Professor aposentado do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), o cientista social Lúcio Felix Frederico Kowarick morreu dia 24 de agosto, aos 82 anos. Um dos pioneiros da sociologia urbana no país, Kowarick tornou-se conhecido por suas investigações e análises da realidade das grandes cidades brasileiras, marcadas por mazelas como a desigualdade social. Ao longo da trajetória acadêmica, iniciada na década de 1960, formou várias gerações de pesquisadores e publicou livros como Viver em risco (editora 34), lançado em 2009 e vencedor no ano seguinte do prêmio Jabuti, na categoria Ciências Humanas. Em 2013 foi agraciado com o Prêmio Florestan Fernandes, da Sociedade Brasileira de Sociologia, pelo conjunto da obra.
“Sua produção teve ao menos três ênfases sem nunca perder o foco na periferia e no acesso a direitos nos grandes centros urbanos”, observa Eduardo Marques, professor de ciência política da FFLCH-USP e diretor do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP. “A primeira delas, a mais importante em termos teóricos, aconteceu nos anos 1970, quando pesquisou a relação entre nosso capitalismo e a produção das periferias brasileiras.” A investigação sobre o mundo do trabalho prosseguiu nas décadas de 1980 e 1990. Sua tese de livre-docência, convertida no livro Trabalho e vadiagem (Editora 34), lançado originalmente em 1987, abordou a formação do mercado de trabalho em São Paulo entre 1880 e 1920. “Nessa época ele também analisou intensamente direitos e cidadania. Por fim, nos anos 2000, Lúcio se debruçou mais detidamente sobre formas precárias de habitação em São Paulo”, conta Marques.
Caminho próprio
Kowarick nasceu em 11 de fevereiro de 1938, na cidade de São Paulo. Como narrou no livro Retrato de grupo (2009, Cosac Naify), era oriundo de uma família burguesa, de origem europeia, que participou dos primórdios da industrialização paulista. A história começa no século XIX quando o bisavô deixou o antigo Império Austro-húngaro para vender máquinas têxteis no Brasil e depois fundar uma fábrica em Santo André, no ABC Paulista. No final da década de 1880 foi a vez de o avô, formado em engenharia têxtil na Alemanha, criar uma fábrica de tecidos, também em Santo André. Em 1965 a empresa, já sob a batuta do pai do cientista social, fechou as portas.
O jovem Lúcio, contudo, passou ao largo da tradição do clã. No final da década de 1950 ingressou na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde se graduou em 1961. Nessa época entrou para os quadros da Ação Popular e coordenou o braço paulistano da organização de esquerda de origem católica mesmo sem nunca ter professado a religião. Chegou a ser preso em junho de 1964, meses após o golpe de Estado, que instaurou a ditadura militar (1964-1985) no país. No Departamento de Ordem Política e Social (Dops) foi interrogado por dois investigadores. “Eles mandavam pôr a mão no chão e batiam nas costas”, contou Kowarick em Retrato de grupo. Após quatro dias na solitária, acabou transferido para o navio Raul Soares, ancorado próximo ao porto de Santos, onde ficou preso por duas semanas, com intelectuais e estivadores. “Todos andavam para frente e para trás debaixo de sol, metralhadora em cima”, disse na mesma publicação.
Libertado com a ajuda da família, mudou-se para a Europa no mesmo ano. Graças ao sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995) passou oito meses na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, até receber uma bolsa do governo francês para fazer o mestrado em Paris – não seriam, aliás, as únicas experiências do pesquisador no exterior, que depois passaria por instituições como o Institute of Development Studies, da Universidade de Sussex, no Reino Unido, e o Japan Center for Area Studies, em Osaka. Quando a bolsa parisiense se tornou insuficiente, em 1966, Kowarick procurou o então diretor científico da FAPESP, William Saad Hossne (1927-2016). “Expliquei a situação e ele pediu que eu escrevesse uma carta relatando que estava na França por motivos políticos. Ele me concedeu a bolsa para os dois anos restantes e pude concluir o mestrado”, relatou ele, anos depois, a Pesquisa FAPESP.
Voltou ao Brasil no final de 1968. Como professor, passou antes pela Fundação Getulio Vargas até se estabelecer na USP, em 1970, onde desenvolveu sua carreira acadêmica. Na instituição, além de ministrar aulas, concluiu o doutorado três anos mais tarde. A tese resultou no livro Capitalismo e marginalidade na América Latina (Paz e Terra), lançado em 1975. “Foi a obra que inseriu Lúcio no debate latino-americano”, avalia o ex-aluno Adrian Gurza Lavalle, também professor da FFLCH-USP e pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisa e Planejamento (Cebrap). “Ele mostrou que os trabalhadores informais não estavam à margem da sociedade brasileira. Pelo contrário, eram elementos imprescindíveis para entender o desenvolvimento do capitalismo brasileiro.”
