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Obituário

Um ensaísta que resgatava trajetórias esquecidas

O crítico literário Antonio Arnoni Prado ajudou a consolidar o reconhecimento de Lima Barreto

Prado em registro feito durante ensaio fotográfico para divulgação do livro Cenário com retratos, de 2015

Divulgação Cia. das Letras

Notabilizado por seu conhecimento vasto e variado e pelo modo cuidadoso e rigoroso de trabalhar, o ensaísta e crítico literário Antonio Arnoni Prado se destacou por trazer à superfície autores, vertentes ou atuações marginalizados ou esquecidos. Foi um dos principais responsáveis pelo reconhecimento de Lima Barreto (1881-1922) como um dos maiores escritores brasileiros, lançou luz sobre a obra de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) como crítico literário e ajudou a reinterpretar as múltiplas vertentes que, nos anos que conduziram à Semana de Arte Moderna de 1922, constituíam o modernismo brasileiro. O ensaísta morreu dia 11 de setembro, aos 78 anos, em decorrência de um tumor cerebral.

Arnoni Prado era professor titular do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL-Unicamp), no qual ingressou em 1979 e lecionou até a sua aposentadoria, em 2012. Nascido em São Paulo em 1943, o crítico cresceu na região de Tremembé, zona norte da cidade, conforme relata em seu último livro, O último trem da Cantareira (Editora 34, 2019), uma mistura de memórias e ficção. Teve dois filhos, Ricardo e Mariana.

Formado em letras vernáculas em 1970, pela Universidade de São Paulo (USP), obteve mestrado (1975) e doutorado (1980) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da mesma universidade. Antes, havia se graduado em ciências jurídicas e sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em 1967. No mestrado, começou a trabalhar com a obra de Lima Barreto, orientado por Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017). Em 1976, sua dissertação, intitulada Lima Barreto: O crítico e a crise, foi lançada em livro pela editora Cátedra, com reedição em 1989 pela Martins Fontes. Sua tese de doutorado (1980), também orientada por Candido e denominada 1922: Itinerário de uma falsa vanguarda – Os dissidentes, a Semana e o integralismo, saiu em livro em versão resumida em 1983, pela editora Brasiliense, e em versão integral e atualizada somente em 2010, pela editora 34. Em análise pioneira, a obra, que recebeu o prêmio Mario de Andrade da Biblioteca Nacional, mostra que o modernismo de 1922 era múltiplo e contraditório.

Arnoni foi um dos primeiros intelectuais a aprofundar-se na obra de Lima Barreto, autor até então excluído do cânone literário brasileiro. Mais tarde, em entrevistas, afirmou que essa experiência está na origem de um interesse por escritores marginalizados que o conduziram à leitura de autores anarquistas do início do século XX em São Paulo. A investigação sobre a obra do escritor carioca proporcionou também a possibilidade de explorar o método de estudo e crítica aprendido de Antonio Candido, segundo o crítico literário Ricardo Gaiotto, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que foi orientando de Arnoni no mestrado e no doutorado.

A abordagem consiste em compreender a estrutura de uma obra, seu enredo e personagens, em meio à estrutura social em que foi produzida. “Arnoni dizia que, antes de aplicar uma teoria a um texto, deve-se entender quais são as condições sociais que circundam o texto e como ele circula. Como Candido, ele levava sempre em conta as questões sociais e as desigualdades do Brasil”, afirma Gaiotto. O mesmo vale para os autores. “Arnoni buscava ser justo com os escritores: a questão era pensar nas condições em que o autor se encontrava ao escrever. Como viveu, como era o entorno em que publicava, que tipo de crítica recebia”, observa.

Em Lima Barreto, autor negro, combativo, ignorado por seus contemporâneos a ponto de morrer no esquecimento, Arnoni encontrou um objeto de estudo adequado a esse método. Há 10 anos, quando se aposentou, o crítico lançou Lima Barreto: Uma autobiografia literária (Editora 34). Na obra, ele recorre a diversos escritos do autor carioca, entre passagens de diários íntimos, ensaios, críticas e conferências, para contar a história do escritor por intermédio de sua própria voz.

