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Física

Um estado turbulento

Pesquisadores brasileiros observam nova versão de fenômeno quântico

FERDINAND SCHMUTZER/WIKIMEDIA COMMONSEinstein: formulação do quinto estado da matéria na década de 1920 FERDINAND SCHMUTZER/WIKIMEDIA COMMONS

De tempos em tempos a natureza revela alguns de seus segredos para quem os sabe procurar. Meses atrás pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos, interior do estado, testemunharam uma dessas revelações, descrita em artigo publicado na edição de 24 de julho da revista Physical Review Letters. Manipulando uma nuvem de gás microscópica mantida a temperaturas baixíssimas, a equipe do físico Vanderlei Salvador Bagnato detectou nesse gás um curioso fenômeno do mundo das partículas: a turbulência quântica, antes observada apenas em hélio superfluido, um líquido com propriedades um tanto incomuns.

No experimento os físicos mantiveram uma nuvem contendo de 100 mil a 200 mil átomos do elemento químico rubídio aprisionada por campos magnéticos em um espaço dezenas de vezes menor do que a cabeça de um alfinete e resfriada a uma temperatura bem próxima do zero absoluto (-273,15 graus Celsius). Nessas condições, os átomos de rubídio alcançam o menor nível de energia possível, praticamente param de se movimentar e passam a se comportar como se fossem um único superátomo com a dimensão total da nuvem – nesse caso, cerca de 150 micrômetros (milésimos de milímetro) de comprimento, o equivalente a 150 mil átomos enfileirados.

Esse superátomo é o chamado Condensado de Bose-Einstein, o quinto estado da matéria. Previsto em 1924 por Albert Einstein com base na formulação do físico indiano Satyendra Bose, o condensado só foi produzido experimentalmente em 1995 por duas equipes independentes nos Estados Unidos –  a de Eric Cornell e Carl Wierman, na Universidade do Colorado, e a de Wolfgang Ketterle, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, que receberam o Nobel pelo feito. No condensado, as partículas atômicas deixam de se comportar de acordo com as leis da física clássica, que rege o mundo macroscópico, e passam a atuar segundo as leis da mecânica quântica, com propriedades bem distintas das que têm nos outros estados conhecidos da matéria (sólido, líquido, gás ou plasma).

Agitando suavemente o condensado, a equipe de Bagnato observou a princípio o surgimento de uns poucos vórtices, regiões em que os átomos espiralam como o vento em um ciclone. Com o aumento da intensidade de agitação, porém, os vórtices, antes isolados e desconectados, passaram a se entrelaçar: geraram o que os físicos chamam de turbulência, que deixou o condensado com aparência de um queijo suíço, em que cada buraco corresponde a um vórtice.

Novos caminhos
“Antes desse experimento, não se sabia se existia turbulência no condensado de Bose-Einstein, nem como ela se manifestava”, conta Bagnato, coordenador do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica, financiado pela FAPESP, e do Instituto Nacional de Óptica e Fotônica, que tem o apoio do Ministério da Ciência e Tecnologia. Segundo Bagnato, esse resultado abre mais um caminho para se estudar a turbulência quântica, até então detectada só no hélio líquido. Ao se liquefazer a apenas 2,17 graus acima do zero absoluto, ou cerca de -271 graus Celsius, o hélio passa a apresentar características bem incomuns, como a de se espalhar em todos os sentidos sem resistência física, fenômeno conhecido como superfluidez.

Bagnato e os físicos Emanuel Henn, Jorge Seman e Kilvia Magalhães, da USP em São Carlos, e Giacomo Roati, da Universidade de Florença, na Itália, perceberam que se encontravam diante de algo novo quando submeteram o condensado a um teste chamado tempo de voo das partículas. No teste os físicos desligam por períodos brevíssimos os campos magnéticos que mantêm o gás quântico aprisionado a fim de observar como elas se espalham. Como resultado, o gás se expande. Mas não da maneira habitual.

Quando um balão de festa estoura, as partículas do gás se espalham à mesma velocidade em todos os sentidos. Com um gás quântico como o condensado, porém, é diferente: a expansão é mais rápida no sentido em que a compressão é maior. Essa característica produz um efeito facilmente observável em laboratório. Em geral com formato de charuto no espaço tridimensional – alongado na largura e mais comprimido na altura e na profundidade, por exemplo –, o condensado começa a se alargar mais rapidamente na dimensão em que é mais estreito tão logo as forças magnéticas são desligadas. Essa propriedade faz com que ele se torne, digamos, mais espichado na altura, e mais curto na largura e na profundidade, como se o charuto tivesse sofrido um giro de 90 graus.

“Apenas 15 milésimos de segundo são suficientes para ver essa mudança”, conta Kilvia. Mas não foi o que os pesquisadores observaram no condensado com turbulência, em que a velocidade de expansão foi a mesma em todas as dimensões. “Esse comportamento não é clássico nem quântico”, conta Bagnato, pioneiro na produção do Condensado de Bose-Einstein no país. Por sua importância e originalidade, o resultado apresentado na Physical Review Letters foi comentado pelos físicos Natalia Berloff, da Universidade de Cambridge, Inglaterra, e Boris Svistunov, da Universidade de Massachusetts, Estados Unidos, na seção viewpoint da Physics, outra revista da Sociedade Americana de Física (APS, na sigla em inglês).

A compreensão de como e por que a turbulência surge no mundo das partículas quânticas, segundo os físicos, deve permitir também desvendar as leis que governam a turbulência no mundo macroscópico. Se de fato ocorrer, será um grande avanço. Terror dos pilotos de aviões e comandantes de navios, a turbulência é considerada pela APS um dos maiores desafios da física moderna.

Artigo científico
Henn, E. A. et al. Emergence of Turbulence in an Oscillating Bose-Einstein Condensate. Physical Review Letters.  v. 103. p. 45.301-1/45.304-1. jul. 2009.

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