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Obituário

Um pilar da matemática brasileira

Teórico com trabalhos de impacto internacional, Luiz Adauto da Justa Medeiros também foi educador exemplar

O matemático em 1999, durante congresso internacional na Bulgária

Arquivo pessoal

Em 1944, aos 18 anos, Luiz Adauto da Justa Medeiros saiu de Fortaleza, Ceará, para completar os estudos no Rio de Janeiro. Ele cumpria um roteiro definido pela família: formar-se médico e regressar para exercer a profissão. O interesse e a aptidão pela matemática não permitiram que cumprisse o combinado. No Rio, em 1948, tomou a decisão de contrariar a vontade familiar e começar o curso de licenciatura em matemática na Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Encarou a punição de ficar sem a mesada que o sustentava e decidiu trabalhar, dando aulas, para obter o diploma em 1951. No ano seguinte, começou como professor auxiliar na mesma universidade. Em 1956, obteve o bacharelado. Foi o início de uma carreira de docência e pesquisa de destaque na matemática brasileira. Medeiros morreu dormindo no Rio, no dia 4 de junho, de causas naturais, aos 96 anos.

Para além de suas contribuições teóricas, Medeiros é considerado pelos colegas um grande educador e difusor da matemática no Brasil, familiarizando seus alunos com pesquisas internacionais de ponta. “O professor Luiz Adauto foi o grande formador dos matemáticos brasileiros”, diz a matemática Ângela Rocha, da UFRJ. Ela foi sua orientanda no doutorado entre 1992 e 1996 – uma entre os 31 alunos de doutorado e 22 de mestrado que ele orientou. Mesmo com muitas atividades na pós-graduação, Medeiros continuou a dar aulas na graduação. Explicava de forma clara conceitos difíceis para estudantes muito jovens e pesquisadores em início de carreira, além de produzir livros didáticos para graduandos e pós-graduandos de conteúdos sobre os quais não havia material em língua portuguesa.

O matemático estabeleceu contato com grupos de pesquisa internacionais e promoveu intercâmbio fora do país para muitos estudantes brasileiros. Seus contatos diretos com a matemática desenvolvida em alguns dos principais centros de produção acadêmica começaram em 1962 – quando começou doutorado no Instituto Nacional de Matemática Pura e Avançada (Impa), no Rio de Janeiro, com o matemático Leopoldo Nachbin, e obteve bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para estudar com o matemático norte-americano Felix Browder (1927-2016), na Universidade Yale, nos Estados Unidos. A tese foi defendida pelo Impa, em 1965. O historiador da matemática Clovis Pereira da Silva, professor aposentado pelo Departamento de Matemática da Universidade Federal do Paraná, conta que foi sob a orientação de Browder que Medeiros conheceu de forma profunda o campo ao qual daria contribuições importantes, o das Equações Diferenciais Parciais (EDP).

De volta ao Brasil, Medeiros ajudou a estruturar o programa de pós-graduação do Instituto de Matemática (IM) da UFRJ, iniciado em 1968, e foi seu primeiro diretor. “Ele participou do período de efervescência e criação da comunidade matemática brasileira”, comenta Silva, autor do livro A vida acadêmica e a influência do matemático Luis Adauto da Justa Medeiros (UFRJ/IM, 2020) sobre a trajetória do pesquisador. Medeiros participou também da formação da comunidade matemática no Peru. Com financiamento da Fundação Ford, ele lecionou por três meses em 1967 na Universidade de San Marcos, em Lima. Lá, selecionou alunos para cursar a pós-graduação na UFRJ. Alguns deles seguiram carreira no Brasil, enquanto outros voltaram ao Peru onde formaram pesquisadores e educadores na área.

