Há três décadas, crianças e adolescentes tornaram-se sujeitos de direito no Brasil. Com a entrada em vigor da Lei nº 8.069, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) passou a assegurar “as oportunidades e facilidades” para que lhes seja facultado “o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”. Desde então, indivíduos de 0 a 18 anos deixaram de ser vistos como eventualmente merecedores de caridade e assistencialismo ou objeto de medidas judiciais. Instituições foram criadas e políticas públicas têm sido adotadas para garantir seus direitos, proporcionando mudanças que, na avaliação de especialistas, seguem reverberando em múltiplos aspectos da infância no país. O estabelecimento de conselhos tutelares e de direitos, que propiciou a redistribuição do poder de decisão, antes centrado na figura do juiz, a implementação de mecanismos de transparência no sistema de adoção e a determinação de que adolescentes autores de atos infracionais e aqueles vítimas de situação de abandono passassem a ser acolhidos em instituições distintas são algumas dessas conquistas. Permanecem desafiadores o combate à violência e estratégias que possibilitem dar voz a crianças e adolescentes em todos os processos judiciais, entre outros pontos.
Sancionado em 13 de julho de 1990 pelo então presidente Fernando Collor de Mello, o ECA explicita e regulamenta o artigo 227 da Constituição Federal de 1988. O estatuto é reconhecido como uma das primeiras legislações do mundo a adaptar os princípios da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) em 20 de novembro de 1989. A CDC entrou em vigor em setembro de 1990 e se constitui no instrumento legal que promove a proteção da criança, tendo sido ratificada por 196 países. “O protagonismo brasileiro em incorporar os princípios da convenção em legislação federal tornou o país líder internacional em sua adaptação”, observa o coordenador do programa de cidadania dos adolescentes do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Brasil, Mario Volpi. Segundo ele, o ECA inspirou a criação de legislação similar em pelo menos 15 países da América Latina, entre eles Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai. A exemplo do Brasil, com a adoção da normativa, esses países também obtiveram conquistas importantes como a redução da mortalidade infantil e a ampliação do acesso à educação.
“O ECA contém 236 artigos. Metade deles já foi modificada, sempre no sentido de ampliar seu alcance”, informa o pedagogo Roberto da Silva, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP). O tópico mais alterado do ECA diz respeito a questões de família e adoção. “Até 2005, o Brasil era considerado um dos principais exportadores de crianças para adoção no mundo. A situação começou a mudar com as diretrizes estabelecidas pelo estatuto”, afirma Silva, que viveu em abrigos a partir dos 5 anos de idade, teve passagens pela Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), pelo sistema prisional e hoje coordena grupo de pesquisa e ministra disciplina sobre teoria e prática do ECA.
Balanço dos 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança, feito pelo Unicef, lembra que a legislação brasileira foi adotada em um momento em que o país, assim como outras nações em desenvolvimento, enfrentava graves problemas de tráfico, venda, sequestro e roubo de crianças, enviadas para o mercado ilegal de adoção internacional. Com a vigência do estatuto, em cada comarca passou a ser obrigatório o cadastro de adultos aptos a adotar e de crianças disponíveis para adoção. A permanência das crianças no país tornou-se prioritária. Na esteira desse processo, em 2009 a Lei nº 12.010, também conhecida como Lei Nacional de Adoção, modificou 54 dos artigos do ECA. Além dos cadastros existentes nas comarcas, tornaram-se obrigatórios os registros estaduais e nacional. “O sistema de adoção tornou-se mais transparente e passou a seguir regras que evitam a discriminação. Não é mais possível, por exemplo, furar a fila para antecipar um processo”, observa o advogado Rubens Naves. Isso só se tornou viável, pontua o professor aposentado da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), à medida que foram adotadas políticas públicas para assegurar os direitos estabelecidos pelo ECA, como ações para ampliar a cobertura vacinal e incentivar o aleitamento materno, contribuindo para a redução da mortalidade infantil.
