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Desenvolvimento

Um norte para a indústria

Livros discutem as estratégias para enfrentar a desindustrialização da economia brasileira

040-044_Desindustrializacão_239-01A indústria de transformação, aquela que converte matérias-primas em produtos, era responsável em meados da década de 1980 por um quarto do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. Em 2004, essa participação caiu para 17,9% e, em 2014, chegou a 10,9%, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As raízes desse fenômeno – a desindustrialização que assombra várias economias além da brasileira – e as políticas capazes de revertê-lo vêm sendo objeto de intenso debate acadêmico no país. Três livros lançados recentemente mostram, de forma complementar, os argumentos e os dissensos na mesa de discussão. Lançado em 2013, a obra O futuro da indústria no Brasil – Desindustrialização em debate, organizada pelos economistas Edmar Bacha e Monica Baumgarten de Bolle, é crítica em relação aos rumos da política industrial adotada no Brasil no passado recente. Na análise de seus 17 capítulos, é recorrente a ideia de que, para dar mais competitividade à indústria, é preciso garantir maior abertura da economia e adotar políticas de incentivo que beneficiem todos os segmentos, tais como a simplificação de regras tributárias e taxas de câmbio competitivas, e não apenas setores selecionados. O livro é resultado de dois seminários organizados pelo Instituto de Estudos de Política Econômica/Casa das Garças, dirigida por Bacha, no Rio de Janeiro, em abril e junho de 2012.

Já a obra Indústria e desenvolvimento produtivo no Brasil, lançada em 2015, reúne artigos com uma visão menos cética e mais diversa sobre a utilidade de políticas de estímulo à atividade industrial, ainda que os autores estejam longe de chegar a um consenso sobre suas características. O livro foi organizado por Nelson Marconi e Maurício Canedo Pinheiro, professores da Fundação Getulio Vargas, Laura Carvalho, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP), e Nelson Barbosa, o atual ministro da Fazenda. Por fim, a obra Indústria, crescimento e desenvolvimento, organizada por Flávio Vilela Vieira, reúne os resultados de um projeto de pesquisa que envolveu professores do Instituto de Economia da Universidade Federal de Uberlândia sobre a relação entre o setor industrial e o desenvolvimento econômico.

Se há um denominador comum nos três volumes, é a ideia de que a perda acentuada de fôlego da indústria é prejudicial para o país, pelo potencial que o setor tem de produzir inovações, de obter ganhos de produtividade e de gerar riqueza. Mas alguns economistas esgrimem argumentos que contestam ideias arraigadas, como a de que a importância do setor de serviços seja um fator de fragilidade para o desenvolvimento econômico ou mesmo que o aumento das exportações de commodities, em detrimento de manufaturados, represente um sinal de regressão ao passado.

Em um dos capítulos de O futuro da indústria no Brasil, Sergio Lazzarini, Marcos Jank e Carlos Inoue sustentam que o boom de commodities de que o país se beneficiou na década passada é uma “bênção”, e não uma maldição, como defendem algumas correntes. Em 2001, commodities agrícolas, combustíveis, minerais e metais respondiam por menos da metade da pauta exportadora brasileira – 10 anos depois, esse quinhão subiu para 70%. Os autores demonstram que algumas commodities brasileiras têm valor adicionado comparável ou até superior ao de produtos industrializados, pois vêm obtendo ganhos de produtividade garantidos por inovações e seus preços internacionais estão num patamar mais elevado do que décadas atrás.

“Se o produto é resultado de competências construídas localmente e está inserido numa cadeia de produção global, é irrelevante se é uma commodity ou não. A soja, por exemplo, está inserida numa cadeia. Precisa de fertilizante, de máquinas e de pesquisa. Essas coisas têm de ser desenvolvidas. Você pode exportar soja in natura e ter toda uma cadeia produtiva dando sustentação a isso”, afirma Sérgio Lazzarini, que é professor de Organização e Estratégia do Insper – Instituto de Ensino e Pesquisa. “Há muito mais espaço para estimular mais pesquisa tecnológica atrelada às cadeias de commodities, em vez de dirigir crédito e incentivos tributários para outras cadeias com menor potencial competitivo”, sustentam os autores, que propõem o uso de receitas públicas, como os royalties da exploração de petróleo, para investir em fundos que permitam diversificar a economia – e não deixem o país refém da oscilação de preços de um grupo restrito de commodities. O trio de autores sugere que só é desejável investir em indústrias de beneficiamento de commodities se esse processo adicionar valor e produtividade ao produto final, o que nem sempre acontece.

