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Música

Um cantinho e um laptop

Pesquisadores analisam como a tecnologia dos computadores afeta criação

Uma flauta de quatro furos e um laptop . É isso que o compositor Silvio Ferraz leva para seus concertos. Seu colega de palco e pesquisa, o também compositor Fernando Iazzetta, chega munido de uma dupla não menos improvável: um berimbau e o computador portátil. Os concertos em questão fazem parte da pesquisa Ambiente de Composição e Performance Musical com Suporte Tecnológico, que os dois pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) realizam, com o apoio da bolsa recebida no âmbito do Programa de Apoio a Jovem Pesquisador, da FAPESP.

Mais do que simplesmente estudar a música feita com a ajuda do computador, os dois pesquisadores procuravam entender como a tecnologia interfere no processo de criação. A idéia inicial era bem mais ambiciosa: descobrir novas formas de compor e tocar. Outro diferencial da pesquisa é sair do campo só teórico, realizando verdadeiros laboratórios no local em que a música mais interessa: o palco.

“Além de estudar como o processo de criação é alterado pelos equipamentos, tentamos desenvolver interfaces para novas maneiras de manipulação do som”, explica Ferraz. As interfaces são dispositivos programados no computador que ou interagem com instrumentos, processando o som por eles emitidos, ou produzem certos resultados sonoros a partir de comandos digitados no próprio teclado, ou, ainda, disparam músicas pré-gravadas. Os concertos utilizam uma mistura dos três procedimentos.

Infinidade de fios
A pesquisa – que durou cerca de quatro anos e recebeu bolsa de aproximadamente R$ 60 mil – começou com a montagem de um “módulo móvel de performance“, um conjunto de equipamentos que permitia a realização dos concertos onde as interfaces seriam testadas. O módulo é composto dos dois laptops, onde o som é processado, quatro caixas acústicas e uma infinidade de fios. De acordo com Ferraz, o módulo custou cerca de R$ 50 mil, mas o gasto compensa, já que a música eletroacústica brasileira ainda enfrenta o alto preço do aluguel de equipamentos.

O Laboratóriode Linguagens Sonoras da PUC foi usado como sede do projeto. No início da pesquisa, os compositores trabalharam algumas questões teóricas e o resultado foi a produção de 21 papers. Em seguida, construíram, no computador e usando um ambiente de programação chamado MAX/MSP, interfaces que permitissem o controle e processamento do som em apresentações ao vivo. Teoria e prática se uniram nos concertos. Foram dez, feitos em festivais de música eletroacústica e em parceria com artistas de outras áreas.

“Os concertos começaram ‘fechados’, com pouca interação”, conta Iazzetta . “À medida que nosso domínio das ferramentas foi evoluindo, passamos a interagir em tempo real, além de usar outros recursos, como a dança e o vídeo”, completa.

Interação
“O que pudemos perceber ao longo da pesquisa foi como a divisão básica da música ocidental – entre fabricante do instrumento, compositor, instrumentista e ouvinte – não se aplica à música eletroacústica”, explica Ferraz. “Todos se misturam em uma só pessoa”, completa. De acordo com o pesquisador, esse “novo músico” é como uma criança, que resolve pegar um pedacinho de grama e o leva à boca para, assobiando, tentar extrair algum som. Ao mesmo tempo em que cria o novo instrumento, precisa aprender a interagir com ele e deve ainda compor a música que mais se adapte às suas características.

Outra mudança que a pesquisa revelou foi na concepção de unidade composicional. “Na escola de composição, aprendemos como criar uma unidade, para que a pessoa perceba que os sons que ouve fazem parte da mesma música”, diz Ferraz. “Com o computador, pude trabalhar com sons mais diversos ao mesmo tempo, sem me preocupar com essa unidade”, afirma o pesquisador.

Ao longo do estudo, os pesquisadores encontraram também outras questões que envolvem a nova forma de compor e tocar. Iazzetta, por exemplo, concentrou-se na perda do gestual. “Quando a música eletrônica surgiu, as performances se resumiam a apertar a tecla play .”

Gesto musical
“A partir dos anos 80, quando os equipamentos ficam portáteis e mais rápidos, a tecnologia saiu do estúdio e foi para o palco”, conta o pesquisador. Com as performances ao vivo, o gesto musical precisou ser reintroduzido. Entretanto, o ato de tocar instrumentos que têm o som processado ou em um teclado de computador não obedece simplesmente às leis da mecânica. Em um violino, por exemplo, o músico sabe que determinada corda invariavelmente produzirá certos sons. Já nas performances eletroacústicas, as regras não são mais tão claras. “Você cria artificialmente os gestos que eram naturais, além de precisar criar novos gestos para novas sonoridades e interfaces”, ressalta Iazzetta.

Outra constatação foi que os programas de composição para computador existentes no mercado utilizam um “pensamento composicional”  limitado pelas concepções musicais das décadas de 50, 60 e 70. Os programas são restritos por procedimentos como a repetição – que entrou na moda a partir do minimalismo dos anos 70 -, a disposição de sons em dégradé – técnica usada pelos compositores de música eletrônica da década de 60 -, e a permutação de frases musicais – em voga na década de 50. “Além disso, os compositores jovens estão limitados a trabalhar com uma concepção linear, em que uma idéia vem depois da outra, quando o pensamento na hora da composição não flui dessa forma”, explica Ferraz.

Miró
Para lidar com esse problema, ele experimentou alguns procedimentos que permitissem maior liberdade de atuação. Uma das idéias foi transpor a técnica do pintor espanhol Miró para a composição. A cada dia, Ferraz colocava sons aleatoriamente em um seqüenciador de som, “daqueles que qualquer garoto tem em casa”. “Como Miró, que a cada dia jogava um bocado de tinta na tela, eu criava um som diferente a cada dia e depois observava o resultado, como um grafite”, diz Ferraz, lembrando que apenas o computador – aquele mesmo que pode restringir – permite tais procedimentos.

Os pesquisadores já partem para a próxima empreitada: estudar os ambientes acústicos. “Durante essa pesquisa, esbarramos no problema da difusão de som”, conta Ferraz. “Agora queremos usar o espaço para descobrir como a escrita musical pode mudar a sensação de tamanho da sala ou localização dos instrumentos, por exemplo”, completa. A música que enlouquece os clubes noturnos chegou à universidade.

O projeto
Ambiente de composição e performance musical com suporte tecnológico (nº 96/05379-0); Modalidade Apoio a Jovem Pesquisador;
Coordenador 
Silvio Ferraz – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Investimento R$ 44.193,80 e R$ 153.100,00

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