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Administração pública

Tribunal de Contas do Estado de São Paulo completa 100 anos

Pesquisadores explicam a atuação desse órgão e sugerem medidas para aumentar sua eficiência

Daniel Almeida

Criado há 100 anos com a proposta de fiscalizar o uso de recursos públicos, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP) tem sua história impactada pelas transformações do Estado brasileiro nesse período. Instituído na Primeira República (1889-1930), o órgão foi suspenso na Era Vargas (1930-1945) e sofreu reformas na ditadura militar (1964-1985) e na Constituição de 1988. Ao longo do tempo, a corte teve suas atribuições ampliadas, de forma que, hoje, também é responsável por avaliar a eficiência da gestão estatal, buscando estratégias para envolver a sociedade no controle de gastos.

Com o objetivo de resgatar a trajetória do órgão, pesquisa coordenada pelo jurista José Reinaldo de Lima Lopes e pela historiadora Íris Kantor, ambos da Universidade de São Paulo (USP), e pelo jurista Ariel Engel Pesso, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, analisou documentos armazenados no acervo do TCE-SP e no Arquivo Público do Estado de São Paulo. O estudo, que contou com o trabalho de uma equipe de 21 pessoas, entre estagiários do tribunal, alunos de mestrado e doutorado da USP, acaba de ser publicado no livro A história do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo: Primeiro centenário – 1924-2024 (Edusp, 2024).

“Nosso primeiro desafio foi organizar o acervo do TCE-SP”, relata Kantor. De acordo com a historiadora, foram catalogadas mais de 2 mil fotos que estavam sem identificação e uma vasta documentação contendo informações sobre casos, decisões jurídicas e fundamentação legislativa. Além do trabalho com fontes primárias, o estudo abarcou entrevistas com seis conselheiros para levantar informações sobre a história recente do órgão.

Atualmente, o Brasil conta com 31 tribunais de contas, incluindo o da União, os dos estados (em 26 capitais e no Distrito Federal), dos municípios do estado (existentes na Bahia, em Goiás e no Pará) e os tribunais de contas do município, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Os tribunais dos municípios do estado são vinculados aos órgãos estaduais, enquanto os tribunais de contas do município funcionam de forma autônoma e independente dessas cortes.

O jurista Guilherme Jardim Jurksaitis, da Fundação Getulio Vargas em São Paulo (FGV­-SP), esclarece que a função principal desses órgãos é realizar o controle de recursos e contas públicas, incluindo contratações, gastos com recursos humanos e parcerias com entidades do terceiro setor, entre outras despesas. “Os tribunais fiscalizam como o Estado gasta o dinheiro que recebe dos contribuintes”, reforça Jurksaitis, que também é assessor técnico-procurador no TCE-SP.

Apesar de hoje a atuação dos tribunais ser abrangente, sua função nos primórdios era restrita à análise contábil. Esse foi o caso do TCE-SP, criado em 1924 por Washington Luís (1869-1957), que foi governador do estado de 1920 a 1924. O projeto tinha como referência instituições similares que funcionavam em países europeus e o Tribunal de Contas da União (TCU), estabelecido em 1891. Apenas seis anos depois de sua criação, em 1930, o TCE-SP foi extinto por meio de um decreto estadual, mas voltou a funcionar em 1947.

Entre as décadas de 1950 e 1960, o TCE-SP expandiu suas funções, acompanhando o desenvolvimento econômico do estado e a necessidade de fiscalizar grandes obras públicas. Nesse período, entre outras atividades, o órgão aprovou a desapropriação de terrenos para a expansão do campus da USP, além de ter fiscalizado o processo de reforma e a contratação de novos professores. Outro aspecto revelado pelo estudo é a ligação entre o TCE-SP e a Faculdade de Direito daquela universidade. Cerca de 65% dos conselheiros que passaram pelo tribunal nos últimos 100 anos foram formados nessa faculdade, como relata Pesso. Com a criação da FAPESP, em 1960, o órgão também passou a fiscalizar as contas da Fundação.

Dados dos tribunais de contas subsidiam o trabalho de pesquisadores e de organizações da sociedade civil

Em 1968, durante a ditadura militar, foi instituído o Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM-SP), que assumiu a responsabili­dade de fiscalizar as contas da capital paulista. Naquele momento, o TCE-SP nomeou conselheiros e funcionários com especialização em finanças públicas para ampliar a sua qualificação técnica. Segundo Pesso, como órgão governamental, o TCE-SP inicialmente manteve adesão ao regime. Essa postura começou a mudar na década de 1970, quando o movimento de contestação à ditadura ganhou força na sociedade e o tribunal incorporou posturas mais críticas ao governo.

