“Não trabalhamos para os sociólogos europeus ou norte-americanos, senão indiretamente e como contingência da própria natureza do labor científico. O verdadeiro sentido de nossas contribuições à sociologia, por modestas ou grandiosas que sejam, só adquire plenitude quando ligado à necessidade de criar um novo estilo de pensamento e de trabalho na investigação da realidade social, que seja assimilável e construtivo para as futuras gerações de especialistas brasileiros, as quais não devem receber os defeitos e as limitações da herança que nos coube.” Assim escreveu, em 1956, no artigo “A sociologia no Brasil”, um dos mais importantes intelectuais brasileiros, morto em 1995 e que completaria 100 anos em 22 de julho: o sociólogo Florestan Fernandes.
“Florestan não queria ser subserviente a autores estrangeiros e estava o tempo todo se perguntando o que era fazer sociologia em um país situado na periferia do capitalismo”, aponta a socióloga Elide Rugai Bastos, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp). Especialista em sua obra, no momento ela finaliza um livro sobre a produção do intelectual paulistano, cujo título provisório é A terceira margem da sociologia, em paráfrase ao conto de Guimarães Rosa (1908-1967). “Florestan buscava uma saída diferente daquela proposta pelos países metropolitanos. Hoje a sociologia contemporânea em países periféricos está voltada para questões como a crítica ao eurocentrismo, mas na época, anos 1940 e 1950, tratava-se de uma visão original e ousada.”
O ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso, um dos principais discípulos do sociólogo, concorda. “Florestan Fernandes sabia da distinção do que [o economista argentino Raúl] Prebisch chamava de centro e periferia. Seu foco olhava o que ocorria na periferia, mas sabia que se deveria pensar ‘o todo’. Ou seja, sua visão teórica tinha um T maiúsculo. Nunca foi um sociólogo ‘caipira’, mas, sim, um sociólogo sem adjetivos outros dos que são requeridos pela ciência: rigor nas análises”, declarou, por e-mail a Pesquisa FAPESP. “Ao longo da minha trajetória acadêmica, ele me mostrou que sem conceito, sem teoria, não se compreendem os fatos da vida. Entretanto, o conceito não dispensa que o cientista ‘mergulhe’ no concreto, na vida, na relação entre as pessoas.”
Infância pobre
Florestan Fernandes ingressou de forma singular no meio acadêmico. Criado pela mãe, imigrante portuguesa que fazia serviços domésticos em casas de família, começou a trabalhar ainda na infância como engraxate e aprendiz de alfaiate. Aos 17 anos, quando era garçom no Bar Bidu, no centro de São Paulo, foi incentivado pelos intelectuais que frequentavam o estabelecimento a prosseguir seus estudos. Matriculou-se no Madureza, espécie de supletivo para jovens e adultos da época, que concluiu em 1941. Nesse mesmo ano ingressou no curso de ciências sociais da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL-USP). Quatro anos depois, tornou-se professor assistente do catedrático Fernando de Azevedo (1894-1974) na cadeira de Sociologia II da instituição, ao lado do também sociólogo e futuro crítico literário Antonio Candido (1918-2017), de quem seria amigo por cinco décadas. A amizade entre os dois é tema de Vicente e Antonio, peça teatral de Oswaldo Mendes, que o jornalista Florestan Fernandes Júnior, filho do sociólogo, tenta montar ainda este ano. “Vicente era o nome que os patrões da minha avó usavam para chamar meu pai. Eles achavam que o nome Florestan, personagem da ópera Fidelio, de Beethoven [1770-1827], não combinava com o filho da empregada”, conta o jornalista.
“No Brasil, a formação em sociologia e ciências sociais teve início em 1933”, observa Jacob Lima, presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia. “O grande legado de Florestan Fernandes consistiu em sua preocupação com o rigor acadêmico da pesquisa e da formação em sociologia.” Na avaliação da socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda, diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Florestan Fernandes é figura central para se compreender a formação das ciências sociais não apenas naquela instituição, mas no Brasil. “Além de tratar a sociologia como ciência, acredito que sua grande inovação foi procurar tentar entender o Brasil a partir do ponto de vista das camadas populares, dos despossuídos da modernização brasileira”, afirma Arruda, estudiosa de sua obra.
Um dos melhores exemplos disso, indica Arruda, é o livro A revolução burguesa no Brasil, publicado em 1975 e que acaba de ser reeditado pela Coleção Florestan Fernandes, da editora Contracorrente. “É fundamental recolocar a obra dele no debate público nesse momento de crise da democracia e obscurantismo”, defende o editor Rafael Valim, que idealizou a série com Florestan Fernandes Júnior. “Nesse livro, Florestan faz uma grande interpretação do Brasil a partir do período colonial”, observa Bernardo Ricupero, professor do Departamento de Ciência Política da FFLCH e coordenador da coleção. “A partir do conceito de autocracia, ele mostra que a revolução burguesa brasileira, ao contrário do que se imaginava que ocorreu na França, por exemplo, não rompeu com paradigmas do passado”, observa. “Pelo contrário, a burguesia se alinhou aos velhos dirigentes da oligarquia e se apossou do poder para defender interesses particularistas. Esse modelo, como ilumina o livro, vigora no país independentemente do regime político, seja uma ditadura ou uma democracia.”