as moléculas do fármaco até as células com tumor foi agregar nanopartículas de ouro ao composto. Nesse caso, as nanopartículas são formadas por um mecanismo diferente do proposto para os fungos. O processo de obtenção envolve uma substância que contém ouro, como o ácido tetracloroáurico, a ciclodextrina e um agente redutor, como o boridreto de sódio. O sistema nanobiotecnológico proposto, além de resolver o problema da insolubilidade da violaceína, também conferiu seletividade ao pigmento, o que significa que ele mata apenas as células cancerígenas, capacidade que a maioria dos quimioterápicos empregados atualmente não tem apresentado.
Os pesquisadores agora estão tentando entender o mecanismo que faz com que as nanopartículas sejam atraídas para as células cancerígenas, como as leucêmicas testadas in vitro. Os primeiros ensaios com animais, dentro dos protocolos de testes de novos medicamentos, estão previstos para ter início no segundo semestre e podem contemplar outras células cancerígenas além das leucêmicas. O projeto teve ainda a participação dos pesquisadores Iara Gimenez, Maristella Anazetti, Patrícia Melo, Marcela Haun e Marcelo Mantovani de Azevedo. O desenvolvimento foi publicado na revista Journal of Biomedical Nanotechnology, no final de 2005.
O caminho para chegar a esses novos sistemas biotecnológicos, que usam como meios de transporte as nanopartículas de ouro e prata, teve início em 1989, quando Alves e sua equipe começaram a trabalhar com nanopartículas de semicondutores chamadas de quantum dots, ou pontos quânticos, estabilizadas dentro de diferentes famílias de vidros.
O desenvolvimento desses nanocompósitos baseados em vidro e nanopartículas destinava-se basicamente à área de telecomunicações, ou seja, amplificadores ópticos e materiais para óptica não-linear e fotônica. A privatização da Telebrás, órgão do governo que respondia pelo sistema de telecomunicações brasileiro, e a conseqüente interrupção no desenvolvimento de novos materiais levaram os pesquisadores a procurar outros caminhos para aplicar a experiência acumulada no estudo dos pontos quânticos, como as pesquisas com nanopartículas metálicas.
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