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Economia

Um bolo difícil de repartir

Estudo discute o tema atualíssimo das mudanças nas legislações sobre o Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS)

As discussões da reforma tributária mal começaram, mas já estão promovendo um abalo sísmico entre os governadores de 27 estados do país e o governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Nos encontros promovidos por Lula, os representantes dos estados têm deixado claro que tal reforma é fundamental, mas estão atentos às possíveis perdas no bolo de arrecadação com as mudanças propostas. O único tema que parece ganhar ares de consenso é o ponto de partida da reestruturação: a uniformização das legislações a respeito o Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS) entre os estados. “A diferenciação de ICMS interestadual está sendo um mal enorme para o país. Se houver uma equalização do Imposto sobre Circulação, é potencialmente possível reduzir perdas econômicas entre R$ 4,5 bilhões por ano e até R$ 9 bilhões por ano, ou seja, dois programas Fome Zero, somente com prejuízos em logística. A atual estrutura afeta os custos logísticos e a decisão de localizar instalações”, explica Hugo Tsugunobu Yoshida Yoshizaki, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), que realizou a pesquisa Impacto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços na Rede Logística Brasileira, com apoio da FAPESP, e defendeu recentemente tese de livre-docência sobre o tema.

De acordo com a legislação vigente, cada unidade da federação tem uma lei sobre o imposto. No Estado de São Paulo, a alíquota geral é de 18%; em outros estados chega a 17%, mas a alíquota é reduzida a 12% na comercialização entre outros estados e a 7% para vendas de empresas dos estados do Sul e do Sudeste para as outras regiões do país.O primeiro resultado desse processo é o favorecimento da transação entre os estados. Entretanto, Yoshizaki aponta um grave efeito colateral, que ele define como um amplo espaço para manobras fiscais.”Como o ICMS é um imposto calculado como créditos e débitos ao longo da cadeia, haveria a possibilidade de se criar um esquema de elisão fiscal, em que o turismo de produtos faria o papel central”, acredita o professor da Poli. O turismo de produtos é como os especialistas definem um tráfego artificialmente criado para ganhar com vantagens tributárias. Um bom exemplo é o de uma fábrica situada em São Paulo, mas que possui um armazém em Minas Gerais para atender os clientes do Estado paulista. “Na verdade, o produto vai até Minas Gerais somente para fazer ‘turismo’, pois seu destino é outro. É o seu lugar de origem: São Paulo”, comenta.

O turismo fiscal ocorre no Brasil por causa da variação de ICMS entre os estados. Se a empresa acima vender produtos para clientes paulistas, a alíquota aplicada será de 18%. No entanto, se esses mesmos clientes forem atendidos a partir de Minas Gerais, a taxa será de 12%, concedendo uma margem de 6% ao fabricante. A conclusão é simples: “O ICMS estaria contribuindo para aumentar artificialmente custos operacionais da logística para obter-se vantagens tributárias, gerando mais um custo Brasil”, critica Yoshizaki. Isso parece explicar o fato de alguns atacadistas e distribuidores terem preferido se instalar no sul de Minas Gerais, próximos aos maiores centros de consumo, como Grande São Paulo e Grande Rio de Janeiro. Para o professor, essa estratégia logística começa a ser lucrativa a partir de mercadorias acima de R$ 600 a tonelada. No entanto, nas simulações apresentadas na tese, “o custo Brasil do ICMS” pode ter um aumento que varia entre 3,5% e 11%, seguindo essa estratégia de vantagem tributária interestadual. No estudo, ele simulou cenários – fundamentados em modelos matemáticos de otimização – tomando como base a indústria de bens de consumo não-duráveis (alimentos, material de higiene e limpeza, etc.) e que, portanto, foram extrapolados para a economia como um todo.

“Caso as indústrias de bens de consumo adotem uma hipótese conservadora de 20% de sonegação potencial na cadeia do ICMS, a rede logística desenhada gera um incremento de 3,49% nos custos de operação do cenário básico. Considerando-se que em torno de 15% da distribuição é feita via grandes redes, apontadas como não-sonegadoras, pode-se adotar como limite superior para a sonegação potencial a fração de 80% e, nesse caso, o aumento logístico fica em 11,63%”, explica Yoshizaki. Um outro senão da atual legislação de ICMS é o que está fora da lei: a sonegação. Segundo Yoshizaki, é muito complicado determinar a influência do ICMS no turismo de mercadoria, pois o índice de não-pagadores do imposto é desconhecido, mas provavelmente muito elevado. O ICMS segue a lógica da não-cumulatividade, o que significa que, para efeito de apuração do tributo devido, deve-se deduzir do imposto incidente sobre a saída de mercadorias o imposto já cobrado nas operações anteriores relativas à circulação daquelas mercadorias ou das matérias-primas necessárias à sua industrialização.