Com a Constituição de 1988, os tribunais de contas tiveram suas competências ampliadas para além da análise contábil. “Essa mudança representou a transição de uma postura reativa para a atuação proativa desses órgãos, que passaram a exercer o controle prévio, concomitante e posterior de gastos públicos”, explica Pesso, do Mackenzie.

De acordo com Ursula Dias Peres, do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) da USP, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP, antes da implementação do Plano Real, em 1993, a instabilidade monetária e o fato de os documentos contábeis serem físicos tornavam o controle orçamentário pouco eficaz. Segundo a pesquisadora, essa situação começou a mudar no ano 2000, a partir da promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). “A legislação impôs limites para gastos com pessoal, endividamentos e a concessão de benefícios fiscais”, acrescenta Lopes, da USP. Além disso, a LRF passou a exigir a publicação de informações sobre a execução orçamentária e financeira de entes públicos.

Outra medida que impactou o trabalho dos tribunais de contas em todo o Brasil foi a Lei nº 12.527, sancionada em 2011, conhecida como Lei de Acesso à Informação (LAI). A legislação determina que os órgãos públicos devem divulgar dados de forma proativa e responder a solicitações da sociedade. Para adequar-se a ela, o TCE-SP, por exemplo, criou o Serviço de Informações ao Cidadão, que atende a demandas de acesso à informação, e elaborou um portal da transparência, para disponibilizar dados sobre suas atividades.

Com pesquisas sobre orçamento e governança pública desde 2010, a economista Fernanda Filgueiras Sauerbronn, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Contábeis da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), observa que, embora a LAI garanta transparência no acesso a dados orçamentários, o controle deve abarcar não apenas a disponibilidade de informações, como também estratégias para mobilizar a sociedade em atividades de fiscalização. “As leis por si só não asseguram transparência no uso do dinheiro”, argumenta. Dentre essas medidas, ela menciona a realização de cursos por parte dos próprios tribunais para mostrar à população como utilizar a LAI, elaborar pedidos de informação e acompanhar as respostas de órgãos públicos. Também é preciso, segundo a pesquisadora, tornar os portais da transparência mais intuitivos, por meio de linguagem acessível e inclusão de recursos visuais, como gráficos e tabelas para facilitar a compreensão dos dados.

Já nos anos 2000, soluções tecnológicas viabilizaram o desenvolvimento de sistemas para automatizar tarefas do controle de gastos que antes eram feitas manualmente, conforme Peres. Ela acrescenta que a inteligência artificial (IA) também se tornou indispensável à modernização de auditorias. Esses programas permitem, por exemplo, cruzar informações financeiras e contratuais por meio de palavras-chave e informações numéricas, agilizando o mapeamento de receitas, contratos e licitações. “A IA destaca dados atípicos e facilita o rastreamento de irregularidades, tornando a auditoria mais precisa”, afirma a pesquisadora.

Daniel Almeida

Entretanto, apesar dos avanços tecnológicos, os tribunais de contas enfrentam o desafio de evitar que análises técnicas elaboradas pelo corpo de auditores sejam impactadas por decisões políticas. “Governadores e deputados têm grande influência na escolha dos conselheiros. Essas vinculações podem afetar decisões envolvendo a aprovação ou reprovação de contas públicas”, alerta Peres. Sauerbronn concorda e lembra, inclusive, que em 2021 cinco conselheiros do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ) foram afastados por suspeita de corrupção. “Nesse período, os dois conselheiros que não estavam envolvidos na denúncia eram servidores de carreira”, comenta. “Para que os tribunais sejam independentes, um dos caminhos é que os cargos de conselheiros sejam ocupados por profissionais concursados.” De acordo com a pesquisadora da UFRJ, tribunais de várias partes do Brasil têm se mobilizado nessa direção. Órgãos de estados como Ceará, Mato Grosso e Espírito Santo começaram a realizar os primeiros concursos públicos para as vagas de conselheiro há cerca de 10 anos.

Outra limitação ao trabalho de tribunais de contas, segundo Sauerbronn, são as emendas parlamentares. Por meio delas, deputados e senadores influenciam a alocação de recursos públicos, em função de compromissos assumidos com estados, municípios e instituições durante o mandato. “Nos últimos 10 anos, as emendas têm alterado a dinâmica de controle do orçamento público”, avalia a economista. Isso acontece, segundo Peres, porque há uma falta de clareza sobre como os recursos de emendas devem ser auditados. Os tribunais de contas são responsáveis por fiscalizar a contabilidade e a efetividade de programas, entidades e fundos governamentais. Por sua vez, a equipe de auditores estabelece um tema ou iniciativa a ser avaliada, elaborando um plano de trabalho que inclui a definição do objetivo, das questões de auditoria, dos critérios de avaliação e procedimentos de coleta e análise de dados. Essa etapa abrange a avaliação de documentos como leis, planos governamentais, relatórios de auditorias anteriores e estudos acadêmicos.

