Era mais um domingo chuvoso de verão no litoral paulista quando, durante um trabalho de campo, o biólogo João Henrique Costa e colegas do Laboratório de Ecofisiologia e Toxicologia Aquática, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), resolveram conferir algumas valas na estrada de chão batido. Pode parecer estranho, mas eles estavam em busca de peixes. O que não esperavam era redescobrir uma espécie que não era vista desde 2007, Leptopanchax itanhaensis.
Classificada como criticamente em perigo na Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a espécie foi encontrada na sub-bacia do Rio Preto, em Itanhaém, litoral paulista, tanto em uma vala de estrada, quanto em uma poça temporária. Típico de águas escuras e ácidas, esse peixe é nativo da região. A redescoberta aconteceu no início de 2024 e foi publicada em outubro na revista Biota Neotropica.
“Nós coletamos cinco indivíduos, todos machos; o maior deles tinha 2,45 centímetros”, relata Costa, primeiro autor do artigo, que tomou cuidado para não retirar uma proporção grande dos que estavam ali. Apesar de parecer um impacto a mais contra uma espécie ameaçada, essa coleta criteriosa é necessária para o conhecimento científico, que pode ajudar em sua conservação. Naquele ambiente pouco propício, havia grande probabilidade de os animais não sobreviverem. “É natural essa espécie existir em poças temporárias na mata, mas em valas de estradas já preocupa em razão de uma possível perda de hábitat, uma vez que é um ambiente artificial e com condições hostis.” O achado faz parte de sua pesquisa de doutorado no campus do Litoral Paulista da Unesp.
Não há floresta às margens da estrada de terra, o que contribui para a alta temperatura na vala, que também pode estar repleta de poluentes e lixo carregados pela água que escorre pela estrada. Tudo isso torna adverso o ambiente onde os peixes foram encontrados. De resto, a sua presença não é de todo inesperada.
L. itanhaensis é considerada uma espécie anual: vive em ambientes temporários, como poças de água que se formam durante a estação chuvosa e secam nos períodos de estiagem. Há quem o chame de “peixe das nuvens”, uma vez que só aparece após as chuvas, como se caísse do céu junto com a água. A associação é poética, mas o que acontece é que seus ovos ficam enterrados no solo seco e, quando a chuva enche as poças, eles eclodem e os peixes ressurgem.
Por viverem em locais diferentes do que estamos acostumados a encontrar peixes, como rios, riachos, lagos e lagoas, sua existência acaba passando despercebida. Quando as poças secam, elas podem ser aterradas, colocando essa espécie entre as mais ameaçadas do país, segundo o biólogo Telton Ramos, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que celebrou a redescoberta. “Foi muito importante porque fazia tempo que ninguém coletava esse peixe. A expansão urbana tem destruído os hábitats e muitas espécies como essa estão em situação crítica.” Ramos coordena o Instituto Peixes da Caatinga, que trabalha pela conservação dos rivulídeos – família de peixes de água doce que se destaca por sua capacidade de viver em hábitats temporários – e não participou do estudo.
Os espécimes foram encaminhados à Coleção de Peixes da Unesp de São José do Rio Preto, após uma análise inicial ainda em campo. Como são peixes muito pequenos, os pesquisadores usaram um puçá, tipo de rede utilizada para capturar o animal vivo. Na sequência, os fotografaram dentro de um aquário, para a identificação taxonômica, os sacrificaram usando anestésico, e, então, os preservaram em formol.
A segunda etapa do trabalho ocorreu em laboratório, onde a equipe registrou o peso e o comprimento de cada um, identificou o sexo e o estágio de maturação das gônadas – o que indica maturidade reprodutiva – e analisou a dieta a partir do conteúdo estomacal. Após essa etapa, enviaram os peixes para identificação por um taxonomista e registro na coleção, onde ficam disponíveis para outros pesquisadores.
Ondas de calor
Diante do cenário de extremos climáticos, o grupo de pesquisa da qual João Henrique Costa faz parte também quer identificar os impactos do aumento da temperatura da água sobre o metabolismo e os limites máximos de tolerância térmica dos peixes da região. Durante suas coletas, a temperatura da água nas poças e valas chegou a 29,5 graus Celsius (°C).
O biólogo Rafael Mendonça Duarte, orientador de Costa no doutorado, destaca que a maioria dos peixes mais comuns estudados pelo grupo tem a capacidade de se aclimatar às oscilações naturais da temperatura da água, apresentando maior tolerância térmica nos períodos mais quentes do ano e quando mantidos em regimes térmicos aumentados no laboratório, simulando eventos de ondas de calor.
Mas aparentemente não é o caso dos rivulídeos. Peixes de outra espécie da família, Atlantirivulus santensis, que não têm um ciclo de vida anual, demonstraram não aumentar sua tolerância térmica em estações distintas no ambiente onde vivem. “Isso aconteceu de forma muito discreta em alguns peixes, indicando uma baixa capacidade de aclimatação a temperaturas mais altas”, relata Duarte. Pelo parentesco, ele infere que L. itanhaensis também não tenha essa capacidade, inclusive porque o ciclo reprodutivo demanda muita energia metabólica em espécies anuais. “Isso é preocupante tendo em vista os cenários de aumento de temperatura da água em função das alterações climáticas”, alerta.
Ciência cidadã
Além das ações de combate à crise climática, para ampliar a proteção dessas espécies, Telton Ramos, da UEPB, sugere investir em ciência cidadã e incluir a participação dos moradores locais na pesquisa. “Nesse local onde aconteceu a descoberta, é importante mostrar que existe esse peixe para evitar que outros impactos levem a espécie à extinção.”
Os autores do trabalho pensam o mesmo. Um museu itinerante organizado pelo laboratório coordenado por Duarte esteve em uma escola de São Vicente em novembro, como teste. A previsão é de que a atividade se torne regular no próximo semestre letivo, circulando por escolas da região.
Esses peixes são muito visados para aquários em função do colorido, mais marcante nos machos. “A aquariofilia muitas vezes ajuda a descobrir espécies, o que é importante. Mas é preciso uma regulamentação para coibir o comércio ilegal que, infelizmente, acaba sendo bem comum”, enfatiza Costa. A conscientização pública também pretende combater essa prática.
Projeto
Abaixo da poça: Desvendando a composição da comunidade de peixes e a configuração de atributos em hábitats temporários naturais e artificiais da Mata Atlântica (nº 23/14344-5); Modalidade Bolsa de doutorado; Pesquisador responsável Rafael Mendonça Duarte (Unesp); Bolsista João Henrique Alliprandini da Costa; Investimento R$ 226.584,00.
Artigo científico
COSTA, J. H. A. da et al. Rediscovery of the critically endangered annual killifish Leptopanchax itanhaensis (Costa, 2008) in a temporary pool and roadside ditch from the Atlantic Forest of Southeast Brazil. Biota Neotropica. v. 24, n. 3, e20241637.