Distorsões
Yoshizaki cita um outro exemplo de distorções, que a atual legislação permite: “Consideremos que uma empresa comprou matérias-primas para fabricar seu produto, que é vendido a R$ 2.500. No valor de compra de material, está embutido o ICMS de 17% ou 18%. Pelo princípio da não-cumulatividade, esse valor fica como crédito para a indústria, que é utilizado contra o débito de ICMS quando a mesma empresa vender seu produto, que se for para outro Estado será de somente 12%. O cliente terá um crédito de 12%, mas deverá recolher 17% ou 18%, ficando, assim, em desvantagem. Mas será que o cliente aceitará essa transferência passivamente?”, pergunta o professor. Uma alternativa, segundo Yoshizaki, é a do comerciante não se importar com o crédito do ICMS. “Se ele for sonegador do imposto, fica indiferente de onde recebeu a mercadoria, pois não necessita do crédito”, diz o pesquisador. Um outro ponto seria favorável para o fornecedor, mas apenas para aqueles que detêm o monopólio do setor. Isso porque não ofereceria escolha ao consumidor de negociar essas vantagens tributárias interestaduais. “Mas, no caso de mercado onde há competição por preço, essas economias acabam sendo passadas aos clientes. Para vendas realizadas fora do Estado da indústria, esse desconto seria exatamente a diferença de alíquotas intra e interestaduais de ICMS, garantindo um preço mais ‘competitivo'”, afirma. É o chamado desconto ICMS.

O debate em torno do ICMS se justifica também pelos seus números. Em 2000, o total do imposto arrecadado em todos os estados foi de R$ 82,3 bilhões, o que corresponde a 87% da carga tributária dos estados e 22,8% da carga tributária total brasileira. O ICMS recolhe, portanto, cerca de 7,5% do PIB nacional. Uma vez que o ponto de partida está mais ou menos definido na reforma tributária, privilegiando a equalização do ICMS, as divergências começam a aparecer em outros desdobramentos. “Não há saída. A equalização vai ter de ocorrer. O problema é saber se o recolhimento deve ocorrer na origem ou no destinatário da mercadoria”, afirma Yoshizaki.Hoje, o ICMS é cobrado tanto no Estado que fabrica quanto no que consome os produtos. Isto é, todas as etapas da circulação de mercadorias e prestação de serviço estão sujeitas ao ICMS e exigem a emissão de uma nota fiscal, de forma que o imposto possa ser calculado pelo contribuinte e arrecadado pelo Estado. “Na verdade, quem paga o imposto é o consumidor final, mas sabe-se que partes da cadeia sonegam e, muitas vezes, o comerciante recebe o crédito, mas não paga a sua parte, pois não emite nota fiscal”, diz o professor.

Para alterar as distorções do ICMS, o programa de governo de Lula propunha a criação de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA), que seria não apenas amplo, mas também uma legislação unificada e com poucas alíquotas. O texto previa a substituição do ICMS pelo IVA estadual, que seria padronizado e passaria a ser cobrado pelo Estado consumidor da mercadoria. Esse mecanismo seria uma forma de se acabar com a guerra fiscal, evitando que os estados baixem suas alíquotas de ICMS para atrair empresas. Para alguns governadores, entretanto, a proposta que prevê a arrecadação apenas no destino traria perdas para os estados chamados “exportadores líquidos”, aqueles que vendem mais do que compram de outros estados, caso típico de São Paulo. “Claro que São Paulo seria o grande perdedor, porque tem o maior parque industrial. Por isso entendo que as discussões devem buscar a neutralidade do ponto de vista tributário, buscar a melhor eficiência na questão do modelo”, declarou recentemente o governador do Estado, Geraldo Alckmin.