Autor de um capítulo intitulado “Padrões de política industrial: A velha, a nova e a brasileira”, o economista Mansueto de Almeida critica as políticas de incentivos setoriais adotadas pelo governo brasileiro na última década. Segundo ele, elas se baseiam no modelo adotado pela Coreia do Sul nos anos 1960 e 1970. “Com o agravante de que, em vez de promover uma diversificação produtiva, concede crédito subsidiado para empresas grandes que atuam em setores nos quais o Brasil já possui claras vantagens competitivas, como alimentos, petróleo e mineração”, diz. Na sua avaliação, investir em setores escolhidos fazia sentido num tempo em que as cadeias produtivas eram nacionais. “Não são mais. Cada parte do processo está em um país ou numa parte do mundo”, afirma. Ele defende uma política de desenvolvimento produtivo que torne a economia como um todo mais funcional, melhorando a infraestrutura, simplificando regras burocráticas e reduzindo a carga tributária de maneira horizontal. Em paralelo, o papel do governo deve ser o de fomentar uma política agressiva de apoio à inovação que, segundo diz, é muito menos onerosa do que as políticas setoriais.

Para Mariano Laplane, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), há exageros na crítica ao estímulo concedido pelo governo a grandes empresas brasileiras. Ele afirma que é importante para o país que conglomerados nacionais expandam seus negócios no exterior e se tornem globais. “Há ganhos de interesse público quando uma indústria é estimulada a se globalizar e se tornar mais inovadora. Esse é um tipo de política industrial contemporânea que muitos países, como China e Coreia do Sul, estão fazendo”, afirma Laplane. “Vivíamos num mundo dicotômico, em que, de um lado, havia quem defendesse que era preciso fechar a economia e substituir importações e, de outro, quem achasse que qualquer tipo de política industrial era um crime. Nós superamos e conseguimos fazer uma política industrial sofisticada, que não é nem a dos anos 1950 nem o laissez-faire dos anos 1990”, diz o pesquisador, que é presidente do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), instituição ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.

040-044_Desindustrializacão_239-02Laplane aponta o que considera um vício no debate sobre estratégias de reindustrialização. “Há uma confusão entre política industrial e políticas contra a crise. Política industrial diz respeito a estimular a inovação e tornar as empresas mais competitivas. Tem a ver com mudanças na estrutura industrial, em favor do aumento da inovação, do dinamismo e da produtividade. Não se confunde com políticas de combate à recessão, como desoneração da folha de pagamentos ou o aumento de impostos sobre a importação de veículos”, afirma. “Nós avançamos na sofisticação dos instrumentos da política de inovação e melhorou o marco legal. Estamos dando os primeiros passos nesse sentido. Boa parte das nossas empresas, nacionais ou estrangeiras, acordou para esse tema há pouco tempo”, afirma. Para avançar mais rápido, é necessário investir mais recursos em pesquisa e desenvolvimento (P&D), nas empresas, nas universidades e nos institutos de pesquisa. “Parte desse esforço tem de ser feita por recursos públicos e o dinheiro agora está faltando. É imprescindível ganhar o apoio da opinião pública para que a inovação seja vista como prioridade”, afirma Laplane, que escreveu um capítulo sobre inovação e competitividade em Indústria e desenvolvimento produtivo no Brasil.

Laplane e os demais autores do livro participaram de um seminário, realizado em São Paulo em maio de 2014 pelo Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) e a Escola de Economia de São Paulo, ambos da Fundação Getulio Vargas (FGV), e foram convidados a escrever sobre os temas que apresentaram. “O objetivo do seminário era levantar a discussão para produzir o livro, mas nem todos os convidados tiveram disponibilidade de escrever capítulos. Com isso, houve uma concentração um pouco maior de autores mais simpáticos às políticas industriais”, diz Maurício Canedo Pinheiro, pesquisador do Ibre, que organizou o livro da FGV e também contribuiu com um capítulo para a obra da Casa das Garças. “São dois livros que conversam entre si e são úteis para a compreensão e o debate sobre o tema.” Um dos desdobramentos do seminário da FGV foi a criação de um grupo de estudos sobre reindustrialização no âmbito da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq). Um novo seminário deve acontecer neste ano, provavelmente em parceria com a  Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), e gerar um novo livro, voltado para a proposição de políticas.

No trabalho que escreveu para o livro da FGV, Pinheiro abordou a política industrial brasileira recente para o setor de petróleo e gás. Constatou que a determinação de que serviços e compras fossem feitos de empresas brasileiras, a chamada regra de conteúdo local, não foi capaz de garantir a inserção dessas companhias nacionais em cadeias internacionais de fornecedores. “Política industrial baseada em algum tipo de proteção só funciona se tiver data para acabar, se servir para expor as empresas à competição”, diz. “As empresas do segmento de petróleo e gás que produzem no Brasil competem com empresas de outros lugares que compram os insumos onde quiser. Como competir com elas?” Na avaliação de Pinheiro, só faz sentido beneficiar setores se eles têm chance de desenvolver competitividade num prazo razoável. “E certamente não são setores intensivos em mão de obra, porque há muitos países com mão de obra intensiva muito barata, a não ser que a gente aceite trabalhar segundo as regras deles, com salários baixíssimos”, afirma.

