Nota: O texto abaixo, sem assinatura, encontrei-o em uma página arrancada, provavelmente, de um diário. O autor possuía – ou ainda possui – uma caligrafia miúda, feminina, com o “a” final das palavras terminando em certa linha que se alonga e, pouco antes do fim, desenha uma curva suave. A tinta azul da caneta cria um contraste antigo com o amarelecido do papel sem pauta. A folha estava dobrada ao meio, de comprido, marcando o capítulo de uma obra, editada no alfabeto gótico alemão, do filósofo Alfred Rosenberg. Descobri o livro em uma das pilhas de alfarrábios espalhadas pelo sebo do velho Gazzeau, que fechou suas portas há muitos anos. Furtivamente, escondi a folha no bolso do paletó e joguei o volume a um canto. E, desde então, tenho refletido sobre o seu conteúdo.
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Repito hoje, passados três dias, o hábito de todas as noites: sento-me à mesa de trabalho em minha biblioteca e abro este caderno. A noite silenciosa parece ainda mais espessa. E o silêncio que circunda a casa, sempre tão acolhedor, me restringe, me fere. Todos os esforços que empreendi nos últimos meses resultaram inúteis, e mesmo as duas entrevistas com o reitor não surtiram qualquer efeito, o que significa que meu projeto está arquivado.
Na verdade, nada tenho a reclamar. Depois que, há dois anos, fui preterido para ocupar a cátedra de Antropologia Social, esse tipo de reação não deveria me surpreender.
À minha frente, no nicho entre as estantes, um pequeno foco de luz ilumina o retrato do cardeal Ippolito de Medici, pintado por Tiziano Vecellio. Ippolito… Lembro-me da primeira vez em que o vi. Estávamos no palácio Pitti, em Florença, e meu pai segurava minha mão, dando-me aulas de história com a voz tonitruante que sempre me assustou. Lá estava o retrato, ao lado de um outro, talvez de Felipe II. Mas Ippolito, robusto, a composição sólida, o fundo escuro que faz a figura emergir do breu como se escapasse do torpor da morte, e suas mãos segurando firmemente o pique e a espada, e seu olhar, soberbo e altivo, desdenhoso e arrogante, seu olhar que me fascina, sobranceando o belo nariz levemente aquilino, e a barba, negra e aparada, a ressaltar o rosto agressivo, tudo nele me abalou de tal maneira que, naquela noite, para desespero de minha mãe, fui devorado pela febre, enquanto sonhava que Ippolito vinha ficar ao meu lado, na cama, tocando-me com seus dedos grossos, semelhantes aos de meu pai. Ele não sorria, devorando-me com o olhar enigmático, mantendo a sobrancelha esquerda erguida. Quantos anos eu teria? Treze? Catorze? Implorei para que retornássemos ao museu, cheguei mesmo a chorar, mas minhas súplicas não foram ouvidas. Logo a seguir viajamos para Roma, e com o final das férias obrigaram-me a retornar ao colégio interno na Suíça. Antes, contudo, pedi a mamãe que me comprasse um lindo volume sobre Tiziano, no qual eu reencontrara Ippolito ocupando uma página inteira.
Os anos passaram e, sempre que posso, retorno ao Pitti. Mas desde que me estabeleci no Brasil, nesta propriedade que pertence à minha família há gerações, encomendei a um famoso falsificador londrino esta cópia que vela por mim enquanto escrevo, leio ou preparo minhas aulas.
No entanto, depois do que aconteceu esta semana, não sei por quanto tempo continuarei aceitando humilhações na universidade. Quando defendi o doutorado, parte da banca repudiou minha tese, classificando-a como “retrógrada”, enquanto, à boca pequena, chamavam-me de “racista”. Foi o preço que paguei por minha lucidez e por tentar reviver Gobineau…
Ignorantes! Acham que conhecem tudo apenas por terem lido meia dúzia de panfletos esquerdistas! Mas se esquecem que a Antropologia deve ser uma ciência viva, dedicada a estudar o homem em seus diferentes hábitats e, principalmente, mostrar aos que se distanciaram da barbárie o que os aguarda se, movidos por seus erros, involuírem. Já lhes repeti centenas de vezes: é urgente redimensionar o conceito de raça, adaptá-lo a uma concepção realista de mundo, despojada de todo idealismo, e aceitar a hierarquia dos grupos sociais. É impossível escamotear a realidade!
Mas não desistirei. Não me concedem o terreno no campus? Engavetam meu projeto?! Pois ele nascerá aqui mesmo, nesta propriedade! Todos saberão, na prática, como o Essai sur l’inegalité des races humaines ainda é uma obra capaz de abrir os olhos da humanidade. E o que a academia me nega, dar nova vida aos projetos de Geoffroy de Saint-Hilaire, farei em proporções jamais imaginadas! Reviverei as antigas exposições etnográficas, apresentando os grupos sociais exóticos em ambientes reconstituídos meticulosamente, permitindo que os espécimens copulem e procriem. Aqui, as crianças e os jovens aprenderão as razões de muitos animais humanos continuarem acorrentados a um mundo primitivo. E quando o projeto estiver em funcionamento, com centenas de visitantes diários, convencerei o governo da necessidade de realizarmos a segunda etapa: de um lado, aperfeiçoarmos as qualidades hereditárias, e, de outro, fazermos os espécimens abandonarem suas culturas obsoletas.
Não, não será um “zoológico humano”, como me disse hoje, com cinismo, o reitor, mas uma convocação ao novo mundo, à nova era, à purificação da espécie!
Meu jovem criado palestino acaba de trazer o chá. Ele tem os olhos belos e resignados, é adoravelmente servil, e agradece-me todos os dias por tê-lo trazido de minha última viagem ao Oriente Médio. Estranhou um pouco a família de hutus que tenho treinado para os serviços pesados na propriedade, mas, apesar de não conseguirem conversar, estabeleceram uma relação amistosa, o que me alegra.
Ah, Ippolito, um dia meu esquife também será carregado por homens que se lamentam nas mais diferentes línguas, chorando aos seus deuses pela minha alma incompreendida. Não, não serão arqueiros tártaros ou mergulhadores indianos, mas talvez guerreiros maoris, cujos rostos tatuados expressem a dor de perder aquele que os salvou da ignorância. Ou, quem sabe, cavaleiros da estepe mongol vestidos de azul e dourado. Qual deles você preferiria?… Ah!, Ippolito!, meu corpo treme, minhas mãos suam! O meu sonho, confesso, é um jovem sambia, adoravelmente molestado pelos ritos de passagem daquele povo da Nova Guiné. Mas enquanto esse troféu não chega, fico com esta criança, sentada no chão, com a cabeça recostada em meu joelho. Para comprá-la, tive de subornar quatro funcionários da Funai. Mas se você estivesse aqui para vê-la! Que pureza de olhar! Que fragilidade de gestos! Ela chegou com as mãos ainda machucadas pelas formigas tucandeiras. Segundo um dos funcionários, coronel aposentado do Exército, este menino não suportou o rito de passagem de sua tribo, os Saterés-Maués, e seria relegado à condição de meio homem. Ora… Se deve ser assim, Ippolito, que ele seja, então, quase uma fêmea, mas aqui, sob os nossos cuidados, conhecendo o carinho que só homens civilizados podem demonstrar…
Rodrigo Gurgel é escritor e editor e foi um dos dez ganhadores do Concurso de Contos “450 anos de São Paulo”, promovido pelo jornal O Estado de S. Paulo em 2004.
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