Algumas pessoas que sobreviveram à forma mais grave de febre amarela podem desenvolver hepatite leve ou moderada, decorrente da ação dos vírus remanescentes ou suas proteínas, de acordo com três estudos conduzidos em São Paulo, Belo Horizonte e Paris. Hepatite é a destruição de células do fígado em resposta a uma inflamação causada principalmente por vírus, bactérias, medicamentos ou substâncias tóxicas como o álcool.
“Encontramos um novo aspecto de uma doença antiga, que não está nos livros médicos”, comenta o patologista Venâncio Alves, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). Ele participou do estudo mais abrangente, com 58 pessoas, das quais 26 apresentaram hepatite em média três meses depois de terem sido hospitalizadas por causa do estado grave de febre amarela. O trabalho foi publicado em maio de 2020 na revista The New England Journal of Medicine.
Antes restrita à região Norte, a febre amarela foi detectada pela primeira vez em Minas Gerais em dezembro de 2016, espalhou-se para os outros estados do Sudeste e causou o maior surto da doença desde o século XVII, quando foi relatada pela primeira vez no Brasil. A Organização Mundial da Saúde (OMS) registrou 778 casos de julho de 2016 a junho de 2017, 1.376 de julho de 2017 a junho de 2018 e 2.585 de julho de 2018 a junho de 2019, principalmente no verão, com uma mortalidade em média de 40%. De julho de 2019 a abril de 2020, em consequência da vacinação e de outras medidas de prevenção, foram confirmados apenas 14 casos, a maioria em Santa Catarina.
As primeiras pistas
No início de 2017, a equipe do Laboratório de Vírus da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) fez os testes das pessoas com febre amarela atendidas, em quantidade crescente, no Hospital Eduardo de Menezes (HEM), em Belo Horizonte. Os médicos suspeitavam que aquelas que sobreviviam à forma grave da doença poderiam apresentar outros problemas de saúde, que até então não haviam sido relatados, já que as células do fígado tinham sido bastante agredidas pelo vírus. Os pesquisadores da UFMG ficaram atentos a essa possibilidade depois de verem que o vírus zika, da mesma família que o da febre amarela, persistia no organismo mesmo depois da fase aguda da infecção.
A hipótese se mostrou correta em março daquele ano, quando um homem de 51 anos, ex-alcoólatra e fumante, voltou ao HEM com perda de apetite, cansaço persistente e icterícia. Dois meses antes, ele fora internado com sinais de febre amarela, contra a qual não havia sido vacinado – a infecção ocorreu em Caratinga, Minas Gerais, em janeiro de 2017.
Na reinternação, dois meses depois da febre amarela, os médicos diagnosticaram uma hepatite, indicada pelos níveis altos das enzimas alanina aminotransferase (ALT) e aspartato aminotransferase (AST), produzidas no fígado. Os exames laboratoriais também detectaram anticorpos contra o vírus da febre amarela. Os níveis de AST e de bilirrubina, que indicam alterações no fígado, permaneceram altos por cinco meses e os sintomas por seis meses após a infecção severa por febre amarela, antes de normalizar ou desaparecer. Seu caso foi descrito em um artigo de fevereiro de 2020 na revista Viruses.
Foto: CDC Public Health Image Library | Ilustração: Alexandre Affonso
Outros pacientes atendidos no HEM em 2017 e 2018 também tiveram hepatite tardia depois da febre amarela. “A hepatite tardia talvez seja um problema comum, que provavelmente não foi detectado antes porque os casos de febre amarela eram bem menos numerosos e não havia técnicas tão avançadas de diagnóstico e estudo”, diz a bióloga Betânia Paiva Drumond, coordenadora do trabalho no Laboratório de Vírus da UFMG.