Outro organizador da obra, o professor da Escola de Economia de São Paulo da FGV Nelson Marconi, sustenta que é um desperdício de recursos desenhar uma política industrial sem alinhar primeiro alguns indicadores macroeconômicos. “É preciso ter uma taxa de câmbio que dê competitividade às empresas, e garantir taxas de lucro que sejam suficientes para estimular os empresários a investir”, afirma. “Também é preciso que o salário médio da indústria cresça de acordo com o aumento da produtividade e que as tarifas públicas estejam alinhadas, para não provocar nenhuma perda de receita inesperada para as empresas”, diz. Um pré-requisito para política industrial, segundo o economista, é estabelecer e cobrar metas para que as empresas beneficiadas se tornem mais competitivas, tais como volume de exportação, capacitação dos funcionários e investimento em P&D. “É fundamental que o investimento dê retorno para o país.”

040-044_Desindustrializacão_239-03Ele é cauteloso com a ideia de privilegiar setores. “Talvez renda resultados melhores se tivermos uma política de estímulo à inovação e à P&D ao alcance de todos os segmentos”, afirma. Mas, se for para escolher algum setor, explica, deve-se levar em conta duas características: que ele gere inovação e que a inovação possa ser utilizada por outros setores, fomentando o que ele chama de “encadeamentos produtivos relevantes”. Marconi cita o setor da saúde como um alvo possível. “A população brasileira está envelhecendo e um programa de inovação orientado para a área da saúde pode nos ajudar inclusive a desenvolver setores no entorno em que ficamos para trás, como a indústria eletrônica, além da indústria de máquinas e equipamentos e de vários serviços.”

Gerar emprego também deve ser uma meta, mas a relação não precisa ser direta. “Não é trivial gerar inovação e emprego ao mesmo tempo, porque muitas vezes a inovação leva à perda de postos de trabalho. Mas é razoável beneficiar segmentos que gerem novas ocupações em seu entorno, em especial no setor de serviços”, diz Marconi. Um exemplo, ele observa, é o da indústria têxtil, cujo crescimento tem vocação para gerar empregos em serviços ligados à moda, ao design, à logística e ao marketing, entre outros. “É preciso incorporar inovações ao processo produtivo que diferenciam seu produto. Não dá para pensar em uma política para competir diretamente com o Vietnã ou a Etiópia, porque o custo da mão de obra é muito baixo nesses países”, afirma.

Detalhe de mural do artista mexicano Diego Rivera no Instituto de Artes de Detroit

reprodução Thomas Hawk / flickr Detalhe de mural do artista mexicano Diego Rivera no Instituto de Artes de Detroitreprodução Thomas Hawk / flickr

Comparações com as estratégias da China, que cresceu a taxas de 10% ao ano por mais de duas décadas, e a da Coreia do Sul, que desenvolveu uma indústria de tecnologia a partir dos anos 1970 com apoio do Estado, também são recorrentes na discussão sobre a capacidade de o Brasil se reindustrializar. No caso da China, algumas lições podem ser assimiladas, observa Flávio Vilela Vieira, coordenador de Indústria, crescimento e desenvolvimento. “Destaca-se a importância de políticas que possam estimular o nível de competitividade do setor exportador, a manutenção de um setor industrial dinâmico e competitivo, a relevância de se ter altas taxas de investimento na economia, e políticas de caráter estrutural que consigam atingir uma melhora no ambiente institucional”, escreveu Freire, que alerta, porém, para o fato de tanto a China quanto a Índia terem ainda um baixo nível de desenvolvimento econômico, medido pelo nível de renda per capita. “Isso permite a essas economias, com a adoção das políticas e reformas necessárias, atingirem taxas de crescimento econômico elevadas, o que não pode ser alcançado na mesma magnitude por outras economias que já passaram, previamente, por um processo de desenvolvimento econômico e elevação de seus níveis de renda per capita.”

Já no caso da Coreia do Sul, a articulação entre políticas industrial e científica ajudou setores privilegiados da indústria a alcançar um elevado grau de intensidade tecnológica. “O Estado demonstrou grande competência em sua atuação sobre a atividade econômica, servindo-se de mecanismos de incentivo e de disciplina do capital privado”, escreveu Thais Guimarães Alves, professora da Universidade Federal de Uberlândia. Experiências internacionais são referências importantes, mas, como observa Mariano Laplane, da Unicamp, sempre têm limitações. “As estratégias da Coreia do Sul ou de Israel podem ser inspiradoras, mas foram executadas em condições muito diferentes das nossas. Temos uma estrutura sofisticada e complexa. E é sobre ela que devemos avançar”, afirma.

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