Com exceção dos abstêmios fervorosos, pouca gente consegue atravessar as festas de fim de ano sem provar ao menos um copo de bebida alcoólica. Nos próximos dias, é quase certo que alguém lhe estenderá uma taça de espumante – ou de champanhe, a original francesa, se as finanças familiares estiverem no azul e o dólar, bem comportado – para um brinde. Num almoço ou jantar com ares de comemoração, aparecerá um cálice de vinho para lhe fazer companhia. E, num encontro informal com os amigos, vai se materializar sobre a mesa uma cervejinha, o fermentado preferido pelos brasileiros. Beber moderadamente não faz mal à saúde. Mas é preciso ficar atento: tão ruim quanto exagerar na dose é consumir produtos de qualidade ou autenticidade duvidosa. Comprar gato por lebre. O problema é que, no mundo das bebidas (e dos alimentos), nem sempre é fácil distinguir um produto fraudado – a não ser que você seja um especialista no assunto. Ou conte com a ajuda dos átomos de carbono, o elemento químico mais abundante na Terra.
Nos últimos cinco anos, pesquisadores brasileiros passaram a estudar o grau de adulteração em produtos nacionais e estrangeiros a partir da análise da quantidade existente, em seu conteúdo, da forma estável mais pesada do átomo de carbono, o isótopo denominado carbono 13 (13C), muito mais raro do que o leve carbono 12 (12C). A relação entre o número de átomos desses dois tipos de carbono pode denunciar a adoção de alguns procedimentos ilegais, ou no mínimo não muito divulgados, durante a fabricação de bebidas. De acordo com os ingredientes usados em sua formulação, cada tipo de produto deve apresentar uma assinatura isotópica padrão, que reflete a proporção de átomos do escasso carbono 13 em relação aos do abundante carbono 12.
Se, numa amostra de bebida, esse índice, denominado d13C (delta carbono 13), se distancia de sua assinatura isotópica padrão, é sinal de que o produto foi alvo de alguma intervenção heterodoxa. De traquinagens etílicas, como o uso excessivo de açúcar de cana para incrementar o teor alcoólico de vinhos ou o farto emprego de milho para substituir o malte de cevada nas cervejas. “Os isótopos não mentem jamais”, afirma o engenheiro agrônomo Luiz Martinelli, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo (Cena/USP), em Piracicaba, interior paulista. “Com eles, ficou mais fácil pegar adulterações.”
Autenticidade arranhada
Recentemente, Martinelli coordenou ou participou de quatro estudos que se utilizaram dos isótopos estáveis de carbono para aferir possíveis adulterações em vinhos, cervejas e brandies (conhaques finos). Os resultados desses trabalhos são razoavelmente preocupantes, embora não alarmantes. Não é preciso banir o álcool da ceia da Natal ou da passagem do Ano-Novo. As alterações flagradas nos estudos não aumentam (nem diminuem) os riscos à saúde inerentes ao consumo excessivo de álcool. Elas suscitam questões de outra ordem. Algumas manipulações simplesmente ferem a legislação brasileira. Outras arranham a autenticidade e as características naturais dos produtos. E outras ainda apenas explicitam métodos de produção que raramente são divulgados de forma clara para o consumidor.
Alguns exemplos das artimanhas documentadas pelas análises com os isótopos estáveis de carbono, um método reconhecido oficialmente pelo Ministério da Agricultura na análise de vinhos brasileiros e bebidas derivadas de uvas desde fevereiro de 2001:
– Cerca de três quartos do gás carbônico ou dióxido de carbono (C02) presente em três espumantes brasileiros, do tipo meio doce, cujas borbulhas deveriam ser fruto da fermentação natural de seus açúcares, foram provavelmente injetados de forma industrial nas garrafas. Um procedimento perfeitamente legal – desde que o fabricante rebaixe o produto à categoria inferior de bebida gaseificada em vez de espumante. Um produtor português foi ainda mais longe. As bolinhas de seu espumante, do tipo brut (não doce), continham, em parte, gás carbônico proveniente do ar, uma evidência de falhas em seu processo de elaboração. O estudo analisou 75 espumantes de dez países, dos quais 33 foram elaborados no Brasil, e foi publicado em março deste ano no Journal of Agricultural and Food Chemistry.