Reiterando essa possibilidade, em fevereiro de 2018, dois franceses, um com 32 e outro com 28 anos, contraíram febre amarela, contra a qual não haviam sido vacinados, em uma viagem ao litoral do Rio de Janeiro. Um mês depois, já de volta a Paris, com perda de força física, a chamada astenia, procuraram o Hospital Saint Louis, na capital francesa. Os médicos verificaram que os níveis de ALT e AST estavam muito altos e diagnosticaram hepatite, como detalhado em um artigo de junho de 2019 na revista Emerging Infectious Diseases.
Em São Paulo
Em 2018 e 2019, as equipes do Hospital das Clínicas (HC) da FM-USP trataram 133 das 571 pessoas com febre amarela registradas no estado. Das 133, 59 morreram, 3 sobreviveram depois de transplante de fígado e 71 sobreviveram sem transplante. Das 71, 58 foram acompanhadas por até 12 meses, depois de deixarem o hospital, com resultados negativos dos testes para o vírus da febre amarela.
“Tivemos muitas surpresas”, comentou a infectologista Luciana Casadio, uma das médicas responsáveis pelos exames de acompanhamento dos pacientes, com a também infectologista Ana Catharina Nastri, ambas do HC. Em geral, os níveis das enzimas do fígado continuavam altos. Os exames de um dos pacientes detectaram material genético do vírus no sangue.
Em 26 pacientes, o equivalente a 45% dos 58 acompanhados, a hepatite se manifestou em geral três meses após a regularização das funções do fígado, que justificara a dispensa hospitalar. As análises de amostras do fígado de nove deles indicaram lesões diferentes das registradas na febre amarela aguda. “Cinco casos eram de hepatite moderada e quatro leve”, observou Alves. “Nenhum evoluiu para a forma grave.” Os 28 recuperaram os níveis normais das enzimas do fígado em seis meses.
Causas incertas
As causas dessa hepatite tardia ainda não estão claras. “Uma hipótese é que o organismo de parte das pessoas que teve febre amarela não consegue eliminar o vírus completamente ou com rapidez, como acontece em outras doenças infecciosas”, comenta Drumond, da UFMG. Os pesquisadores de Paris, por sua vez, atribuíram à inflamação do fígado como resultado de uma resposta do organismo contra o vírus.
“Resquícios do vírus ou o próprio vírus da febre amarela, ainda que em baixa quantidade, poderiam causar a inflamação de macrófagos [um tipo de célula de defesa] residentes no fígado, que continuam causando danos nesse órgão”, sugere Nastri. Segundo ela, o sistema imune parece continuar ativado, mesmo depois da infecção ter sido eliminada.
“Precisamos reescrever parte dos capítulos sobre febre amarela dos livros médicos”, enfatiza Anna Sara Levin, infectologista da FM-USP. Segundo ela, o sangramento – inicialmente nasal – é um dos principais sintomas da infecção. “Só quem sobrevive”, diz a médica, “é que tem icterícia”. A icterícia deixa a pele amarelada por causa do acúmulo de bilirrubina produzida no fígado. O tom amarelado desaparece depois de dias ou semanas.
As equipes de São Paulo, Belo Horizonte e Paris enfatizam a necessidade de acompanhamento, por pelo menos um ano, das pessoas que tiveram febre amarela, em busca de eventuais desdobramentos da doença.
Projeto
Metagenômica viral de dengue, chikungunya e zika vírus: Acompanhar, explicar e prever a transmissão e distribuição espaço-temporal no Brasil (nº 16/01735-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Ester Cerdeira Sabino (USP); Investimento R$ 445.187,99.
Artigos científicos
CASADIO, L. et al. Late-onset relapsing hepatitis associated with yellow fever. New England Journal of Medicine. v. 382, n. 21, p. 2059-61. 21 mai. 2020.
DENIS, B. et al. Hepatitis rebound after infection with yellow fever virus. Emerging Infectious Diseases. v. 25, n. 6, p. 1248-49. 17 jun. 2019.
REZENDE, I. M. et al. Late-relapsing hepatitis after yellow fever. Viruses. v. 12, n. 2, 222, p. 1-9. 17 fev. 2020.