Outra importante contribuição teórica de Arnoni foi o resgate da atuação de Sérgio Buarque de Holanda como crítico literário, que, segundo Gaiotto, não recebia a devida atenção da história literária. Buarque foi lido sobretudo a partir de sua atuação como sociólogo e historiador, mas a crítica foi uma atividade relevante em sua trajetória. Ao longo de sete anos, trabalhando em arquivos, recuperando publicações na imprensa e descobrindo referências implícitas de seus textos, Arnoni revelou a importância dessa faceta de Buarque, sua proximidade com o modernismo e sua interação com escritores e críticos do período. O resultado foi reunido nos dois volumes de O espírito e a letra: Estudos de crítica literária (Companhia das Letras, 1996), que contém a crítica literária de Buarque na íntegra. O livro recebeu o Prêmio Jabuti em 1997, na categoria ensaio e biografia.

Em 1986, Arnoni realizou estágio de pós-doutorado na Fondazione Gianjaccomo Feltrinelli, em Milão, na Itália. Lá pesquisou a relação entre a cultura anarquista e o teatro no Brasil das primeiras décadas do século XX, quando o anarquismo era a principal força do movimento operário e das primeiras greves gerais do país.  Seu interesse pela literatura anarquista prosseguiu nos anos seguintes e culminou no lançamento da coletânea Contos anarquistas (Brasiliense, 1985), republicado em 2011 como Contos anarquistas: Temas e textos da prosa libertária no Brasil (1890-1935) pela editora Martins Fontes e editado com Francisco Foot Hardman e Claudia Baeta Leal (esta última apenas na edição de 2011).

Alguns de seus ensaios mais importantes, relacionando a cena literária das primeiras décadas do século XX à realidade política do país, foram reunidos em Trincheira, palco e letras (Cosac Naify, 2004), incluindo “Boêmios, letrados e insubmissos”, em que expõe as tensões entre o cosmopolitismo de literatos brasileiros e a realidade do país, e “Quando a Itália era no Brás”, em que conectava as obras dos anarquistas aos contos de António de Alcântara Machado (1901-1935), autor de Brás, Bexiga e Barra Funda (Helios, 1927).

O convite para ingressar no corpo docente da Unicamp partiu de seu orientador, Antonio Candido, que fundou o IEL na universidade em Campinas. Arnoni juntou-se à segunda leva de professores do instituto, constituída, entre outros, por Roberto Schwarz e Marisa Lajolo, reunindo-se a nomes como Suzi Sperber, José Miguel Wisnik e Adélia Bezerra de Meneses.

Segundo seus orientandos, a influência de Candido era visível na atuação de Arnoni. “Foi um grande leitor e crítico de Antonio Candido e publicou vários ensaios sobre sua obra, da qual era um dos principais conhecedores. Ao se dedicar a Sérgio Buarque, passou pelo trabalho do próprio Candido sobre o historiador. Em seus estudos sobre história literária, revisitou a Formação da literatura brasileira. O ensaio ‘Antonio Candido, anotador à margem’ é uma reflexão sobre a leitura que Candido fez da obra de Oswald de Andrade”, afirma a crítica literária e tradutora Gênese Andrade, da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap). Andrade acrescenta que “é possível atribuir a Arnoni as qualidades que ele conferia a Candido: ‘A argúcia do crítico, a intuição do escritor e a pontualidade do cronista’”.

Andrade relata que procurou Arnoni em 2006 para pedir supervisão em um estágio pós-doutoral, sobre o poeta Haroldo de Campos (1929-2003) e sua relação com escritores hispano-americanos. O ensaísta foi receptivo e a supervisão ocorreu, embora não fosse sua área de especialidade. “Admirava muito o talento de Arnoni para analisar e discutir ensaios”, comenta. “Ele os dissecava, revelava sua estrutura, a construção do raciocínio e da argumentação de forma brilhante. Algo muito difícil, que poucos críticos brasileiros fazem com tanta competência.”

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