– Pelo menos um quarto de 228 garrafas analisadas de marcas comerciais de vinho nacional exibia quantidade acima da permitida pela legislação de álcool não derivado da fermentação do açúcar naturalmente presente no mosto (suco) de uva. Nesses casos, constatou-se que mais de 3 graus Gay-Lussac (G. L.) – medida do teor alcoólico – de todo o etanol presente nessas bebidas derivavam de uma quantidade generosa demais – e, por isso, ilegal – de açúcar de cana adicionada ao mosto de uva durante a fermentação. Chama a atenção o fato de que apenas pouco mais de um quarto das bebidas que estavam fora das especificações – 17 de 64 – pertencia à categoria mais popular dos chamados vinhos de mesa. A maioria das amostras com excesso de álcool de cana-de-açúcar veio de alguns renomados produtores de vinhos finos do Rio Grande do Sul. Nessa categoria legal, os produtos têm de ser feitos exclusivamente com variedades de uva da espécie Vitis vinifera, ideais para fabricar vinho. A adulteração se mostroumais comum nos vinhos brancos do que nos tintos. De positivo, resta a constatação de que quase 75% dos vinhos analisados estavam dentro da lei, o que é mais uma obrigação do que propriamente um mérito. “Não sei se a situação melhorou ou piorou em termos de adulterações”, diz Danilo Cavagni, presidente da União Brasileira dos Vitivinicultores (Uvibra). “Mas os testes com isótopos são um avanço. Para dar o exemplo e separar os bons dos maus produtores, talvez seja o caso de se fechar alguma indústria quando forem constadas irregularidades.” O estudo do Cena ainda está sendo redigido e será submetido em breve para publicação em alguma revista.
– Sabe aquela história de cerveja feita com puro malte de cevada, o ingrediente mais nobre (e caro) das loiras geladas? Ela até existe, mas é uma raridade por aqui. Numa comparação com produtos da Europa, América do Norte, Japão e Austrália, as nacionais foram as campeãs no uso de cereais não malteados – provavelmente milho – em sua composição, em seu extrato primitivo. De 31 marcas nacionais analisadas, 28 continham o cereal em sua composição. Em média, o milho representava 48,7% da matéria-prima seca das cervejas feitas no país. As cervejas com malte mais próximo do puro foram as da Europa. No Brasil, desde novembro de 2001, até 45% do malte pode ser substituído por diversos tipos de adjuntos cervejeiros, o nome técnico dado a amidos, açúcares e outros cereais (geralmente não malteados) que podem entrar na composição da cerveja. Antes dessa data, o limite máximo do emprego desses adjuntos era ainda maior, de 49%. Como o estudo trabalhou com amostras de cerveja brasileira recolhidasantes do fim de 2001, quando a lei era mais benevolente com os produtores aqui instalados, pode-se dizer que, aparentemente, a maioria delas estava de acordo com a legislação quando o estudo foi feito. Aparentemente, porque a análise do carbono 13 não flagra o emprego de outro adjunto cervejeiro muito usado no Brasil, o arroz. “Produzir cerveja fora das especificações legais é fraude”, diz Marcos Mesquista, superintendente do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja. “Quando isso ocorre, as autoridades podem apreender a mercadoria e até fechar a fábrica.” O estudo, coordenado por norte-americanos e com a participação do Cena/USP, saiu em setembro do ano passado no Journal of Agricultural and Food Chemistry.
-Entre as amostras de cinco marcas brasileiras de brandy ou conhaque fino analisadas, nenhuma delas era um produto feito exclusivamente a partir da destilação de vinho ou de suco de uva fermentado. As mais caras tinham menos álcool derivado de cana-de-açúcar, mas ainda assim não eram puras. Na popular categoria definida pela legislação brasileira como conhaque de gengibre, na qual a lei permite usar qualquer planta para gerar álcool, todo o etanol das bebidas veio da cana-de-açúcar. Esse trabalho foi publicado no final de 1999 na revista Food Research International.
