Os problemas enfrentados pelas pessoas com esquizofrenia vão muito além do estigma resultante do preconceito e do isolamento social. Cerca de 40% delas não respondem adequadamente aos principais antipsicóticos usados no controle da doença, enquanto outras 60% abandonam o tratamento devido aos seus efeitos colaterais, associados, sobretudo, a problemas metabólicos. Para antecipar como cada indivíduo irá reagir a essas drogas antes de iniciar o tratamento e escolher a melhor opção, um grupo de pesquisadores brasileiros e alemães investigou marcadores moleculares associados à resposta a diferentes remédios. Com base na análise do sangue de pacientes com o transtorno psiquiátrico, identificaram um conjunto de lipídios (moléculas de gordura) que permitem estimar o medicamento mais adequado para cada um, aprimorando sua resposta ao tratamento.
“Essa é a primeira vez que um estudo consegue identificar marcadores lipídicos no plasma sanguíneo associados à resposta de indivíduos com esquizofrenia ao tratamento com antipsicóticos”, destaca o professor de bioquímica Daniel Martins-de-Souza, do Laboratório de Neuroproteômica do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp) e coordenador do estudo. No trabalho, cujos resultados foram publicados em fins de maio na revista Frontiers in Psychiatry, os pesquisadores coletaram o sangue de 54 indivíduos recém-diagnosticados com esquizofrenia em uma clínica na Universidade de Magdeburg, na Alemanha. As amostras foram recolhidas antes de eles começarem o tratamento com as três principais drogas usadas contra a doença. Seis semanas depois, já com o tratamento em andamento, fizeram nova coleta.
As drogas usadas no tratamento da esquizofrenia influenciam o metabolismo lipídico dos pacientes, desencadeando síndromes metabólicas que podem evoluir para um quadro de hiperglicemia, resistência à insulina e ganho de peso.
Os pesquisadores, entre eles o químico Adriano Aquino, também do IB-Unicamp, mapearam o perfil lipídico dos indivíduos que responderam bem à medicação e dos que não se adaptaram ao remédio prescrito. Por meio da técnica de espectrometria de massas, estimaram quais lipídios encontravam-se em maior e em menor quantidade nas amostras de sangue dos pacientes. A estratégia permitiu determinar, com base em ferramentas estatísticas, empregadas pelo químico Guilherme Alexandrino, do Instituto de Química da Unicamp, os perfis mais compatíveis com cada tipo de medicamento. “Identificamos 38, 10 e 52 lipídios associados à Olanzapina, Risperidona e Quetiapina, respectivamente, que podem ser usados para distinguir os indivíduos que vão responder bem ou não ao tratamento com cada uma dessas drogas”, afirma Martins-de-Souza.
Ele explica que os lipídios são moléculas de gordura presentes em grandes quantidades no plasma sanguíneo. Nos últimos anos, vários estudos relacionaram a alteração de algumas dessas moléculas a determinadas doenças. Transtornos como o autismo, por exemplo, parecem estar associados à desregulação do colesterol e à alteração dos níveis de alguns hormônios esteroides. Alterações no metabolismo de lipídios como a ceramida também foram observadas em casos de depressão, enquanto indivíduos com psicose frequentemente apresentaram níveis elevados de lipídios no sangue.
No caso da esquizofrenia, estudos recentes verificaram em indivíduos acometidos pela doença uma série de alterações na constituição lipídica das membranas plasmáticas de suas células cerebrais. “Também sabemos que as drogas usadas hoje no tratamento da doença influenciam o metabolismo lipídico dos pacientes com esquizofrenia, desencadeando síndromes metabólicas que podem evoluir para um quadro de hiperglicemia [níveis elevados de glicose no sangue], resistência à insulina e ganho de peso”, explica Martins-de-Souza. Daí o interesse por essas gorduras como possíveis marcadores associados ao transtorno psiquiátrico, segundo o pesquisador, que estuda o assunto desde o pós-doutorado no Instituto Max Planck de Psiquiatria, em Munique, na Alemanha. Ele já havia, nessa época, identificado uma série de proteínas envolvidas nos mecanismos bioquímicos da doença (ver Pesquisa FAPESP nº 163).
A esquizofrenia é um transtorno do funcionamento cerebral que produz pensamentos desconexos, alucinações, delírios de perseguição e, em casos extremos, completo alheamento. Estima-se que acometa mais de 20 milhões de pessoas no mundo, 1,8 milhão somente no Brasil, sendo os homens mais afetados do que as mulheres, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). As pessoas com esquizofrenia têm duas vezes mais risco de morrer precocemente em comparação com o resto da população. Em geral, após o diagnóstico, os indivíduos precisam tomar um antipsicótico por até seis semanas para se determinar sua eficácia para o tratamento. Quando não funciona, testa-se o seguinte. Enquanto não se acerta a medicação, há o risco de a doença progredir, com a intensificação dos surtos psicóticos e declínio da cognição.
Estima-se que acometa mais de 20 milhões de pessoas no mundo, 1,8 milhão somente no Brasil, sendo os homens mais afetados do que as mulheres, segundo dados da OMS.
Diante da ineficácia do medicamento e dos efeitos colaterais, muitos abandonam o tratamento. Como consequência, as funções cognitivas e relacionadas ao humor dos pacientes pioram, tornando-os menos capazes de viver em sociedade. Com base nos resultados obtidos, o grupo de Martins-de-Souza pretende, no futuro, desenvolver um teste que auxilie psiquiatras a escolher o medicamento mais apropriado para cada indivíduo. Eles, inclusive, depositaram no Brasil um pedido de patente dos perfis lipídicos e sua relação com cada medicamento. O biólogo, no entanto, pondera: “A estratégia que concebemos dá conta apenas de aprimorar a resposta dos pacientes aos antipsicóticos, diminuindo as crises psicóticas, mas não garante uma melhora dos efeitos colaterais”. Segundo o pesquisador, um dos próximos passos será tentar determinar por quais vias bioquímicas essas drogas agem e os componentes metabólicos relacionados aos efeitos colaterais, de modo a ampliar as possibilidades de desenvolvimento de novas drogas eficazes e com poucos efeitos adversos.
Projeto
Desenvolvimento de um teste preditivo para medicação bem-sucedida e compreensão das bases moleculares da esquizofrenia através da proteômica (nº 2013/08711-3); Modalidade: Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável Daniel Martins-de-Souza (Unicamp); Investimento R$ 1.503.503,04 (FAPESP).
Artigo científico
AQUINO, A. et al. Blood-based lipidomics approach to evaluate biomarkers associated with response to Olanzapine, Risperidone, and Quetiapine treatment in schizophrenia patients. Frontiers in Psychiatry. v. 9, n. 209, p. 1-8. 25 mai. 2018.