A convite do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, em 1970 Kowarick ingressou no recém-fundado Cebrap. Nos seis anos em que lá permaneceu, organizou com o economista e sociólogo Vinicius Caldeira Brant (1941-1999) a coletânea São Paulo 1975: Crescimento e pobreza, coordenada pelo sociólogo e demógrafo Cândido Procópio Ferreira de Camargo (1922-1987) e financiada pela Arquidiocese Metropolitana de São Paulo. “Com grande participação de Lúcio, o livro deixou claro que o milagre econômico da ditadura tinha uma contraface perversa, representada por fatores como desigualdade social, favelização e periferias desassistidas”, aponta Marques. A ousadia, entretanto, não passou em branco e motivou um atentado à bomba, atribuído a grupos paramilitares, na então sede do Cebrap.
Ainda na década de 1970, Kowarick escreveu A espoliação urbana (Paz e Terra, 1979), considerado por muitos estudiosos como o livro fundante da sociologia urbana no Brasil. “O livro demonstra que não há crescimento desordenado, nem caótico, em nossas cidades”, escreveu o professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Gabriel Feltran no texto “A atualidade de A espoliação urbana”. “A aparente desordem tem assim uma lógica: a pobreza segregada dos setores sociais periféricos e a riqueza segregada das elites não são um desvio de um pretenso modelo virtuoso de desenvolvimento urbano e, portanto, explicável pela ideia da ausência (a propalada ‘ausência de Estado’, ou a ‘ausência de planejamento urbano’) – algo que poderia ser sanado em segunda etapa, quando o bolo já tivesse crescido e as tecnicalidades modernas disponíveis.”
Ao conectar relações entre economia, política e espaço urbano, o livro evidencia a complexidade da obra de Kowarick. “Além de vasta, é uma produção que dialoga com várias áreas do conhecimento. Por isso, é tão difícil circunscrevê-la”, observa Heitor Frúgoli Jr., professor do Departamento de Antropologia da FFLCH-USP. Ele completa: “Entre outros interesses, Lúcio foi um dos primeiros pesquisadores brasileiros a trabalhar com movimentos sociais urbanos na década de 1970 numa perspectiva marxista que abriu espaço para outras dinâmicas e significados das lutas populares urbanas frente ao Estado”.
Do campo da antropologia, Kowarick pinçou a abordagem etnográfica, método que se baseia não apenas em entrevistas, mas também na observação cotidiana de grupos. Tal referência está expressa no livro Viver em risco, em que busca compreender a situação brasileira dos anos 2000 a partir do relato de moradores de favelas, de cortiços e da periferia da cidade de São Paulo. A obra é fruto da pesquisa “Viver em risco: Moradia, desemprego e violência urbana na Grande São Paulo”, realizada pelo autor e por um grupo de alunos de iniciação científica e mestrado do curso de ciências sociais da USP. “Foi uma experiência intensa, inesquecível, onde aprendi muito com Lúcio”, recorda um dos integrantes da equipe, o cientista social Daniel Cara, hoje professor da Faculdade de Educação (FE) da USP. “Ele era um pesquisador extremamente rigoroso em relação ao método científico e tinha grande interesse em ouvir e sistematizar com exatidão o que aquelas pessoas queriam dizer. Escrevia muito bem e não gostava de ficar engessado na liturgia do texto acadêmico. Daí os textos ao mesmo tempo leves e profundos que produzia.”
Entre outras evidências, o estudo mostrou que o medo da violência colocava limites no cotidiano dos habitantes das áreas pobres, por vezes obrigados a sair à rua em horários determinados e viver sob códigos de silêncio. “Naquele tempo, final da década de 1990 e início dos anos 2000, a violência era muito grande nas favelas, nos cortiços, na periferia da cidade de São Paulo. Nos deparamos com histórias extremamente sofridas: praticamente todos os entrevistados tinham perdido algum parente assassinado”, diz outra integrante da equipe, a cientista social Maria Encarnación Moya Recio, hoje pesquisadora do CEM. “Como alento, podíamos contar com a generosidade do professor Lúcio, que cuidava de levantar o material de pesquisa: dos contatos no campo às referências bibliográficas.”
Lavalle, que também participou do mesmo grupo de pesquisa, concorda. “Lúcio era muito generoso”, aponta. “Na década de 1990, quando não havia a quantidade de material digitalizado que temos hoje, ele trazia das viagens ao exterior muitos artigos e livros, que deixava à disposição dos alunos.” Apesar do temperamento reservado, Kowarick gostava de reunir em casa os muitos amigos que conquistou na vida acadêmica. “Os encontros para comemorar as defesas de mestrado e doutorado dos orientandos aconteciam no apartamento dele”, lembra Lavalle. A aposentadoria em 2008 não arrefeceu o ímpeto do pesquisador, que continuou a ensinar na pós-graduação da FFLCH-USP e a escrever ensaios. “Ele sempre foi inquieto. Nunca desistiu de tentar entender o Brasil”, conclui Cara. Viúvo, deixou a filha, Isabel, atriz e diretora de teatro, e dois netos.
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