Em relação a mudanças recentes incorporadas ao estatuto, Josiane Rose Petry Veronese, titular da disciplina de Direito da Criança e do Adolescente da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), destaca que a Lei Nacional de Adoção também passou a determinar que os processos de destituição do poder familiar, capazes de viabilizar a adoção de uma criança por outra família, não podem se estender por mais de 180 dias. As estatísticas indicam que crianças com até 6 anos são adotadas com mais facilidade. A partir dessa idade, a acolhida se torna cada vez mais difícil. “Agilizar o processo de destituição do poder familiar aumenta as chances de adoção”, justifica a pedagoga Amanda Rodrigues de Souza Colozio. Em sua pesquisa de doutorado em educação especial na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) ela estuda a situação de crianças e adolescentes com altas capacidades intelectuais, de psicomotricidade, socioemocionais, entre outras, abrigados em instituições de acolhimento. “No âmbito da minha pesquisa de doutorado, acompanho um aluno de 13 anos com indicação de alta capacidade de aprendizagem e que desde os 8 é retirado por assistentes sociais de sua família biológica, por causa da situação de dependência química enfrentada pela mãe. Hoje, ele vive em uma instituição de acolhimento e está na quarta tentativa de reintegração, com grande possibilidade de destituição familiar. Como já é adolescente, as chances de ser adotado são mínimas”, lamenta.
No Brasil, as origens do atendimento a crianças e adolescentes em serviços de acolhimento remontam ao período colonial, quando padres jesuítas fundaram instituições para receber indígenas. A partir de 1825, na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo passou a funcionar a chamada “roda dos expostos”, espécie de plataforma giratória instalada na fachada para receber crianças não desejadas pelos pais. De acordo com dados da instituição, até 1950, enquanto esteve em funcionamento, a “roda dos expostos” recebeu cerca de 4,6 mil bebês. Antes do ECA, recorda Colozio, o Código de Menores, de 1979, dispunha sobre a proteção e vigilância do “menor” em situação irregular, a partir de uma perspectiva punitiva e assistencialista. Não havia distinção entre crianças abandonadas, órfãs, fora da escola e adolescentes em conflito com a lei. Todos recebiam o mesmo tratamento: eram enviados para instituições nas quais permaneciam internados, sob tutela do Estado.
“As legislações que antecederam o estatuto estipulavam medidas para prevenir ou recuperar o jovem de situações de delinquência. Por considerar que crianças e adolescentes abandonados apresentavam potencial de envolvimento com atos infracionais, a medida de internação era aplicada tanto para eles quanto para os que cometiam crimes”, detalha a socióloga Bruna Gisi, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), que pesquisa justiça juvenil há mais de 10 anos. Gisi explica que o ECA propiciou uma mudança de enquadramento, ao diferenciar quem comete atos infracionais de adolescentes que são vítimas de violação de direitos. Juliana Vinuto, do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), observa que o Código de Menores determinava a existência de grandes complexos de internação, como a Febem, que chegou a abrigar em São Paulo milhares de adolescentes em situação irregular, até ser extinta, em 2006. “Antes do ECA, os jovens eram vistos como objeto de intervenção. Eles ingressavam nas unidades de internação por diferentes motivos. O objetivo era mudá-los, muitas vezes com uso de violência”, afirma. O ECA estabeleceu que as unidades de internação, exclusivas para aqueles acusados de atos infracionais, podem abrigar no máximo 90 adolescentes, mas isso nem sempre é observado. Muitas instituições enfrentam problemas de superlotação.
Léo Ramos Chaves“Por ser um estatuto, ele é menos engessado do que os códigos civil ou penal, de maneira que é mais fácil incorporar melhorias”, considera Veronese, da UFSC. A socióloga Enid Rocha Andrade da Silva, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), concorda. Em sua avaliação, o ECA está em constante desenvolvimento, respondendo a demandas da sociedade. Além da Lei Nacional de Adoção, Andrade da Silva aponta outras normativas adicionadas recentemente ao estatuto, como a Lei nº 12.594, a Lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), que desde 2012 organiza a aplicação de medidas socioeducativas; a Lei nº 13.010, que se tornou conhecida como a Lei Menino Bernardo e há seis anos proíbe a violência física; e o Estatuto da Primeira Infância, conjunto de normas adotado em 2016 que dispõe sobre os cuidados básicos necessários ao desenvolvimento até os 6 anos de idade. “Em 2018, o estatuto acolheu leis que fortalecem o combate contra crimes de pedofilia pela internet estabelecendo, por exemplo, procedimentos de infiltração de agentes de polícia”, observa. São do ano passado outras três mudanças relevantes, destaca Andrade da Silva: a instituição da Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência, a criação do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas e o aumento da idade mínima para que uma criança ou adolescente viaje desacompanhado, sem autorização judicial.
