Inédito, Aspectos do folclore brasileiro, de Mário de Andrade (1893-1945), delineia-se no contexto do conhecimento sobre a formação do Brasil e foi produzido em momento de síntese das reflexões críticas do autor, que demonstra consciência do estágio em que se encontravam os estudos do folclore: a caminho do conhecimento científico, mas ainda ineficaz em seus métodos de trabalho. Previsto como o volume 13 de suas Obras completas, sua publicação só se tornou possível com a localização do manuscrito “Estudos sobre o negro”, de 1938.
No primeiro capítulo, o autor mostra-se irritado com o amadorismo de estudiosos que, embora sem conhecimento técnico, se intitulavam folcloristas. Por esse ângulo, o folclore aparecia como forma burguesa de prazer, a gerar recepções triviais: audições de passatempo pelas classes superiores, sob o critério da comicidade. Ao mesmo tempo, não havia ainda concorrência da cultura científica, cuja formação estaria em andamento.
Até chegar a propostas para superação da ineficiência, Mário de Andrade passa em revista o processo formativo do conhecimento sobre o folclore nacional. Na fase inicial, de estudos voltados para as manifestações imateriais, o autor destaca o trabalho de Sílvio Romero (1851-1914), que não teria como encarar sistematicamente o folclore. O caminho da sistematização seria traçado com o auxílio de pesquisadores que, imersos no método das suas ciências, imprimiram direção nova aos estudos. O marco histórico no caminho da especialização situa-se nos anos 1930, com a criação de instituições culturais e científicas, como o Departamento de Cultura da prefeitura de São Paulo. Nesse período, destacam-se trabalhos diversificados como os de Luís Saia (1911-1975), Arthur Ramos (1903-1949) e Câmara Cascudo (1898-1986).
Mário de Andrade conclui sua revisão com o parecer de que é perceptível orientação mais técnica nas pesquisas, graças ao caráter monográfico e aos esforços desenvolvidos em instituições que abrangiam estudos da tradição. A seguir, reivindica a inclusão dos estudos folclóricos no âmbito da formação social do Brasil. Como militante, sugere a criação de museus específicos na área; a conversão de toda a documentação folclórica em fichário e a realização de congresso para decidir questões de pesquisa que contemplassem a vida material e a organização social.
No segundo capítulo, o autor da conferência “Cinquentenário da Abolição” trata da questão do negro no Brasil e analisa a linguagem falada para demonstrar a inexistência de uma linha de cor, fato que não oculta a verdade de que o negro brasileiro sofre da antinomia europeia. Em sua análise, recorre, sobretudo, a provérbios e canções populares, em que variantes do vocabulário revelam o preconceito. A conferência problematiza, ainda, a própria participação de negros nas comemorações do momento: ressalta a superação do complexo de inferioridade dos protagonistas, mas lamenta a falta de vontade enérgica que se denuncia na ausência de obras de fôlego de autores negros.
O terceiro capítulo mantém relação com o primeiro, se aceitarmos que as “Nótulas folclóricas” são demonstração da prática cotidiana do folclorista. A modo de exercícios, as pequenas notas flutuam entre folclore e etnografia. O último capítulo relativiza, pois, a pretensa cientificidade do primeiro. Com isso, confirma-se o sentido de “reunião harmônica de trabalhos independentes” reiterada por Angela T. Grillo na apresentação do livro, que traz ainda um dossiê com documentos do Arquivo Mário de Andrade, do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP).
A obra conta também com dois “estudos convidados”: em um deles, Maria Laura V. C. Cavalcanti avalia a repercussão dos “aspectos” no âmbito das ciências sociais, em que o folclore é visto como patrimônio cultural imaterial. No outro, Ligia F. Ferreira contextualiza o discurso do autor sobre o negro, destacando a parceria com Arthur Ramos, de fundamental importância no africanismo identificado.
A publicação confirma a inegável força do pensamento de seu autor e surpreende pela atualidade dos posicionamentos em assuntos considerados à margem dos estudos canônicos. Não por acaso, tais assuntos, na atualidade, convergem para o centro das discussões, a requerer, ainda, vontade enérgica dos atores da dramática realidade brasileira.
Humberto Hermenegildo de Araújo é professor titular aposentado no Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Republicar