-Esses truques, que os vinicultores e mestres-cervejeiros comentam apenas à boca pequena, sem fazer alarde, são hoje inequivocamente desvendados com a ajuda de um espectômetro de massa, aparelho capaz de medir a massa e a concentração relativa de átomos e moléculas, e a análise dos isótopos de carbono (e de outros elementos químicos). A metodologia é usada no mundo todo, inclusive no âmbito da União Européia, para controlar a autenticidade de bebidas, sobretudo do vinho. “Dificilmente, algum produtor brasileiro contesta esse tipo de análise hoje”, comenta o pesquisador Luiz Rizzon, da Embrapa Uva e Vinho, em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, que participou dos estudos com vinhos. Obviamente, a técnica não é perfeita e algumas formas de fraude não são detectadas apenas com o uso dos isótopos estáveis do carbono. Às vezes, para pegar certas formas de adulteração, como a falsificação da origem geográfica de um produto, é necessário recorrer a testes com uma cesta de isótoposde vários elementos químicos, como o oxigênio e o hidrogênio. De qualquer forma, o emprego dos exames com isótopos de carbono em bebidas e alimentos, como o mel, já é um avanço na fiscalização de adulterações.
A lógica dessa técnica parte de peculiaridades dos átomos de carbono e do processo de fotossíntese das plantas. Existem três tipos de átomos de carbono, os tais de isótopos: o carbono 12, o carbono 13 e o carbono 14 (14C). Eles têm características químicas praticamente idênticas e seu número de prótons no núcleo atômico é rigorosamente o mesmo (no caso, 6). Mas exibem diferenças visíveis em suas propriedades físicas. Isso porque a massa atômica de cada isótopo é ligeiramente distinta. Uns são mais leves e outros, mais pesados. Para as análises feitas com bebidas e alimentos, só interessa aos pesquisadores determinar a proporção do raro e mais pesado 13C em relação ao abundante e mais leve 12C, justamente os dois isótopos de carbono que são estáveis e não se alteram de forma espontânea (o 14C, muito usado para datações de fósseis, é radioativo e instável).
O que a fotossíntese, as plantas e as bebidas têm a ver com tudo isso? Deixemos a físico-química momentaneamente de lado para penetrar um pouco na fisiologia vegetal. Sob a ação da luz solar, os vegetais fazem fotossíntese. Transformam água e dióxido de carbono em compostos orgânicos (açúcares, carboidratos etc.) que lhes fornecem energia para a sobrevivência. De acordo com o seu tipo de fotossíntese, as plantas são divididas em dois grupos, as C3 e as C4. É aí que entra a história dos isótopos de carbono.
Durante a fotossíntese, tanto os vegetais C3 como os C4 absorvem muito mais carbono 12 do que carbono 13. Mas, nas plantas C3, como a uva do vinho e a cevada da cerveja, essa característica é ainda mais exacerbada do que nas C4, entre as quais se incluem a cana e o milho, tradicionais fontes de açúcar, álcool e carboidratos para muitas bebidas alcoólicas. Portanto, nos vegetais C3, o raro isótopo 13C é ainda mais escasso do que nos C4. Dito de outra forma: do ponto de vista dos isótopos de carbono, os produtos derivados de culturas agrícolas C3 são mais leves do que os oriundos de vegetais C4.
Vários estudos internacionais mostram que as plantas C3 e seus derivados possuem um δ13C (o índice delta carbono 13) entre -26 e -32‰. Nos vegetais C4, os valores variam de -11 e -14‰. O índice é expresso dessa forma, com valores negativos e por mil (‰), em razão da fórmula usada para calculá-lo. “Quando encontramos números intermediários entre essas duas faixas, concluímos que o produto apresenta componentes tanto de plantas C3 como de C4”, comenta Martinelli. É possível ainda calcular quanto da bebida deriva de vegetais C3 e quanto de C4. Exemplificando. Num vinho totalmente feito a partir da fermentação de mosto de uva (planta C3) ou numa cerveja com puro malte de cevada (também C3), o δ13C deve ser entre -26 e -28‰. No caso do vinho brasileiro, esse requisito tem força legal.