Para assegurar a rede de proteção prevista no documento legal, nos últimos 30 anos o ECA impulsionou a criação de instituições, como os conselhos tutelares e os conselhos dos direitos da criança e do adolescente. “Com seus titulares escolhidos pela comunidade, esses órgãos abriram a possibilidade de participação da sociedade civil na tomada de decisões”, detalha Vicente de Paula Faleiros, formado em direito e serviço social e professor titular aposentado da Universidade de Brasília (UnB). Dentre as principais atribuições dos conselhos tutelares estão a aplicação de medidas de proteção para crianças e adolescentes vítimas de violência; o encaminhamento de denúncias a respeito da violação de direitos; o estabelecimento de providências para que sejam cumpridas medidas protetivas determinadas pela justiça; a requisição de certidões de nascimento e óbito; e a fiscalização das condições nas instituições de acolhimento. Um exemplo de como as mudanças têm ajudado na proteção aos jovens ocorreu nos Jardins, bairro nobre de São Paulo. Motivado por denúncias de moradores e comerciantes, no final de agosto o Ministério Público (MP) acionou o conselho tutelar para investigar casos de trabalho infantil na região. Segundo o MP, a pandemia agravou essa realidade na capital paulista – entre maio e julho houve um aumento de 26% no número de casos registrados.
“Antes do estatuto, os juízes de menores, hoje denominados juízes das varas de infância e juventude, detinham 100% do poder de decisão em processos civis e criminais envolvendo crianças e adolescentes”, observa Roberto da Silva, da FE-USP. Com o advento do estatuto, que estipulou a criação dos conselhos municipais da criança e do adolescente e dos conselhos tutelares, essa realidade mudou completamente. Hoje praticamente todos os municípios do país dispõem de um órgão desse tipo, cuja função é garantir o cumprimento dos direitos da população com menos de 18 anos. De acordo com Silva, os conselhos foram fundamentais no esforço de redistribuição do poder decisório, em diferentes instâncias da sociedade. “Com isso, o estatuto retirou das mãos dos juízes 80% dos seus poderes”, estima Silva. Hoje, os juízes podem se pronunciar em casos de mudança de guarda ou tutela e no julgamento de atos infracionais. “Todos os outros assuntos envolvendo a infância passaram a ser arbitrados por instâncias da sociedade civil ou do Estado”, diz. Durante seu doutorado, Gisi, da USP, realizou pesquisa de campo no Fórum do Brás das Varas Especiais da Infância e da Juventude, em São Paulo. “Entrevistei alguns juízes e acompanhei diversas audiências, constatando que nem todos mostram um discurso afinado com os princípios do ECA, adotando uma lógica mais repressiva e punitivista ao tomar as decisões”, relata.
Pesquisador dos direitos da infância há mais de 20 anos, Faleiros diz que a maior parte das denúncias de abuso sexual são encaminhadas aos conselhos tutelares, que também estão habilitados a exigir a matrícula de crianças nas escolas. “Tem sido decisiva a contribuição do ECA para o acesso à educação”, observa Volpi, do Unicef. “Se antes dele era necessário recorrer a um processo judicial para matricular uma criança que estava fora da escola por negligência dos responsáveis legais, hoje basta acionar o conselho tutelar, que pode realizar a matrícula e tomar as medidas para que a criança passe a frequentar a escola”, informa. Constituem atribuições do conselho tutelar a participação na elaboração do orçamento do município para o desenvolvimento de políticas de educação, saúde, assistência social e segurança pública voltadas a crianças e adolescentes.
Além do protagonismo conferido a crianças e adolescentes, a adoção do ECA também colocou o Brasil em destaque por ter sido uma das primeiras legislações do mundo a permitir a discussão judicial de direitos sociais desses cidadãos, em áreas como saúde e educação. Documento do Unicef indica que, a partir da entrada em vigor do estatuto, decisões judiciais passaram a assegurar a doação de próteses e órteses por parte do Estado, garantiram a contratação de professores de libras e auxiliares para acompanhar crianças autistas e com deficiência em escolas públicas e ampliaram as vagas em creches. Reside aí, na avaliação do advogado Rubens Naves, da PUC-SP, um dos grandes méritos da legislação. Segundo ele, foi com base no ECA que a partir de 2011 mães de crianças sem acesso à educação infantil começaram a processar a prefeitura de São Paulo para conseguir vagas para seus filhos. Tais iniciativas causaram impacto significativo na redução da fila de espera, avalia Naves, que também integra o comitê de assessoramento da Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). Em 2016, mais de 103 mil crianças aguardavam vagas em creches da cidade. Outras 3.400 esperavam para ser matriculadas na pré-escola, conforme dados da Secretaria Municipal de Educação (SME). Em julho deste ano, a fila de espera por vagas em creches tinha 22,3 mil crianças, conforme dados da SME.