Na década de 1970, foi a Paris fazer um estágio de pós-doutorado com a principal referência em EDP, o matemático francês Jacques-Louis Lions (1928-2001). A proximidade com o grupo liderado por Lions possibilitou, mais tarde, que vários estudantes brasileiros fizessem doutorado em Paris. Rocha afirma que esses novos doutores voltaram ao Brasil e formaram grupos de pesquisa. Outra preocupação de Medeiros era acolher na UFRJ jovens do interior do Brasil. Isso fez parte de seu esforço de descentralização da produção acadêmica, que era muito concentrada no Rio de Janeiro e em São Paulo. “Como consequência, hoje há uma rede de grupos de estudo de equações diferenciais parciais espalhados pelo país”, avalia Rocha.

Arquivo pessoalEste ano, já com 96 anos, em Teresópolis, na serra do Rio de JaneiroArquivo pessoal

Contribuição reconhecida
Medeiros ajudou a desenvolver inovações no campo das EDP, um ramo da matemática aplicada, e foi o principal responsável por introduzir essas novidades teóricas no Brasil. Em discurso durante homenagem que recebeu na UFRJ ao completar 90 anos, ele explicou que seu interesse por temas da matemática aplicada cresceu ao tentar entender como as formalizações teóricas que estudava poderiam se aplicar a fenômenos físicos e soluções práticas.

Um daqueles alunos selecionados por Medeiros em Lima para estudar no Brasil, o peruano Manuel Milla Miranda, professor de matemática da UFRJ, explica que as EDP são equações que modelam fenômenos físicos como a vibração de corpos elásticos. Porém “as soluções clássicas para as EDP não abarcavam todos os fenômenos físicos que queríamos estudar”, explica. “Era necessária uma ferramenta mais ampla.” Essa ferramenta matemática, um método moderno de encontrar soluções para as EDP, foi introduzida no Brasil por Medeiros. “Foi uma contribuição importante não só para a matemática, mas também para a física, pois é um método que abrange mais fenômenos”, avalia Miranda.

Segundo Clovis Pereira da Silva, “essas pesquisas do Medeiros em Equações Diferenciais Parciais não lineares levaram a resultados que foram incorporados à literatura matemática mundial”. Ele elenca entre essas contribuições mais reconhecidas um teorema que leva o nome do matemático brasileiro: Medeiros’ Uniqueness Theorem [Teorema de Unicidade de Medeiros] no livro Uniqueness and nonuniqueness criteria for ordinary differential equations (World Scientific, 1993), de Ravi P. Agarwal e Vangipuran Lakshmikanthan.

Outros trabalhos e publicações de Medeiros também tiveram impacto internacional. “Estudei alguns dos artigos dele durante a realização da minha tese de doutorado em Paris entre os anos 1985 e 1988”, diz o matemático espanhol Enrique Zuazua, professor da cadeira Alexander von Humboldt, do Centro de Matemática de Dados da Universidade de Erlangen-Nuremberg, da Alemanha. “O fato de que ainda me recordo desses trabalhos, 35 anos depois, diz muito sobre eles.” Zuazua lembra que esses artigos “estavam escritos no estilo do professor Medeiros: claro, transparente e conciso”.

Alta produtividade
“Medeiros foi um matemático altamente produtivo”, informa Rocha. Índices de produtividade acadêmica variam bastante entre áreas de pesquisa distintas. “Enquanto em algumas áreas um pesquisador muito produtivo publica três ou quatro artigos por ano, um índice de produtividade em matemática considerado muito alto é de um artigo por ano”, esclarece ela. Segundo dados da plataforma Lattes, Medeiros publicou 92 artigos em periódicos, além de 17 livros e 30 capítulos de livros.

Apesar da alta produtividade de Medeiros, Silva resgatou alguns alertas do matemático aos alunos, exortando-os a evitar o exagero da publicação de trabalhos impulsionados pela cultura do “publique ou pereça”, estimulando-os a avaliar se o que se procura publicar é realmente novo e relevante.

Medeiros se manteve em atividade mesmo em idade avançada: o último de seus artigos científicos foi publicado em 2015, aos 89 anos. Deixa quatro filhos, oito netos, um bisneto e sua mulher, a física Lourdes Maria Palma Medeiros.

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