Uma guerra diferente
A guerra fiscal travada entre os estados para atrair investimentos produtivos em seus territórios sempre existiu no Brasil. Com a Constituição de 1988 e com a abertura econômica do país, entretanto, a guerra ganhou munição extra na mão dos governadores. “A Constituição confundiu a democratização com a descentralização, dando maior autonomia aos governos estaduais”, diz Carlos Eduardo G. Cavalcanti, que escreveu o livro A Guerra Fiscal no Brasil (Edições Fundap, 145 págs., R$ 20), em parceria com Sérgio Prado e com apoio da FAPESP. Para Cavalcanti, a Constituição de 1988 facultou aos estados uma autonomia de legislar em matéria do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), o principal instrumento para a guerra fiscal entre as unidades estaduais. “Neste instante, passou a haver um afrouxamento do Conselho de Política Fazendária (Confaz), um órgão que deliberava todas as questões ficais por meio da votação de todos os secretários de Fazenda dos estados brasileiros”, explica o autor. “No governo militar, esse órgão teve um papel preponderante para inibir a guerra fiscal. Como o presidente do órgão era o ministro da Fazenda, qualquer ação na direção da guerra fiscal era vetada pelo ‘czar’ da economia da época”, prossegue.Apesar do impulso constitucional, o que acirrou a disputa entre os estados por maior investimento foi a abertura do mercado e a estabilidade econômica, conquistada com o Plano Real, em 1994. Os protagonistas dessa guerra foram as montadoras, responsáveis por grande parte do investimento direto estrangeiro (IDE) no país até 1998. Foi por meio de pacotes de benefícios fiscais oferecidos pelos estados que a Renault, a Chrysler e a Audi se instalaram no Paraná; a fábrica de caminhões da Volkswagen e a Peugeot, no Rio; e a General Motors, no Rio Grande do Sul. O caso que mais chamou a atenção, porém, foi o da Ford, estabelecida na Bahia. “Os contratos eram sigilosos e quando houve a briga entre o Rio Grande do Sul e a Bahia pela montadora, os valores vieram à tona. É possível que para atrair a indústria para os domínios de seu território, o governo baiano tenha concedido mais de 60% do investimento total, de cerca de R$ 1 bilhão, em benefícios fiscais”, conta Cavalcanti. Segundo o autor, artifícios como esses rompem com o pacto federativo do país, cujo princípio é o de um trabalho harmônico entre municípios, estados e federação. “Isso é constitucional, mas quando os estados entram nessa disputa, o que passa a valer é o pensamento isolado de cada unidade, sem ter um projeto nacional”, acredita o autor.Com a queda do investimento direto estrangeiro no país – US$ 16,6 bilhões em 2002, contra US$ 22,5 bilhões do ano anterior –, a guerra fiscal entre os estados ficou com um papel coadjuvante na cena nacional. Mesmo assim, as discussões da reforma tributária entre os governos federal e estaduais estão entre os principais assuntos da agenda de Luiz Inácio Lula da Silva. “O que se propõe é uma lei federal que estabeleça regras comuns para todos os estados, por meio de um imposto equalizado. Em tese, esse imposto minora o poder dos estados de uma guerra fiscal”, observa.O grande debate se concentra no fato de se o novo imposto será cobrado na origem ou no destino do produto. Caso seja no destino, São Paulo, que é um Estado considerado “exportador líquido” de mercadorias, deve ser duramente afetado e perder cerca de 17% de sua arrecadação. “A proposta ainda é incipiente e os interesses são diversos. Mas considero o debate meio fora de lugar”, critica Cavalcanti.Para ele, a reforma tributária é apenas um dos aspectos do problema de desenvolvimento econômico no país. “A indústria no Brasil está concentrada na região Sudeste, pois não há uma política regional de desenvolvimento. Nesse cenário, os estados usam as únicas armas que dispõem para atrair investimento de fora”, avalia. “Portanto, não adianta apenas discutir questões tributárias. É preciso incluir nas reuniões dos governadores com Lula um programa de desenvolvimento, sendo pensado como uma nação e não como estados isolados e inimigos”, conclui Cavalcanti. Não é por acaso que muitos outros governadores defendem a criação de um fundo de compensação para ressarcir as perdas dos estados. “Não discuto aqui a política de isenção fiscal, que pode continuar, mas não há vantagem para o país em trabalhar com a diferenciação do ICMS entre os estados”, observa o professor.

Para ele, os cálculos sobre as perdas por causa das “vantagens logísticas com a variação de ICMS” também devem considerar outros fatores, como o aumento do tráfego de caminhões pesados em certas estradas, possibilitando congestionamentos e acidentes, além do maior desgaste do pavimento das rodovias, diminuindo sua vida útil. “É uma movimentação gerada de forma artificial e que não agrega valor econômico ao produto, qualificando outro custo Brasil. Isso mostra a importância de se incluir essa discussão no âmbito geral da reforma tributária em discussão no Congresso”, analisa o pesquisador da Poli.

O projeto
O Impacto do ICMS na Rede Logística Brasileira (nº 01/05376-1); Modalidade Auxílio regular à pesquisa; Coordenador Hugo Tsugunobu Yoshida Yoshizaki – Escola Politécnica/USP; Investimento
R$ 29.430,91

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