O reconhecimento de crianças e adolescentes como titulares de direitos mobilizou o Estado a estabelecer políticas públicas para assegurar seu cumprimento em distintas áreas. Na educação, os avanços são evidentes: educação básica obrigatória para a faixa entre 4 e 17 anos, ampliação do ensino fundamental para 9 anos e aprovação do Plano Nacional de Educação, em 2014, que estabeleceu 20 metas para melhorar a educação pública no país, até 2024. Assim, se em 1990 quase 20% das crianças de 7 a 14 anos (idade obrigatória, na época) estavam fora da sala de aula, em 2018, 4,2% das crianças na mesma faixa não frequentavam uma escola, conforme relatório do Unicef produzido com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). O documento indica ainda que houve significativa queda na taxa média de analfabetismo entre 10 e 18 anos de idade: de 12,5%, em 1990, para 1,4%, em 2013.
O estabelecimento de um novo modelo de responsabilização de adolescentes entre 12 e 18 anos acusados da prática de atos infracionais também é considerado um dos marcos do ECA. Atos infracionais envolvem crimes ou contravenções penais cometidos por pessoas com menos de 18 anos. Partindo da ideia de que se trata de uma pessoa em desenvolvimento, o estatuto determinou que o jovem só pode ser submetido a medidas socioeducativas se houver processo e condenação, depois de comprovada a autoria e a materialidade do ato infracional. O Código de Menores, de 1979, funcionava por meio da lógica da “doutrina da situação irregular”, ou seja, o Estado acreditava que indivíduos infratores deveriam ser segregados e afastados do convívio social como forma de proteger a sociedade. Em decorrência dessa premissa, muitos deles eram internados sem direito à defesa. Além disso, a internação em centros de atendimento socioeducativo, como a Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), em São Paulo – que substituiu a Febem –, somente deve ser aplicada em casos de atos de grave violência, como homicídios ou estupros. Gisi, da USP, aponta que “o ECA trouxe garantia processual para preservar os adolescentes da intervenção do Estado em suas vidas”. Como exemplo, cita o prazo máximo de três anos de internação em uma instituição de atendimento socioeducativo. “Antes essas penas podiam se estender por muitos anos, até o jovem completar 18 anos.” Isso mudou. “Com o Sinase, os jovens podem sofrer vários processos, mas as penas são unificadas e limitadas a uma quantidade máxima de anos”, compara Veronese, da UFSC.
Apesar dos avanços, o tratamento de jovens em conflito com a lei ainda enfrenta desafios, pondera Vinuto, da UFF. Ela afirma que apenas 15% dos adolescentes internados em centros de atendimento socioeducativo cometeram crimes de homicídio ou estupro, sendo que a maioria cumpre pena por roubo ou tráfico de drogas – atos infracionais que, de acordo com o ECA, não preveem pena de internação em centros de atendimento socioeducativo. Outro problema envolve a ideia de socioeducação, que surgiu com o estatuto e prevê o desenvolvimento de ações pedagógicas e sociais articuladas, que permitam ao jovem reconstruir seus projetos de vida. Um dos pilares do funcionamento da socioeducação é garantir a presença dos adolescentes nas escolas. No entanto, segundo resultados da tese de doutorado de Vinuto, a prática é muitas vezes inviabilizada pela superlotação e escassez de condições materiais nas instituições de ensino.
O tratamento destinado a autores de atos infracionais é apenas um aspecto passível de melhoria. Outro, na perspectiva de Veronese, da UFSC, envolve a necessidade de criar novos mecanismos para que crianças em situação de violência sejam ouvidas em processos judiciais. Nesse sentido, desde 2017 a Lei nº 13.431, conhecida como Lei da Escuta Especializada, tem motivado municípios como São Paulo, Rio de Janeiro e Florianópolis a criar estruturas físicas nas Varas da Infância e Juventude e a contratar psicólogos e assistentes sociais para assegurar essa participação de maneira adequada, evitando situações em que a criança se sinta intimidada ou que tenha de repetir seu depoimento diversas vezes. Outra dificuldade diz respeito aos castigos físicos, permitidos pelo Código Civil até 2002, mas expressamente proibido desde a promulgação da Lei Menino Bernardo. “Uma atitude ainda arraigada envolve a ideia de que é possível se apoderar de forma violenta dos corpos das crianças para corrigir comportamentos ou educar”, analisa.