O Ministério da Agricultura definiu, há quase três anos, que o δ13C do vinho nacional puro, padrão, é -27,86‰. Se o teor alcóolico da bebida tiver sido reforçado no limite máximo previsto pela lei (3 graus G.L.), esse índice deve ficar entre -22 e -24‰. “Nessa faixa, considero os vinhos suspeitos de adulteração”, afirma o pesquisador do Cena/USP. “Acima dela, houve, com certeza, exagero na chaptalização.” A elevação do teor alcoólico de um vinho pela adição de açúcar não originário da videira durante o processo de fermentação do mosto de uva é um procedimento conhecido como chaptalização. Alguns vinhos analisados no estudo da equipe de Martinelli tinham um δ13C de -17‰. Isso permite dizer que mais da metade de seu álcool originou-se de açúcar de cana.
A chaptalização é uma prática de séculos que não deve escandalizar ninguém. Usada com muita parcimônia, pode até melhorar a qualidade dos vinhos, na medida em que o álcool confere maciez e viscosidade a uma bebida. É proibida em alguns países, como a Itália, mas adotada e regulamentada em outros, inclusive em partes da França, a pátria que faz os melhores tintos, brancos e espumantes (o champanhe, é claro) do mundo.
E alguns dos piores também. Embora vedada ou limitada em muitas zonas vinícolas, geralmente nas de clima quente, em que a uva tem mais facilidade para amadurecer (e, portanto, gerar mais açúcar), a chaptalização sempre foi de difícil controle efetivo para as autoridades antes da adoção das análises isotópicas. A razão é simples: do ponto de vista químico e gustativo, etanol é etanol, independentemente de sua origem ter sido o açúcar de cana, de beterraba (muito empregado na Europa na chaptalização) ou de uvas. “Provando um vinho, não dá para saber quanto de seu álcool deriva da fermentação de açúcar de cana e quanto vem do açúcar da própria uva”, afirma Mauro Zanus, da Embrapa Uva e Vinho. “A questão central é que a chaptalização indica que as uvas usadas no vinho não tinham alcançado um grau ideal de maturação.”
Segundo Carlos Ducatti, coordenador do Centro de Isótopos Estáveis Ambientais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu, que começou a trabalhar com análises de carbono 13 para monitorar adulterações em vinagres há cerca de quatro anos, não era raro esse tipo de análise flagrar vinhos brasileiros com mais de 50% de álcool derivado da cana-de-açúcar no passado recente. “Hoje, a situação melhorou”, diz Ducatti. “Os produtores sabem que temos como demonstrar a origem botânica do álcool.” O pesquisador da Unesp auxiliou o Ministério da Agricultura a preparar a legislação que instituiu o emprego das análises de isótopos de carbono para monitorar o grau de chaptalização no vinho nacional.
Seu centro é um dos dois que pode fornecer esse tipo de laudo para o ministério. O outro é o laboratório de enologia do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin), em Caxias do Sul, entidade mantida com recursos do Secretaria de Agricultura do Rio Grande do Sul. “Depois de 2002, quando começamos a funcionar, praticamente só detectamos excesso de chaptalização em vinhos de mesa”, afirma Regina Vanderlinde, chefe do laboratório do Ibravin. “Nossa meta agora é fiscalizar mais formas de adulteração por meio de testes com isótopos de outros elementos químicos.”
O projeto
Adição de Sacarose de Cana-de-açúcar em Vinhos Brasileiros: Uma Abordagem Isotópica e Cromatográfica (nº 02/02285-8); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Pesquisa (Fapesp); Coordenador Luiz Antonio Martinelli – Cena/USP; Investimento R$ 18.008,75