Em relação às emendas parlamentares, não há uma lei específica que defina como podem ser utilizadas, o que pode favorecer o desvio de recursos. “É preciso criar critérios objetivos para regulamentar o destino das emendas”, defende a pesquisadora Peres, do CEM-USP. Por causa desse problema, em agosto de 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a suspensão temporária da execução de emendas parlamentares. A medida permanecerá em vigor até que o Congresso Nacional estabeleça mecanismos para assegurar um controle efetivo dos recursos liberados a partir de emendas.

“Apesar de desafios e problemas envolvendo interferências políticas na fiscalização de contas públicas, os tribunais de contas desempenham papel cada vez mais ativo no combate à corrupção e na detecção de desvios de recursos ao ampliar o acesso à informação e endurecer regras de fiscalização”, afirma Peres. Ela explica que os dados fornecidos por esses órgãos também subsidiam o trabalho de organizações da sociedade civil, como a Transparência Brasil e a Transparência Internacional, dedicadas a fiscalizar a gestão pública. Além disso, as informações são utilizadas em pesquisas científicas, a exemplo de dois trabalhos recentes elaborados por Peres.

Em estudo de 2022, a pesquisadora analisou a atuação de 11 tribunais de contas estaduais do país na definição de gastos educacionais. Um dos achados da pesquisa é que esses órgãos geram desigualdades no financiamento da educação ao introduzir mudanças em diretrizes federais. Isso acontece, por exemplo, quando os estados adicionam novas regras às normas federais, criando camadas extras de regulamentação. Nesse sentido, Peres menciona o caso do TCE de Sergipe que, ao regulamentar as despesas consideradas como Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE), atendeu às determinações da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), mas adicionou gastos que inicialmente não eram considerados pela legislação. Entre eles está o pagamento de entidades comunitárias e filantrópicas conveniadas com o setor público e a realização de concursos para professores e pessoal administrativo.

Já em pesquisa concluída em 2024 com dados de diferentes relatórios produzidos pelo TCM-SP, Peres identificou que a cidade de São Paulo acumulou um saldo de caixa de quase R$ 25 bilhões, entre 2014 e 2023. O aumento de tributos, como o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e o Imposto sobre Serviços (ISS), assim como a reforma previdenciária de servidores municipais contribuíram para a formação dessa reserva.“O valor elevado em caixa também indica que recursos públicos estão sendo subutilizados, limitando a formulação e o alcance de políticas públicas no município”, analisa Peres.

Por fim, Jurksaitis destaca que os tribunais de contas funcionam como repositórios de informações sobre práticas da administração pública. “Pelo menos uma vez ao ano, o TCE-SP, por exemplo, realiza visitas presenciais nas mais de 3 mil entidades que fiscaliza, produzindo diagnósticos e emitindo alertas que podem subsidiar intervenções legislativas e evitar irregularidades”, conclui.

A reportagem acima foi publicada com o título “O caminho do dinheiro” na edição impressa n° 346, de dezembro de 2024.

Projetos
1.
Centro de Estudos da Metrópole (CEM) (n° 13/07616-7); Modalidade Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Eduardo Cesar Leão Marques; Investimento R$ 21.885.397,04.
2. Governança do orçamento público: Análise comparativa dos casos de Londres e São Paulo (n° 19/09161-3); Modalidade Bolsas no Exterior – Pesquisa; Pesquisadora responsável Ursula Dias Peres; Investimento R$ 109.459,28.

Artigos científicos
PERES, U. D. Eleições municipais em São Paulo: Problemas e desafios. Estudos Avançados, 38 (111), maio-agosto 2024.
MACHADO, G. S. e PERES, U. D. A atuação dos Tribunais de Contas estaduais no controle da educação pública: Entre a mudança institucional e a produção de desigualdades regulatórias. Cadernos Gestão Pública e Cidadania. v. 28, 2023.
SAUERBRONN, F. F. et al. Decolonial studies in accounting? Emerging contributions from Latin America. Critical Perspectives on Accounting, v. 78, p. 1. 2024.

Livro
LOPES, J. R. et al.(orgs.). A história do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo: Primeiro centenário – 1924-2024. Edusp, 2024.

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