Léo Ramos ChavesOs homicídios de adolescentes constituem outro difícil desafio à implantação do ECA. Entre 1990 e 2017, os assassinatos de jovens entre 10 e 19 anos mais do que dobrou. Passou de 5 mil para 11,8 mil mortes ao ano, segundo informações do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde do Brasil (Datasus). Em 2018, houve uma pequena redução, mas os dados seguiram altos: foram 9,7 mil mortes, sendo que 81% das vítimas eram negras. “A exemplo das demais, as crianças e os adolescentes negros e em situação de vulnerabilidade têm seus direitos garantidos pelo ECA. Porém os dados relativos a situações de violência, como os assassinatos, indicam que esses direitos são violados constantemente”, afirma Volpi.
A chegada da pandemia agravou essa realidade. No Brasil, segundo o portal da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, que reúne dados dos serviços Disque 100 e Disque 180, violações de direitos de crianças e adolescentes aumentaram nos últimos meses. De março a maio, o Disque 100 registrou 85,2 mil denúncias, um crescimento de 11% se comparado aos registros de janeiro a junho de 2019. Mais de 70% dos casos de violência sexual são praticados por familiares das vítimas. Além disso, com as escolas fechadas e a piora das condições familiares de subsistência, o trabalho infantil, que apresentou reduções significativas depois do ECA, também tende a aumentar. “É necessário investir com urgência para garantir condições seguras à reabertura das escolas, por meio de análises da situação epidemiológica em cada região, o estabelecimento de condições sanitárias adequadas e a preparação de alunos e profissionais de educação para retomar as atividades pedagógicas com segurança”, defende. Segundo Volpi, em parceria com a União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), o Unicef está analisando quais unidades da federação reúnem condições para reabertura das instituições de ensino. “O ECA é muito claro em relação a um princípio: o de que para assegurar um direito não se pode violar outro. Ou seja, o direito à saúde é tão importante quanto o direito à educação”, finaliza.
No Reino Unido, as primeiras instituições dedicadas à responsabilização penal de crianças e adolescentes e ao acolhimento de indivíduos em situação de abandono foram criadas em meados do século XIX, seguidas da instituição dos primeiros tribunais de justiça juvenil com o Children Act, de 1908. Em pesquisa realizada entre 2017 e 2018 no King’s College London, na Inglaterra, a socióloga Liana de Paula, da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH-Unifesp), estudou mudanças recentes na história da justiça juvenil no país, comparando com a situação brasileira. No Brasil, em 1927 o primeiro Código de Menores propunha medidas para garantir que os filhos de trabalhadores pobres não ficassem “perambulando” pelas ruas das cidades e fossem enviados a instituições que os preparassem para se tornar força de trabalho. “No Reino Unido, até o final do século XX, a justiça juvenil se desenvolvia a partir da ideia de proporcionar bem-estar social como forma de evitar a delinquência. Desde o final do século XIX, os jovens eram julgados e tratados em um sistema diferente dos adultos”, comenta. Porém, em 1993, o assassinato do menino James Bulger, que ainda não havia completado 2 anos de idade, por duas crianças de 10 anos, provocou uma reinterpretação do sistema inglês, que passou a adotar uma lógica punitivista e não mais orientada à ideia de proteção. Alterada a legislação federal, desde então e para determinados crimes, jovens podem ser julgados e sentenciados às mesmas penas dos adultos. “Com o endurecimento da legislação, mais adolescentes passaram a ser internados a partir da década de 1990, o que gerou crescimento da reincidência de crimes, além do aumento dos custos do Estado na manutenção do sistema. Por causa desses problemas, hoje a Inglaterra busca formas de repensar sua estrutura de justiça juvenil”, informa.
Projetos
1. Verificação de alto potencial em crianças e adolescentes em situação de acolhimento (nº 17/05320-4); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisadora responsável Rosemeire de Araújo Rangni (Ufscar); Bolsista Amanda Rodrigues de Souza Colozio; Investimento R$ 226.049,23.
2. A racionalidade prática do isolamento institucional: Um estudo da execução da medida socioeducativa de internação em São Paulo (nº 12/25083-3); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Marcos César Alvarez (USP); Bolsista Bruna Gisi Martins de Almeida; Investimento R$ 122.231,59.
Artigos científicos
NAVES, R. et al. Direito ao presente: 30 anos do ECA num contexto de pandemia. Set. 2020. Inédito.
VINUTO, J. et al. O adolescente em conflito com a lei em relatórios institucionais. Pastas e prontuários do “Complexo do Tatuapé” (Febem, São Paulo/SP, 1990-2006). Tempo social. v.30, n.1, p.233-257, 2018.
SILVA, E. R. A. ECA 30 anos: muitas conquistas, muitos desafios. Atlas da Violência. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Brasília, 2020.
Documento
30 anos da Convenção sobre os direitos da criança – Avanços e desafios para meninos e meninas no Brasil. Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Brasília, 2019.